Tribunal de Apelação britânico aceitou jurisdição da ação, que defende mais de 200 mil atingidos no ES e MG
Por Fernanda Couzemenco, Século Diário
Uma decisão histórica, envolvendo uma das maiores ações coletivas já movidas na Inglaterra, sobre o maior crime ambiental do Brasil e o maior da mineração mundial. Nesta sexta-feira (8), o Tribunal de Apelação inglês publicou sua decisão de aceitar a jurisdição para julgar o processo sobre a responsabilidade da mineradora anglo-australiana BHP, uma das acionistas da Samarco, ao lado da Vale, no rompimento da Barragem de Fundão, ocorrido em Mariana/MG, no dia 5 de novembro de 2015.
A ação defende os direitos de mais de 200 mil atingidos no Espírito Santo e Minas Gerais, incluindo 25 municípios, cinco autarquias, 531 empresas de diferentes portes e 15 instituições religiosas.
Com a decisão, o caso agora deve seguir para a fase de mérito, em que será determinada a responsabilidade das empresas sobre os danos causados pelos cerca de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração que vazaram da barragem, destruindo centenas de comunidades ao longo de 600 km de leito do rio Doce, alcançado o litoral capixaba e matando dezenove pessoas.
O processo é movido pelo escritório de advocacia internacional PGMBM contra as empresas administradoras da BHP. O objetivo é “buscar reparação integral pelas perdas sofridas por nossos clientes”, afirma o PGMBM.
Ao aceitar a jurisdicação do caso, o Tribunal de Apelação rejeitou, na totalidade, a contestação da BHP. Entre os fundamentos que embasaram a decisão, estão: nenhum dos autores ou réus são parte nas várias ações civis públicas movidas no Brasil; existe grande incerteza quanto à possibilidade de os autores alcançarem compensação adequada no Brasil em comparação com a Inglaterra; a provável demora na resolução da principal ação civil pública (ACP) e a provável inaptidão dos autores para se ajuizar uma nova ACP contra a BHP no Brasil e consolidá-la com a ACP.
O julgamento dos três juízes da Corte de Apelação – Nicholas Underhill (vice-presidente), Popplewell e Sue Carr – foi unânime.
“Ao aceitar a jurisdição, o Tribunal de Apelação inglês deu esperança para as pessoas afetadas pelo maior desastre ambiental já ocorrido no Brasil, que há quase sete anos buscam justiça e reparação para reconstruírem suas vidas”, afirma Tom Goodhead, sócio-administrador Global do PGMBM.
A BHP ainda pode apelar à Suprema Corte do Reino Unido. No entanto, diferente do que ocorre no Brasil, não é possível recorrer diretamente e é preciso obter permissão da corte para apresentar o recurso, o que é muito difícil de se obter.
A audiência para decidir sobre o julgamento ou não da ação contra a BHP ocorreu em abril, no Tribunal de Apelação da Inglaterra. Foram cinco dias de oitivas, transmitidas ao vivo pela internet, para as quais uma comitiva brasileira representou as mais de 200 mil vítimas defendidas na ação movida pelo PGMBM.
‘Não foi desastre, foi crime’
“Não chamamos de desastre, chamamos de crime, pois foi algo que eles sabiam que iria acontecer”, afirmou, na ocasião, Marcelo Krenak, um dos membros da comitiva brasileira. Indígena na Terra Krenak, localizada à beira do Rio Doce em Resplendor, próximo à divisa com o Espírito Santo, Marcelo relata o sentimento da comunidade no momento em que a lama chegou à Terra Krenak.
“Naquele dia do crime, minha comunidade se reuniu à beira do rio e começamos a ver descendo pela água milhares e milhares de peixes mortos”, descreveu Marcelo Krenak. “Estávamos na época da piracema, os peixes subiam o rio para postarem os seus ovos, e nessa época veio o golpe fatal do rompimento da barragem”, relembra, ressaltando a importância do rio para sua comunidade. “O rio é parte de nós, de nossa cultura”, contou.
Durante a estadia em Londres, os atingidos receberam solidariedade de lideranças políticas e entidades inglesas diversas, incluindo sindicatos, ONGs e o Fórum dos Fundos de Pensão das Autoridades Locais (LAPFF), que publicou um relatório impactante sobre práticas de direitos humanos na indústria da mineração.
Má governança ambiental e social
No relatório, o LAPFF critica a atuação da mineradora BHP em relação ao crime de Mariana e avalia que as grandes mineradoras pecam pela falta de responsabilidade relacionada a práticas ambientais, sociais e de governança em joint ventures entre empresas. O estudo, que analisa as práticas de mineradoras da perspectiva de grandes investidores, ressalta que os riscos e impactos ambientais, sociais e de governança que afetam os direitos humanos de indivíduos e comunidades, também têm sérias consequências financeiras.
O presidente do LAPFF, Cllr Doug McMurdo, declarou que “estas más práticas são de grande preocupação para mim, não apenas como ser humano, mas como investidor. Se eu olhar para os relatos de quantas vidas, meios de subsistência e ambientes foram destruídos, e quanto dinheiro poderia ter sido economizado por meio de uma governança apropriada e da devida diligência em relação aos direitos humanos, a escala é da ordem de bilhões de dólares, embora, é claro, as vidas não tenham preço. Como investidores, temos sido, com muita frequência, meros espectadores de uma farsa humana e financeira. Este relatório mostra que tanto nós quanto as empresas devemos mudar”.
O processo
A ação do PGMBM foi impetrada em 2018, inicialmente contra a BHP Group Plc (antiga BHP Billiton PIc) e BHP Group Limited, controladoras da Samarco, na Inglaterra, país sede da BHP.
Em novembro de 2020, a Justiça inglesa decidiu por não aceitar o caso. O escritório recorreu.
O processo foi reaberto em julho de 2021, por um painel de juízes do Tribunal de Apelação, concedendo então permissão para que o PGMBM recorresse da decisão negativa de 2020. A audiência de apelação aconteceu em abril de 2022, cuja decisão foi publicada nesta sexta-feira.
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Foto: Leonardo Merçon – Instituto Últimos Refúgios