Série especial realizada em parceria com o Centro para Análise de Crimes Climáticos revela vulnerabilidade das áreas protegidas estaduais frente ao poder público local.
por Cristiani Prizibisczki, em ((o))eco / IHU
Que as unidades de conservação do Brasil estão sob ameaça a gente já sabe. Os ataques do governo federal têm sido explícitos e os altos números do desmatamento dentro dessas áreas, principalmente na Amazônia, estampam manchetes de jornais. Muito mais discreta, no entanto, é a vulnerabilidade das unidades de conservação frente à sanha dos poderes locais.
Uma parceria entre ((o))eco e a organização internacional Centro para Análise de Crimes Climáticos (CCCA – Center for Climate Crime Analysis) analisa o tamanho da degradação causada, deliberadamente ou por omissão, pelos poderes públicos estaduais em unidades de conservação de Rondônia.
O estado é exemplo de uma movimentação política que pode levar ao fim não só as áreas protegidas sob sua tutela, mas porções de vegetação nativa preservadas em todo país.
Como acabar com uma unidade de conservação
A lei que rege o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) determina que uma área protegida pode ser criada por ato supralegal, como um decreto do Executivo, por exemplo. Mas ela só poderá ser alterada – reduzida, reclassificada ou extinta – por meio de lei. A regra vale para unidades geridas nas três esferas de poder: municipal, estadual ou federal.
No nível federal, alterar uma unidade de conservação não é um processo simples. Uma proposta vinda do Executivo, por exemplo, precisa passar pelas comissões e aprovação em Plenário na Câmara, composta por 513 deputados federais, e no Senado, formado por 81 senadores, antes de entrar em vigor.
Já nos estados, esse processo é muito mais simplificado. Se a proposta for do Executivo estadual, para usar a mesma lógica, ela só precisa do crivo da Assembleia Legislativa Estadual, composta por um número muito menor de parlamentares. No Brasil, a média é de 39 deputados nas assembleias estaduais, segundo levantamento realizado por ((o))eco com base em dados do Tribunal Superior Eleitoral.
“As unidades de conservação mais vulneráveis são certamente as estaduais. Além do número reduzido de deputados, tem estados como Mato Grosso, Rondônia, Acre, em que o Legislativo estadual é totalmente dominado por setores contrários às unidades de conservação”, explica Enrico Bernard, pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco que desde 2010 estuda as alterações em áreas protegidas no Brasil.
Isso significa que, nesses contextos, muitas vezes não há forças contrárias para barrar – ou ao menos retardar – o processo de alterar uma unidade de conservação.
De acordo com Angela Kuczach, bióloga e diretora executiva da Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação (Rede Pró-UC), no Congresso Federal são justamente essas forças contrárias que têm evitado a aprovação de grandes retrocessos ambientais.
“No nível Federal, a gente tem uma situação muito ruim, mas ainda temos certos players que possibilitam que a gente se mantenha no jogo. Dentro do Congresso temos a Frente Parlamentar Ambientalista na Câmara e a Frente Ambientalista no Senado. As organizações não governamentais estão lá dentro municiando esses parlamentares que estão do nosso lado com notas técnicas, subsídios jurídicos, e também temos acesso a alguns senadores e deputados, então a gente ainda consegue se movimentar”, explica Kuczach. “Já nos Estados, é o Executivo e a Assembleia e, em geral, eles estão alinhados, especialmente nos estados mais retrógrados. Claro que tem estados que ainda conseguimos conversar, como o Pará, por exemplo. Mas existem estados em que hoje não há espaço de diálogo”, diz.
Rondônia – Um balão de ensaio
As unidades de conservação do estado de Rondônia têm importância ímpar não só para a região, mas para todo o país. Além de funcionarem como “escudos” contra o desmatamento, elas desempenham um importante papel na provisão de serviços ecossistêmicos.
Esse é o caso da Terra Indígena Uru-eu-wau-wau, conhecida popularmente como “caixa d’água de Rondônia”, ou da Floresta Nacional do Jamari, que se tornou um dos últimos redutos do sagui-de-rôndônia (Mico rondoni), espécie ameaçada de extinção.
Isso sem falar na importância para a regulação climática, para o regime de chuvas, a biodiversidade e para a sobrevivência de populações tradicionais, entre inúmeros outros fatores.
Mas elas estão morrendo. Acelerada e organizadamente.
Segundo o estudo conduzido por Enrico Bernard, entre 1981 e 2000, o país registrou seis eventos de alterações em unidades de conservação. Cinco deles ocorreram em áreas protegidas estaduais de Rondônia.
As alterações foram se intensificando em número e proporção nas décadas seguintes, muitas delas em anos recentes. Tanto é que, hoje, não dá nem pra saber quantas unidades de conservação o estado tem realmente.
A Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (SEDAM) contabiliza 40 unidades de conservação estaduais, mas várias estão em processo de judicialização, com futuro ainda incerto.
