O direito à cidade e a redução das desigualdades: o caso do bairro Mãe Luiza – RN. Um outro olhar sobre a periferia. Entrevista especial com Ion de Andrade

Desde sua vivência na periferia de Natal, no Rio Grande do Norte, médico articula rede de inclusão social que garanta infraestrutura e lazer, demandas daquela população. Para ele, são bases para qualidade de vida da população e redução das desigualdades

Por: João Vitor Santos, em IHU

Em um contexto de empobrecimento e volta da fome ao Brasil, falar em lazer e direito à cidade parece utópico. Correto? Não. “Ao falar em Direito à Cidade estamos também falando sobre saúde em sentido amplo, enquanto bem-estar físico, mental e social. E, ao consolidar conquistas na área do direito à cidade, galgaremos também melhores indicadores de Saúde Pública”, defende o médico Ion de Andrade.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Ion explica a ideia da criação da Rede Inclusão, discutida na última Conferência Popular pelo Direito à Cidade. “Temos que enfrentar a questão da fome de comida e com o mesmo entusiasmo enfrentar também as questões que tocam às carências alimentares de cultura, de lazer, de esporte, de beleza urbana ou de acolhimento, que são tão espoliadoras de humanidade quando não oferecidas quanto a falta do que comer. Uma e outra desumanizam o homem/mulher humanidade”, analisa.

Ele conhece bem o contexto e a história do bairro Mãe Luiza, em Natal, no Rio Grande do Norte, e por isso sabe que investir nisso – que, para uns, parece supérfluo – transforma realidades. “O conceito de inclusão é necessariamente global, passa pelas questões de sobrevivência e adentra pelas questões do direito à cidade, que na verdade dão sentido e alcance às lutas pela sobrevivência”, defende. E isso tudo, no caso do Mãe Luiza, é curioso, pois a comunidade se instala lá como uma região erma. Depois de luta por condições básicas de vida no bairro, a sanha da especulação imobiliária e turística considera que aquelas pessoas não devem ser vizinhas daquela vista paradisíaca. “As periferias têm mais um sentido sociológico do que geográfico”, observa.

Assim, vê a participação popular como um principal caminho, pois, além de saber exatamente do que precisa, é forma de exercício de cidadania. Perspectivas que, segundo o médico, nem sempre “são claras no campo progressista”, e que, por sua vez, condicionam “muitas vezes uma ‘adesão’ do nosso campo a um ‘desenvolvimentismo’ que às vezes se assemelha ao do período da ditadura, no qual houve grandes obras faraônicas, pensadas para imortalizar os governantes”, completa. Por isso, em tempos de ameaças a conquistas democráticas, evidencia: “se quisermos estabilizar a nossa democracia e avançar no seu aprofundamento, teremos que fazer o dever de casa: implementar o projeto cidadão e emancipatório que será capaz de politizar o povo pela experiência vivida do seu projeto de sociedade”.

Ion de Andrade vive em Natal, no Rio Grande do Norte. É médico, pediatra e epidemiologista, professor da Escola de Saúde Pública do RN e membro da coordenação nacional do Br Cidades, organização que discute o desenvolvimento sustentável e inclusivo das cidades.

Confira a entrevista.

IHU – No que consiste a Rede Inclusão, proposta na “Conferência Popular pelo Direito à Cidade – Plataforma de Lutas pelo Direito à Cidade Junho 2022”?

Ion de Andrade – A Rede Inclusão é a ideia de uma rede de equipamentos sociais voltados para a inclusão social e o direito à cidade a exemplo da Rede SUS, do Sistema Único de Saúde, que é uma rede na qual os dispositivos interagem para produzir saúde. Estamos propondo, portanto, uma rede nova, formada por equipamentos:

(a) para a cultura, como as bibliotecas, os centros culturais, as conchas acústicas, os cineteatros;

(b) esportivos, como os ginásios poliesportivos, as pistas de skate, as piscinas públicas, as pistas de atletismo em torno dos campos de futebol;

(c) para o lazer, como as ruas pedestres, os parques ecológicos, as praças públicas, e

(d) para o acolhimento de vulneráveis, como as casas para idosos, os centros de acolhimento para a juventude em situação de risco social, os centros de velórios que inexistem em muitas de nossas periferias etc.

