Em entrevista para a Alma Preta, Kabengele Munanga avaliou o Brasil e o movimento negro nacional.
por Pedro Borges, em Alma Preta / IHU
Autor de obras como “Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil” e doutor em antropologia pela Universidade de São Paulo (USP), Kabengele Munanga, aos 81 anos é um dos principais intelectuais do país e acredita que o Brasil vive um momento delicado. Em entrevista para a Alma Preta Jornalismo durante o II Egbé, encontro nacional dos povos de terreiro, o professor destaca a violência sofrida pelas religiões de matriz africana.
“Quantos terreiros de candomblé estão sendo incendiados em alguns lugares clandestinamente? Incendiados de colocar fogo e fugir, como a KKK fazia nos EUA. Quantos são caçados no seu território?”, questiona. Um terreiro foi incendiado em São Luís, capital do Maranhão, nesta semana. Em comunicado, os religiosos da casa atacada afirmam que os “crimes de intolerância religiosa só crescem a cada dia no Estado do Maranhão”.
Para ele, é papel do movimento negro se articular e frear essas violências. “O movimento negro tem de resistir muito, porque os terreiros são territórios étnicos”. O esforço também se deve pela compreensão, na perspectiva de Munanga, de que os terreiros no Brasil são fundamentais para a construção da identidade negra.
“Se os terreiros não tiverem seus territórios, como eles vão construir a sua identidade? Os terreiros de candomblé são símbolos da ancestralidade e da resistência. Estamos aqui para mostrar que precisamos resistir. A gente não vai desistir porque a gente vem de longe e não é de agora que somos atacados”.
Ele lamenta o fato das religiões de matriz africana não terem canais de comunicação de TV ou rádio, como tem os evangélicos, e critica os interesses por trás dos ataques às religiões de matriz africana.
“Eles querem clientela para pagar dízimo, reserva eleitoral para ter representantes no governo para defender os seus interesses. Nós não temos canal de televisão para fazer a propaganda, não temos a rádio, os jornais, então o momento é de se conscientizar para também pensar em novas estratégias de resistência, porque os antepassados que resistiram quando chegaram aqui era em uma outra situação. Não tinha televisão, jornais, rede social, nada. A gente tem que criar novas formas de estratégias para continuar resistindo e não ser destruído”, explica.
O Brasil e o movimento negro
A violência sofrida pelos terreiros é uma das facetas da situação vivida pelo país, na visão de Kabengele Munanga. Ele acredita, contudo, que a delicadeza do atual cenário coloca em risco as conquistas obtidas em tempos recentes.
“A gente está passando por um momento de crise, um momento de ameaça de todas as conquistas que foram conquistados nos governos Lula e Dilma. Tudo o que foi feito de serviço para a sociedade, comunidade, tudo foi destruído e rasgado”.
Um dos exemplos apresentados por Kabengele Munanga, para explicar a sensação sobre a realidade, é a maneira como o governo federal lidou com a pandemia da Covid-19. Até o dia 7 de junho de 2022, 667 mil pessoas perderam as vidas pela pandemia, a maioria delas pessoas pobres e negras. O Mapa da Desigualdade, estudo feito pela Rede Nossa São Paulo, apontou que entre janeiro e julho de 2021, 47,6% das mortes de pessoas negras na cidade foram por conta da Covid-19, contra 28,1% entre os brancos.
Para Kabengele Munanga, os números indicam as desigualdades existentes no país e a responsabilidade do governo federal. “A pandemia matou muitos pobres, entre eles, muitos negros, tudo isso por conta da irresponsabilidade do atual governo”.
Autor da frase de que o “racismo é um crime perfeito” no Brasil, Kabengele Munanga acredita que o racismo continua presente, mas com diferenças no atual cenário. “Quantos somos no Congresso? Para que sejamos os 54% ainda falta muito. Nas assembleias, no Senado, nos judiciários, somos sub representados e isso vai depender de dois caminhos: a educação e as políticas afirmativas”.
Ele acredita que parte das mudanças na realidade brasileira fazem parte dos avanços obtidos pelo movimento negro. “As conquistas que nós tivemos, que são resultado de lutas de gerações, que vem lá de Zumbi dos Palmares, Frente Negra Brasileira, Movimento Negro Unificado, e hoje representadas por várias entidades do movimento negro e feministas organizados. Essas conquistas ainda não representam a população negra”. Os principais avanços apontados por Kabengele Munanga são as aprovações das leis 10.639 e 11.645, que obrigam o ensino da história africana, afro-brasileira e indígena, e a homologação da Lei de Cotas em 2012.
O papel do movimento negro hoje é, para ele, sobretudo o de conscientizar os jovens sobre a necessidade de continuar na luta. “Não é porque entraram alguns negros nas universidades pelas cotas que conseguimos. Nós estamos apenas conseguindo alguns resultados, coisas que para mim ainda são muito poucos”.
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Capa do livro “Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil”, de Kabengele Munanga. (Foto: Divulgação)