Foi a partir de 2017 que as investidas contra as áreas protegidas rondonienses ocorreram com mais ênfase. As movimentações pela redução e extinção de unidades de conservação no Estado vieram de ambos os lados: Executivo e Legislativo.
Naquele ano, sob os rumores de que o então governador Confúcio Moura (MDB) criaria novas unidades, a Assembleia Legislativa aprovou uma lei (nº 4.228/2017), de sua autoria, acabando com a independência do Executivo em criar novas unidades, o que contraria a legislação atualmente em vigor sobre o assunto.
De fato, em março do ano seguinte, o governador assinou, sem o crivo dos parlamentares, decretos de criação de nove unidades de conservação e de regulamentação de outras duas que, somadas, protegeriam um território quase do tamanho do Distrito Federal (530 mil hectares).
A reação dos deputados foi imediata, com a aprovação de decretos legislativos que revogaram as 11 áreas protegidas. Nesse momento, os Ministérios Públicos Estadual e Federal entraram em cena, com a proposição de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI). A ação dos MP seria decisiva para evitar a extinção dessas porções de floresta nos anos que se seguiram.
Os parlamentares, por sua vez, vendo que as ADI seriam julgadas procedentes, criaram uma nova lei (Lei Complementar Estadual nº 999/2018), que extinguia as 11 unidades criadas. De novo o MP entrou em ação e, em setembro de 2021, tal lei foi considerada inconstitucional.
Em 2021, o Estado, sob a tutela de um novo governador, coronel Marcos Rocha, filiado do PSL até 2020, perderia grandes áreas anteriormente protegidas. Em maio do ano passado, o Executivo propôs e o Legislativo aprovou uma lei (Lei Complementar nº 1.089/2021) que desafetou 220 mil hectares de duas unidades de conservação de Rondônia: a Reserva Extrativista Jaci-Paraná e o Parque Estadual de Guajará-Mirim.
A justificativa do governador era de que as áreas desafetadas de ambas as unidades já estavam muito antropizadas e não serviam mais aos propósitos de conservação, havendo outras áreas no estado melhor qualificadas para tal fim.
Como forma de “compensar” a redução das unidades, a referida lei recriou cinco das 11 unidades extintas pelo Legislativo. Tais unidades, no entanto, somavam 120 mil hectares, apenas 22% do total que seria protegido se as 11 áreas fossem mantidas.
No início de julho de 2021, um novo golpe contra as unidades do estado foi desferido. Dois projetos de lei do Legislativo (Projetos de Lei Complementar nº 104/2021 e 105/2021) extinguiram dois dos cinco parques recriados como “compensação”. Ambas as leis foram sancionadas, na íntegra, após o governador Marcos Rocha não se manifestar dentro do prazo.
Em novembro de 2021, o Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO) declarou a Lei 1.089/2021 inconstitucional. Veja abaixo uma linha do tempo com detalhes das tentativas de alteração em áreas protegidas de Rondônia, de 2017 até 2022.
((o))eco procurou o Governo do Estado de Rondônia por várias semanas para entender qual a posição atual do Executivo em relação às áreas protegidas do Estado, mas não obteve resposta até a publicação da matéria.
Um vídeo divulgado no final de maio nas redes do mandatário da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (SEDAM-RO), secretário Marco Antonio Lago, no entanto, mostra o alinhamento do Executivo com o setor do agronegócio no estado.
Questionado pelo assessor que o acompanhava em relação aos “boatos” que estariam circulando no Estado sobre a intenção do governo de criar novas reservas, principalmente na região de Guajará-Mirim, o secretário responde:
“Isso é mentira! Ali na região de Guajará é impossível de se criar [novas UCs], seria desumano. O governador é ligado ao agro, ao desenvolvimento e eu garanto que não está sendo criada nenhuma área de reserva”.
Seu assessor, então, diz: “Estão falando por aí que o governador é ambientalista, quando, na verdade, ele está reduzindo as áreas de reserva justamente para melhorar a situação dos nossos agricultores”.
E o secretário completa: “Sem nenhuma dúvida, estamos tentando até desfazer erros de áreas criadas sem nenhum estudo, onde havia pessoas morando. Nós estamos tentando, vamos lutar por isso. Rondônia é Agro!”.
O vídeo foi gravado em maio deste ano, durante a 9ª Rondônia Rural Show Internacional, autointitulada “a maior feira do agronegócio da região norte”.
Este alinhamento com o agro também se repete na Assembleia Legislativa. Segundo levantamento da Repórter Brasil, quase metade dos parlamentares da atual legislatura são pecuaristas ou tiveram suas campanhas financiadas por criadores de gado.
Para o pesquisador Enrico Bernard, da UFPE, o processo de extinção de Unidades de Conservação que está acontecendo em Rondônia é nocivo não só para esta unidade da federação. Ele tem o potencial de se espalhar para outros estados do país, principalmente na Amazônia Legal.
“Rondônia é o balão de ensaio, porque é um processo que vem acontecendo há muito tempo de testar limite, de testar resistência, ver até onde vai. E o que está acontecendo lá, vários setores e vários estados estão observando. Se Rondônia conseguir, por que não Amazonas, Acre, Mato Grosso…”, diz.