E propomos políticas como:

(a) a da distribuição de uma infraestrutura higiênico-sanitária em nossas cidades que não têm muitas vezes chuveiros, banheiros públicos e lavanderias distribuídas no território, o que atualmente penaliza as populações em situação de rua, que não têm sequer onde evacuar dignamente, mas que são, independentemente disso, uma necessidade urbana elementar e

(b) melhorias para a estrutura associativa das comunidades que não contam comumente com locais adequados para essas atividades, não dispõem muitas vezes sequer de datashows (projetores), ou de mesas adequadas para as reuniões da comunidade. Isso enfraquece a capacidade de organização do povo.

O problema é tão grave que a maioria desses equipamentos propostos não pertence, como política de oferta universal, a nenhuma área de governo. Ou seja, é como se eles fossem dispensáveis.

Na Conferência Popular pelo Direito à Cidade, a Rede Inclusão foi aprovada sem essa nomenclatura no grupo que discutiu idosos e juventude. Assim, foi aprovada a criação de uma rede de equipamentos sociais para a cultura, o esporte, o lazer e o acolhimento de vulneráveis para as crianças, a juventude e os idosos. Porém, diversos grupos apontaram para a necessidade do enfrentamento dessa problemática da inclusão social e do direito à cidade com uma rede de equipamentos sociais. Em síntese, a Rede Inclusão é o projeto cívico, pensado globalmente à luz do itinerário de lutas de uma comunidade pobre e que servirá para a construção de um novo projeto de sociedade, com a oferta de oportunidades que respondam aos desafios atuais.

IHU – Como a Rede Inclusão dialoga com o Sistema Único de Saúde – SUS?

Ion de Andrade – Na verdade, o SUS e a Rede de Saúde foram uma das fontes inspiradoras da ideia. No SUS, os dispositivos interagem a bem da Saúde Pública. É a mesma ideia para a Rede Inclusão, na qual os equipamentos sociais devem interagir para assegurar a inclusão social e o direito à cidade. E tudo isso, sobretudo, da população excluída da contemporaneidade, que no Brasil corresponde a gigantescos contingentes.

A vantagem é que essa nova rede é incomparavelmente mais barata do que a Rede SUS. Sua implantação e implementação para o terço mais pobre da nossa população como um novo equipamento social, conforme a prioridade de cada comunidade, não chegaria a 1% dos orçamentos anuais das nossas capitais. Os cálculos estão na proposta da Rede Inclusão, como pode ser visto aqui.

IHU – O que levou o grupo a propor uma rede de inclusão?

Ion de Andrade – A Rede Inclusão é a síntese do itinerário de lutas da comunidade de Mãe Luiza. O coletivo Rede Inclusão realizou uma sistematização desse itinerário de quase 40 anos de lutas.

IHU – O que houve de específico em Mãe Luiza que permitiu a sistematização desse itinerário?

Ion de Andrade – No bairro, foi criada, nos anos de 1980, uma instituição, o Centro Sócio Pastoral Nossa Senhora da Conceição, por um padre italiano, Sabino Gentili, que criou, para sustentar a experiência, uma rede de apoios na Europa. A experiência local tinha os valores organizacionais de uma comunidade eclesial de base e o Centro se deu como uma missão de ser a base institucional para as lutas da comunidade.

Portanto, a instituição não agia por moto próprio, mas em apoio ao que era prioritário para a comunidade. E, assim, teve a capacidade financeira de tomar iniciativas para enfrentar muitos dos problemas apontados pela comunidade como prioritários. Além disso, a instituição pôde acompanhar um itinerário de lutas que se iniciou por demandas e prioridades de sobrevivência. Ao longo de 30 anos, esse itinerário evoluiu para prioridades mais relacionadas à inclusão social e ao direito à cidade.

A instituição também percebeu algumas coisas óbvias, mas veladas: tudo o que fez poderia ter sido feito pelo Poder Público, que não se moveu. Flagramos o abandono e a omissão do Poder Público como o principal agente da reprodução contínua das injustiças sociais. Mas, com a ação do grupo, também percebemos as respostas que foram sendo dadas aos problemas da comunidade e materializaram equipamentos sociais, que foram evoluindo desde a enfermaria para crianças desnutridas até o ginásio poliesportivo e a escola de música.

