Impacto de agrotóxicos em territórios e comunidades do Cerrado é tema de discussão em festival de cinema ambiental em Goiás

Em atividade no Festival Internacional de Cinema Ambiental (FICA), lideranças e pesquisadores denunciaram a política de morte do atual modelo de produção do agronegócio

por Amanda Costa, em CPT

No dia 03 de junho, representantes de povos indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais do Cerrado e pesquisadores e pesquisadoras participaram da Mesa ‘Saúde Saúde e Meio Ambiente: Violações ao território e à vida dos povos tradicionais’, na Tenda Multiétnica do Festival Internacional de Cinema Ambiental (FICA), realizado na Cidade de Goiás (GO), de 24 de maio a 05 de junho de 2022. Um filme exibido logo no início apresentou a realidade do Acampamento Leonir Orback, em Santa Helena de Goiás, e introduziu a problemática da atual Guerra Química provocada pelo agronegócio, que ameaça a saúde de comunidades inteiras e coloca em risco a biodiversidade.

Para Murilo Mendonça, do Núcelo Gwatá/UEG e membro da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, que mediou o momento, o termo ‘Guerra Química’ não é econômico para expressar a realidade de violência que as populações do campo têm vivido nos últimos tempos. Para contribuir com o debate, participaram da mesa a liderança quilombola Leandro Santos, do Território Cocalinho, em Parnarama/MA, Anastácio Peralta, indígena Guarani e Kaiowá de Dourados/MS, as pesquisadoras Aline Gurgel, do Instituto Aggeu Magalhães – Fiocruz, e Karen Friedrich, do Ministério Público do Trabalho (MPT), e Leonardo Melgarejo, membro do GT Agrotóxicos da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA).

Anastácio Peralta inaugurou a mesa expondo sobre a mentalidade de exploração dos territórios forjada ao Brasil pelos colonizadores, que permanece até hoje e é responsável pelas contínuas violações de direitos dos povos: “Não mudou nada nesses 500 anos, eles nos dividiram, numa estratégia de criação de estado, de país. Fomos divididos, foram criando fronteiras para todo lado. Mas através da nossa força espiritual estamos aqui, vivos”. Em sua fala, Anastácio também trouxe a visão de meio ambiente dos povos indígenas, que não dissocia ser humano e natureza e contribui para a manutenção da saúde coletiva. “Para nós indígenas, Guarani Kaiowá, o meio ambiente começa em casa, é onde a gente vive. E a saúde também começa em casa. Se a gente se alimenta bem, se somos felizes, a gente não fica doente”, enfatizou.

Partindo do conceito de Tecnologia Espiritual, Anastácio também expôs a diferença entre os modos de se relacionar com o meio ambiente dos indígenas, especificamente no que diz respeito ao modo de produção de alimentos. “Nós somos diferentes do branco do agronegócio. Quando vamos plantar, primeiro a gente batiza a terra, depois batiza a semente, e depois que planta a gente reza pra chover.” Neste sentido, foi colocada a necessidade de “reflorestar a nossa mente”, como uma maneira de repensar as atuais formas de exploração da terra.

Imerso em um contexto de intensos conflitos no Maranhão, Leandro Santos denunciou a destruição dos territórios e da vida de pessoas na região do MATOPIBA, que incorpora os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Em sua comunidade, as famílias lutam contra a grilagem de terras, o desmatamento e as queimadas, todos estes conflitos intensificados pela expansão da fronteira agrícola. “E aí vem o uso do agrotóxico para nos matar”, relata ao dizer sobre mais uma violência que acomete o seu território. As famílias do Quilombo Cocalinho, que representam um dos casos do Tribunal Permanente dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado (TPP), lutam pela titulação de suas terras e enfrentam conflitos por empreendimentos de monocultivos de eucalipto da empresa Suzano Papel e Celulose e por fazendas de soja que se expandem para a região.

Após as falas das lideranças, a pesquisadora Aline Gurgel apresentou um breve panorama da dominação dos territórios do Cerrado pelo agronegócio – a região concentra cerca de 75% de área plantada com soja, milho, cana-de-açúcar e algodão. Em seguida, expôs um  recorte preliminar de uma recente pesquisa sobre agrotóxico em oito estados, realizada no âmbito do projeto ‘Dos Territórios ao Tribunal do Cerrado: agrotóxicos em pauta’, idealizado pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado junto à Comissão Pastoral da Terra. “Analisamos a água em 5 estados que compõem a região do Cerrado. Encontramos agrotóxicos em todos os estados, e não somente em todos, mas em todos os pontos de coleta que nós analisamos. Não houve amostra de água que não fosse detectada a presença de pelo menos dois agrotóxicos, e isso é muito grave”, apontou. Entre os agrotóxicos já identificados destacam-se o 2,4-D, o glifosato e o Paraquat. Os três foram encontrados em todos os estados que compuseram a análise, além de outros.

Para Karen Friedrich, do Ministério Público do Trabalho, que precedeu a análise apresentada por Aline,  “muitas instituições públicas que deveriam estar defendendo interesse público, estão em espaços em defesa desse modelo – do agronegócio -, e de invisibilizar as doenças, as denúncias, de desqualificar a fala de pessoas que estão sendo envenenado e que observam, há muito tempo, como esse modelo químico que acaba com a terra”. Karen defendeu, ainda, a Reforma Agrária como uma questão sobretudo ecológica. “Defender a Reforma Agrária para se plantar alimento, diversidade, nutriente. Esse modelo de monocultivo, onde tem só uma espécie de planta, vai gerar desequilíbrio ecológico e aumentar a demanda de agrotóxico. A Reforma Agrária favorece o equilíbrio dos ecossistemas produzindo comida de verdade”, afirmou.

A pandemia da Covid-19 também foi contextualizada no debate, sendo apontada como mais uma doença que é resultado do processo de adoecimento do modelo do agronegócio. Pesquisadores já têm denunciado o desmatamento, as agressões contra a natureza, a perda da biodiversidade como potenciais provocadores do surgimento de pandemias. “O que acontece quando uma pessoa está contaminada por agrotóxico? Se torna ainda mais suscetível à doença da Covid-19. As pessoas do campo, das florestas, das águas, intoxicadas por venenos, ainda sofrem mais uma violência por essa política mal sucedida de combate à pandemia”, enfatizou Karen. 

Entre o debate foi resgatado os processos de tramitação de Projetos de Lei (PL) no Congresso Nacional, que são ameaçadores, principalmente aos povos indígenas e comunidades tradicionais do Brasil. Em relação ao PL 6299/2022, conhecido como Pacote do Veneno,  aprovado na Câmara dos Deputados em fevereiro deste ano, tramita agora no Senado Federal com o número 1459/2022 e segue em análise em Comissão ligada apenas a setores do agronegócio. O PL que prevê uma completa mudança e flexibilização na legislação referente aos agrotóxicos no país.

“Nós todos vivemos um tempo de guerra contra o modelo de destruição do amor, das sementes, dos sonhos”, afirmou Leonardo Melgarejo ao encerrar o momento resgatando a fala de Fernanda Kaingáng, feita no mesmo dia. Para Leonardo, “temos uma responsabilidade maior do que nos outros tempos de guerra onde morriam os guerreiros. Hoje o que está ameaçado é o futuro. A aliança intergeracional”, finaliza.

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