Este também é o entendimento de Ângela Kuczach, da Rede Pró-UC. Para ela, a experiência de Rondônia pode não só servir de exemplo, mas abrir precedente para que outros estados ajam da mesma forma. “Rondônia está na vanguarda do retrocesso. Se a moda pega, a gente vai ter estado atrás de estado destituindo unidade de conservação”, alerta a bióloga.
PADDD no Brasil: barragens e um escândalo no meio do caminho
O processo de redução, recategorização e extinção de uma área protegida é conhecido mundialmente pela sigla PADDD (Protected Areas Downsizing, Downgrading and Degazetting). Ele tem sido verificado em todo mundo e, segundo a plataforma PADDD Brasil, desenvolvida pela WWF, tem sido cada vez mais frequente no país.
Em torno de 90 eventos de PADDD ocorreram em território nacional nos últimos anos, afetando uma área em torno de 11 milhões de hectares, o equivalente a duas vezes o tamanho da Croácia.
Cerca de 67% dessas alterações ocorreram na Amazônia, atingindo aproximadamente 90 milhões de hectares, área correspondente a todo território de Portugal.
As informações que constam na plataforma PADDD Brasil contaram, entre outras fontes, com o trabalho do pesquisador Enrico Bernard, da UFPE. Desde o começo dos anos 2010, ele acompanha os processos de alterações em áreas protegidas e, em 2014, ele e outros colaboradores publicaram um artigo sobre o assunto na revista científica Conservation Biology.
Em suas pesquisas, eles identificaram 93 eventos de PADDD entre 1981 e 2012 no país, a maioria deles ocorridos a partir de 2008. Tais processos afetaram, somente no período analisado, uma área de 7,3 milhões de hectares, sendo 5,2 milhões de hectares pela redução de unidades ou sua extinção completa.
De acordo com o pesquisador, o salto nessas alterações a partir de 2008 foi motivado pelas grandes obras de infraestrutura que o Governo Federal pretendia, na época, implementar no país e principalmente na Amazônia, como hidrelétricas e linhas de transmissão.
Eram os primeiros anos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em janeiro de 2007 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com investimentos pretendidos de até R$ 500 bilhões em quatro anos para tais obras.
“No governo Lula, ele baixou um decreto que autorizava a pesquisa e prospecção de potencial energético dentro de UC [unidade de conservação]. Ninguém em sã consciência vai pesquisar potencial hidrelétrico dentro de UC sabendo que não é permitido esse tipo de coisa dentro da unidade. Os atos normativos eram muito claros”, diz ele, apontando para a pretensão do governo em alterar as áreas.
De fato, a pesquisa de Bernard identificou que somente entre 2010 e 2012, 19 eventos de redução ou reclassificação foram registrados em áreas protegidas do Brasil para possibilitar a implantação de estruturas de geração de energia.
Durante o governo de Dilma Rousseff, que havia dado continuidade ao PAC, no entanto, um escândalo fez com que as grandes obras de infraestrutura fossem deixadas de lado. A Lava Jato chegava para tirar as grandes empreiteiras de cena.
Junto com ela, a partir de 2010, duas grandes crises econômicas (2015-2016 e 2020-2021) fizeram com que os investimentos em infraestrutura diminuíssem no país, trazendo de volta aos holofotes o motivador histórico das mudanças nas UCs: a política.
“É um processo dinâmico, como se fosse uma corrida de revezamento: o driver infraestrutura perdeu força e o bastão foi passado para outro driver. O grande desafio agora é o ‘driver político’, acabar com unidade porque querem acabar com unidade”, diz Bernard.
Mas por que os políticos querem acabar com as unidades? Segundo Heron Martins, mestre em Uso Sustentável de Recursos Naturais em Regiões Tropicais e Analista de Dados do Centro para Análise de Crimes Climáticos, a resposta está na velha conhecida grilagem, seja para atender interesses próprios ou de terceiros.
“Realmente, antes de 2008, nós tivemos muitas desafetações por motivação de infraestrutura, mas eu acho que não era que a política não estivesse acontecendo, só que a infraestrutura estava mais visível. Com os períodos de escassez de recursos, nosso velho e tradicional motivo ‘grilagem’ ganha força. Ocupação de terras públicas, ocupação de terras baratas para venda e geração de lucro”, explica.
Com a paralisação do sistema de comando e controle, o aparelhamento dos órgãos de fiscalização e a falta de orçamento para as ações ambientais, ocorrida mais fortemente com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, acabar com uma unidade ficou ainda mais fácil.
“Temos um presidente que é declaradamente contra UC, que trabalha o máximo possível para sabotar todo sistema que tinha. Então a coisa ficou diferente […] Hoje, se for colocar um driver, ele é Bolsonaro, porque o ‘driver político’ é movido pelo cenário desse governo”, finaliza o pesquisador da UFPE.
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Arte: Júlia Lima