IHU – Qual é o balanço da “Conferência Popular pelo Direito à Cidade – Plataforma de Lutas pelo Direito à Cidade Junho 2022” sobre a situação das cidades brasileiras passado quatro anos do governo de Jair Bolsonaro?

Ion de Andrade – A Conferência é o encontro mais importante para os movimentos populares do Brasil desde a fundação da Rede Brasil Popular. Ela enuncia algo que tem sido secundarizado até mesmo pelos progressistas: a agenda urbana. Trazer essa agenda à pauta foi obra da articulação do Br Cidades. Esse é, hoje, um dos movimentos mais lúcidos e atuantes que temos e que tem como sua representante maior a professora Erminia Maricato, que tem uma capacidade muito rara de unir os diversos e de construir consensos, o que gera muita unidade nessa diversidade que é o Brasil.

IHU – Em sua opinião, houve inovações nas propostas da Conferência Popular pelo Direito à Cidade deste ano em relação às anteriores?

Ion de Andrade – Sim, inúmeras, porque foi dada voz aos diversos segmentos da sociedade que compõem esse prisma urbano-rural do Brasil, e houve simultaneamente 16 oficinas. Além disso, a crise social profunda que atravessamos produziu uma mobilização imensa da sociedade. A conferência teve a participação de 626 entidades e contou com centenas de eventos preparatórios. Oxigênio puro numa conjuntura tão difícil como a atual.

IHU – A questão do impacto das mudanças climáticas nas cidades foi incorporada ao debate? O que se sugere nesse sentido?

Ion de Andrade – Sim, toda uma agenda nesse sentido foi enfrentada com propostas em diversas áreas relacionadas à sustentabilidade urbana. Isso desde a mobilidade à proteção dos mananciais de água, aos cuidados com as barragens e a proteção da natureza. Diria que, de maneira muito transversal, essa preocupação percorreu a maioria das oficinas.

IHU – Que relações podemos estabelecer entre saúde e direito à cidade?

Ion de Andrade – A saúde é um irmão mais velho, porque consolidou-se como direito há mais tempo e conta hoje com o Sistema Único de Saúde, que é uma grande conquista social. Além disso, Saúde Pública e Urbanismo são uma mesma grande área olhada pelo prisma da saúde ou da arquitetura social.

Portanto, ao falar em Direito à Cidade, estamos também falando sobre saúde em sentido amplo, enquanto bem-estar físico, mental e social. E, ao consolidar conquistas na área do direito à cidade, galgaremos também melhores indicadores de Saúde Pública.

IHU – Há o caso de muitas cidades brasileiras, como Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, que discutem reformas e revitalizações de espaços. Na capital gaúcha, o debate centra em torno do Cais Mauá. Mas essas revitalizações nem sempre promovem um amplo direito à cidade, caindo em processos de gentrificação. Como enfrentar isso?

Ion de Andrade – Conheço pouco a cidade de Porto Alegre para opinar especificamente, mas o que vemos em inúmeras cidades no Brasil é que a revitalização não está a serviço da Inclusão Social. Ao contrário, comumente produz a expulsão branca de populações tradicionais pela aprovação de Planos Diretores elitistas e míopes que só enxergam os interesses do capital imobiliário. O que precisamos no Brasil é criar, de forma robusta, espaços e políticas que sejam capazes de mudar para melhor a vida dos milhões de jovens e adultos que estão hoje sem outro horizonte que não seja o de viver um dia atrás do outro, o que produz um mal-estar tremendo e doentio no Brasil.

Veja o município de Natal, no outro Rio Grande [do Norte]: vai gastar R$ 160 milhões em duas grandes obras, a do manejo da Orla e a de um viaduto num cruzamento da cidade. Recentemente, o censo da população em situação de rua do estado identificou duas mil pessoas nessa condição. Esse orçamento – e não estou dizendo que deva ser gasto assim, até porque a solução definitiva dessa problemática passa pelo equacionamento das questões de moradia – serve para exemplificar como seria inacreditavelmente capaz de distribuir R$ 80 mil a cada uma dessas duas mil pessoas em situação de rua.

Esse orçamento corresponde também a dois anos do que estimamos como necessário para implantar a Rede Inclusão em todo o Rio Grande do Norte, ou seja, duas rodadas de oferta universal de implantação de equipamentos sociais conforme a prioridade das comunidades. É imenso. Não estamos num país pobre. Estamos num país injusto no qual as prioridades do povo quase nunca são as prioridades dos governos.

IHU – Ainda nesse sentido, o que restou dos investimentos da Copa do Mundo de 2014 para as cidades? A partir de exemplos como Natal, como analisa a conclusão de alguns projetos enquanto outros ficaram no meio do caminho?

Ion de Andrade – Há alguns anos, Natal discutiu recursos remanescentes da Copa para a avenida Roberto Freire, que liga a cidade ao bairro de Ponta Negra. Eram quase R$ 300 milhões e estavam destinados a construir um monstrengo de concreto que produziria um horroroso segundo andar em toda a avenida. Toda a comunidade natalense foi contrária e o projeto não foi adiante.

Na época, eu e a professora Giovana Paiva, do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, propusemos o desafio, inclusive com uma ferramenta de planejamento urbano que criamos, de converter essa obra única de 300 milhões em 100 obras de três milhões por escolha das comunidades dos bairros populares da cidade. Isso não ocorreu, obviamente, mas se tivesse ocorrido, o processo teria projetado a qualidade de vida da cidade a um nível muito superior ao do conjunto das cidades brasileiras. E os níveis de cidadania do nosso povo, que experimentaria esse novo projeto de sociedade, também teria crescido. E esse foi um investimento remanescente, inferior, portanto, a tantos outros que foram executados.

IHU – Vivemos um contexto de crise econômica e social, com gravíssimo empobrecimento da população que traz de volta o flagelo da fome. Quais os desafios para discutir inclusão nesse cenário?

Ion de Andrade – O conceito de inclusão é necessariamente global, passa pelas questões de sobrevivência e adentra pelas questões do direito à cidade, que na verdade dão sentido e alcance às lutas pela sobrevivência. Portanto, nós temos a obrigação de entender que o desafio civilizatório não para no nível de manter as pessoas vivas, mas deve também assegurar o acesso a uma contemporaneidade de oportunidades e serviços que são patrimônio comum da humanidade, embora vedadas às maiorias do povo.

Assim, temos que enfrentar a questão da fome de comida e com o mesmo entusiasmo enfrentar também as questões que tocam às carências alimentares de cultura, de lazer, de esporte, de beleza urbana ou de acolhimento, que são tão espoliadoras de humanidade quando não oferecidas quanto a falta do que comer. Uma e outra desumanizam o homem/mulher humanidade.

Logo, estamos propondo uma abordagem ampla que ganha ainda maior atualidade porque temos uma geração de jovens se perdendo pelo flagelo da Covid, da fome e do desgoverno atual.

IHU – A participação popular é ainda um caminho para uma construção horizontalizada de cidade? Pensando tanto em participação popular quanto em políticas públicas, o que seria revolucionário hoje para as cidades?

Ion de Andrade – Veja bem, vamos pensar em Paulo Freire, que nos fala de um encontro de saberes. O que significa isso? Que há um saber popular profundo, construído em grande medida numa experiência do cotidiano que jamais deveria ser desprezado na construção de políticas públicas. E há um saber universal trazido muitas vezes por pessoas abnegadas pertencentes em grande parte aos quadros das universidades e que se irmanam com o povo nas discussões sobre saídas. Se não houver esse encontro de saberes, não haverá soluções; são dois polos da mesma bateria, mas, para produzir eletricidade, precisam estar ligados.

Essa necessidade nos fez trabalhar com a ideia do desenvolvimento local, pois a realidade de cada periferia é diferente da de outra, por diversos motivos, riscos ambientais específicos, conquistas específicas, omissões do Poder Público específicas. Essa diversidade cria também prioridades subjetivas e objetivas diferentes. Isso significa que, no trato dessa problemática complexa, nós não vamos obter resultados de saída desse subdesenvolvimento crônico para a opressão e a exclusão social através de políticas públicas “unívocas”, como poderia ser a oferta de creches ou a universalização da Atenção Básica, que enfrentam problemas específicos, como uma lanterna pode iluminar um ponto. Do contrário, nesse cenário precisamos de uma lâmpada que possa iluminar o cenário como um todo.

A diversidade das prioridades deverá ser enfrentada simultaneamente e não numa lógica vertical a partir de um planejamento centralizado. Temos advogado a ideia de que é essencial o protagonismo político e de gestão dos municípios, pois eles podem motivar o planejamento territorial participativo, e temos advogado, ainda, que a política para o desenvolvimento territorial ocorra em programas tripartites capazes de contar com orçamentos públicos das três esferas de governo. Afinal, embora os orçamentos das grandes cidades sejam suficientes para a iniciativa de equipar as periferias, a repartição do bolo tributário privilegia enormemente a União.

Enfrentar desigualdade via diversidade de prioridades

A ideia é construir políticas públicas que possam ao mesmo tempo estar motivadas, pelo enfrentamento da exclusão social e pela diversidade de prioridades, a enfrentar através da oferta de uma liquidez anual a cada comunidade dividida territorialmente. É como o SUS faz para dimensionar a oferta dos seus dispositivos de saúde, para que aquele investimento possa efetivamente beneficiar milhares de pessoas a cada ano. A liquidez anual é o meio pelo qual a política poderá ao mesmo tempo ser global (uma rede de iniciativas) e específica, curando as diferentes feridas enfrentadas por cada comunidade simultaneamente.

Na Rede Inclusão nós elaboramos um “cardápio” de possíveis ofertas públicas para que o povo veja por ele mesmo que aqueles equipamentos podem sim ser implantados no seu bairro, porque a exclusão social faz com que uma comunidade pobre não tenha muitas vezes a coragem de querer uma simples pista de skate ou uma piscina pública. Esses equipamentos poderão servir para o esporte, mas também para o lazer das famílias. Só que as pessoas, muitas vezes, estão intimidadas pela hipnose da exclusão social, num processo que as fez entenderem-se como não estando à altura de um tal investimento público.

Portanto, o cardápio de ofertas deve ser apresentado às comunidades para quebrar essa hipnose produzida através das gerações pela exclusão social. É claro que, nas discussões do planejamento territorial, novas ideias, não previstas no cardápio, poderão surgir como prioridades daquela dada comunidade e deverão ser objeto do investimento público naquele ano.

Participação popular

A participação popular é, portanto, num quadro em que se dá o encontro paulofreireano de saberes, crucial para iniciarmos um novo ciclo de desenvolvimento para a inclusão social e o direito à cidade. Ou seja, é a única forma de romper com o subdesenvolvimento para a exclusão, que é a forma – e isso precisa ser bem entendido – pela qual a sociedade brasileira, injusta como é, se reproduz, folgadamente, através dos séculos massacrando corpos e almas e mantendo vivo o Estado escravocrata.

IHU – A terra ainda é central para falarmos em inclusão nas cidades? Que avanços tivemos? E no que ainda se precisa avançar?

Ion de Andrade – A questão da terra é uma questão central; muitas vezes ela precede outras em termos de prioridade. Em Mãe Luiza, num processo participativo que teve como colaboradora a professora Dulce Bentes do Departamento de Arquitetura da UFRN, o bairro já conta com uma lei de uso e ocupação do solo específica e é uma Área Especial de Interesse Social. Isso assegura uma certa proteção do bairro contra a cobiça do mercado imobiliário, porque Mãe Luiza se situa à beira mar numa localização bonita do ponto de vista paisagístico.

Mas temos que entender que a questão da terra não pode ser o limite da intervenção urbanística, pois ela pode vir a ser questionada e alterada em conjunturas desfavoráveis ao povo. Muda-se um Plano Diretor e se criam pontes para expulsões brancas dos pobres para as lonjuras, como sabemos. Portanto, a questão da terra e a questão do desenvolvimento local global, como descrevemos, ou como a questão da fome e a da falta de acesso à contemporaneidade, devem ser enfrentadas simultaneamente.

Podemos até entender a cronologia da posse como prévia às melhorias, mas muitas vezes é o contrário que se dá. Isso porque as melhorias podem produzir as condições para uma maior participação social, de cidadania e elementos profundos de legitimidade pública que vêm a assegurar a posse.

IHU – Nesse sentido de pensar em inclusão, o que não pode faltar nos programas de governo dos candidatos agora de 2022, seja na disputa ao Executivo ou Legislativo?

Ion de Andrade – Faltam duas coisas que são complementares:

(a) a percepção de que o mecanismo pelo qual a sociedade brasileira se reproduz é a omissão do Poder Público frente às suas responsabilidades civilizatórias com os “de baixo”. Essa omissão ou abandono funciona como uma verdadeira política de Estado que mantém as periferias, bairros populares e zonas rurais continuamente como senzalas contemporâneas frente a um Estado egresso da Casa Grande cuja maior presença ali é repressiva e brutal; e

(b) a percepção de que as saídas devem ser construídas com investimentos públicos (e não com discursos) capazes de fazer cicatrizar essas feridas abertas através de um processo participativo norteado por respostas aos problemas concretos apontados como prioritários pelas diversas comunidades.

Essas duas coisas não são claras no campo progressista. O que, por sua vez, condiciona muitas vezes uma “adesão” do nosso campo a um “desenvolvimentismo” que às vezes se assemelha ao do período da ditadura, no qual houve grandes obras faraônicas, pensadas para imortalizar os governantes. Ou seja, mausoléus, portanto; obras de morte que convivem, por exemplo, com uma “incapacidade” crônica de enfrentar riscos ambientais bem conhecidos que ano após ano continuam matando as famílias pobres na mesma cidade onde a obra faraônica pode estar em andamento. Parte do nosso campo aderiu sem saber ao mecanismo pelo qual a sociedade brasileira se reproduz injusta como é: o abandono/omissão de um Poder Público que comparece perante o povo como a Casa Grande que é, perenizando nas favelas, bairros populares, periferias e zonas rurais, as senzalas eternas ao longo dos séculos e séculos.

Parados no século XVIII

Não é pouco o que falta, pois as nossas periferias estão, em termos de acesso à contemporaneidade, em padrões muito semelhantes ao que foi o século XVIII na Europa. Precisamos de um despertar do nosso campo para fazer eclodir um novo e robusto projeto de sociedade que possa em primeiro lugar beneficiar os mais pobres e quebrar o subdesenvolvimento crônico para a exclusão social inaugurando um desenvolvimento local para a inclusão, no qual não podem faltar investimentos públicos, que, como vimos, não são o problema.

IHU – O senhor atua num bairro de periferia, Mãe Luiza, em Natal, Rio Grande do Norte. Aliás, um bairro que é uma periferia social, mas não uma periferia geográfica. Como é a realidade dessas pessoas que vivem lá?

Ion de Andrade – Isso mesmo, as periferias têm mais um sentido sociológico do que geográfico. As populações em situação de rua ou as que ocupam prédios em regiões centrais de grandes cidades são também periferias ainda que habitem regiões centrais.

Vale lembrar que viver em regiões centrais significa para o nosso povo, muitas vezes, a possibilidade de ir a pé para o trabalho, economizando a passagem do transporte, o que significa mais comida no prato da família. Mãe Luiza tem o privilégio de estar perto do mercado de trabalho, dos serviços de saúde, de escolas públicas situadas em bairros centrais etc. Mesmo assim, muita gente faz diariamente mais de 10 km a pé entre idas e vindas ao trabalho ou mais de 20 km de bicicleta para ir trabalhar. Como disse mais acima, cada periferia é muito específica e as estratégias de saída também deverão sê-lo

IHU – A história do Mãe Luiza é de muita luta. Gostaria que o senhor recuperasse essa história de forma breve e analisasse no que ela pode inspirar na busca pelo direito à cidade.

Ion de Andrade – Ao longo desses mais de 30 anos que eu acompanho as lutas e sofrimentos daquela comunidade, atravessamos várias fases. Inicialmente, no início dos anos de 1990, as lutas foram tremendamente marcadas por uma situação de pobreza extrema. Muitas casas eram ainda de taipa ou palha de coqueiros. As ruas eram em boa parte ainda de areia, porque o bairro se situa sobre dunas. A mortalidade infantil era muito alta, ultrapassando os 60 a 70 bebês mortos por mil nascidos vivos, e muitas famílias não tinham acesso à água encanada ou à eletricidade. A coleta de lixo era precária e havia uma imensa quantidade de ratos, que atacavam as pessoas. Não passava uma semana em que eu, como pediatra que sou, não atendesse ao menos uma mãe com um bebê que havia sido atacado à noite por ratazanas.

A nossa instituição sempre atuou escutando a comunidade. O trabalho inicial implementado pelo padre Sabino, que era salesiano, foi o da alfabetização de crianças e adultos. Depois, criamos um projeto, anterior aos agentes comunitários de saúde, para o enfrentamento da mortalidade infantil, no qual tivemos dez mães visitadoras que visitavam todas as gestantes e bebês do bairro. Esse projeto durou cerca de dez anos e foi precedido e acompanhado por vários seminários sobre saúde da criança. A mortalidade infantil no bairro – porque é o que acontece quando ela é alta e devido a causas evitáveis e tratáveis – caiu vertiginosamente para algo como 14 por mil nascidos vivos nos primeiros dois anos de trabalho.

Na sequência, vimos os problemas mais sérios se acumularem entre idosos, pois a população começava a envelhecer e a mortalidade infantil ficar para trás. Fizemos o seminário “Mãe Luiza cuida dos seus idosos”, após o qual descontinuamos o nosso projeto materno-infantil e abrimos uma instituição de longa permanência de idosos.

Direito à cidade

Em 2006, depois de muitos seminários temáticos, fizemos um sobre o desenvolvimento do bairro: “Mãe Luiza lembra o seu passado e pensa o seu futuro.” Foi nele que a agenda da inclusão social e do direito à cidade apareceu de forma mais clara. A comunidade identificou a ausência de espaços para a cultura, o esporte, o lazer, necessidades prioritárias. E fomos em busca disso.

Tivemos sorte de poder ter construído, com o apoio de amigos, sobretudo da Europa, em especial da senhora Nicole Miescher, um ginásio poliesportivo e depois uma escola de música. Temos uma bela filarmônica de jovens e já fomos medalhistas nacionais em ginástica feminina e em Taekwondo. Sabemos, por experiência vivida, que a construção do acesso à cidadania, à autoestima, à inclusão social e ao direito à cidade é possível. Sabemos que não está além sequer do que o município de Natal ou o Estado do Rio Grande do Norte poderiam fazer com os seus próprios orçamentos se quisessem. Porém, a verdade é que ao longo de todo esse período tivemos mais ausências do que presença do Poder Público, mais omissões do que ações.

As lutas pela inclusão social e pelo direito à cidade têm como o seu maior adversário a cultura política vigente e consensual que normaliza a relação Casa Grande & Senzalas, ou, atualizando a terminologia, Estado & Periferias. Essa verdadeira política de Estado do subdesenvolvimento proposital para a exclusão social é a mais perene e consensual que temos. Se o governante progressista não tiver consciência dela, será mais um a reproduzi-la.

Esse é um aprendizado estratégico que a lida em Mãe Luiza nos ensinou.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Ion de Andrade – A estabilidade da democracia depende umbilicalmente dos níveis de cidadania do nosso povo. Quanto mais numerosa e emancipada for essa cidadania, mais estável a democracia. Cidadania significa politização, participação, identidade social, compreensão de um projeto de sociedade. Precisamos de um projeto cívico robusto para reproduzir essa cidadania em níveis populacionais ou teremos eternamente um Estado de direito refém dos coronéis e cercado de capitães do mato e de jagunços.

O povo se politiza com a experiência do seu projeto de sociedade. É o que ocorreu no Nordeste sob o governo Lula, quando, naquela situação de extrema pobreza, políticas adequadas e alinhadas àquele momento foram implementadas. Isso produziu uma lealdade longeva e visceral dos nordestinos àquele projeto. Se sonhamos hoje com a redemocratização do Brasil, isso só é possível devido aos níveis de politização dos nordestinos.

Então temos que entender como se dá e o que é esse processo de politização do povo que produz essa tão preciosa cidadania que estabiliza a democracia para implementar onde for possível esse projeto emancipatório. Isso inclui as ações municipais que podem até parecer isoladas, mas poderiam ser multifocais se houvesse uma articulação política nacional para isso – que inexiste, obrigando cada prefeito do nosso campo a fazer o seu trabalho sem qualquer orientação geral – e deveria estar articulada com a perspectiva de que esse processo evoluísse de multifocal para sistêmico quando alcançássemos o poder político nacional.

Se quisermos estabilizar a nossa democracia e avançar no seu aprofundamento, teremos que fazer o dever de casa: implementar o projeto cidadão e emancipatório que será capaz de politizar o povo pela experiência vivida do seu projeto de sociedade, como ocorreu no Nordeste sob os governos Lula, e de produzir cidadania longeva e politicamente lúcida a cento por um.

Imagem: Keila Vieira

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