Vem aí Mês da Bíblia de 2022, setembro, com o livro de Josué com o lema: “Seja firme e corajoso porque Javé teu Deus estará contigo, onde quer que vás” (Js 1,9), na luta pela terra e pelos territórios. Após três pequenos artigos com “chaves de leitura” para o livro de Josué, queremos socializar aqui mais algumas “chaves de leitura” para lermos de forma libertadora e profética o livro de Josué, que contém narrativas que, se bem entendidas, podem nos inspirar muito na luta pela terra e pelos territórios e no jeito de administrá-los de forma democrática e sustentável, exorcizando a tentação de recair no mito da propriedade privada capitalista.
No livro de Josué, em Js 14,1-5 refere-se à partilha da terra por sorteio: “A herança (terra) foi dada por sorte” (Js 14,2). Discernir qual o método e os critérios a serem seguidos na luta pela terra e na sua partilha é um desafio. Exige apropriar-se das lições da luta pela terra na história dos povos da Bíblia e de muitos outros povos. Exige também ler e interpretar de forma sensata a conjuntura, escolher táticas e firmar estratégias. Por que partilhar a terra conquistada via sorteio? A partilha da terra não deve ser feita por eleição, mas por sorteio, pois não é mercadoria para ser negociada. Em Josué aparecem várias palavras para se referir à terra partilhada: sorteio, sorte, parte, quinhão, lote. A palavra sorteio aparece em Js 14,2; 18,51; 21,4.4.5.6.8.10.20.40; 23,4; lote/parte, em Js 15,1; 16,1; 17,1.14.17; sorte/lote, em Js 18,6.8.10.11; 19,1.10.17.24.32.40.
A meritocracia é refutada com veemência pelo Evangelho de Jesus Cristo. Em Mt 20,1-17 diz-se, de forma enfática, que trabalhadores que trabalharam 9 horas, 6 horas, 3 horas e outros apenas 1 hora, receberam salário igual, “uma diária para cada um, começando pelos últimos” (Mt 20,8), pois o justo para Jesus se define a partir das necessidades das pessoas. Se todos os/as trabalhadores/as têm necessidades semelhantes, logo o justo é atribuir salário igual para todos/as. Normalmente, na luta pela terra combinam-se dois critérios principais: participação na luta e necessidade da família. Com estes dois critérios se faz o sorteio dos lotes conquistados. Para conquistar a terra e distribuí-la a todos, por sorteio, segundo a necessidade de cada um/a, é preciso vencer os “reis” que controlam a terra, explorando quem nela trabalha.
Os líderes da luta pela terra podem receber terra? Eis uma questão crucial. Segundo o livro de Josué, a tribo dos Levitas não recebe terra. “Aos levitas, porém, não deu nenhuma herança no meio dos outros” (Js 14,3). Isto é enfatizado: “E aos levitas não foi dada uma parte na terra” (Js 14,4). Os levitas tinham a missão de animar a comunidade, celebrar cultos, cuidar da dimensão religiosa e espiritual da caminhada e da luta. Não dar terra para os levitas é uma forma de dizer que os líderes espirituais precisam ser pobres. Não podem ter patrimônio, pois o lugar social, se não determina, pelo menos condiciona muito o jeito de pensar e agir. Ser pobre no meio do povo é o que dá uma santa autoridade para os levitas. Atualmente, vemos como líderes religiosos que se deixam levar pelo conforto, luxo e regalias de riqueza acabam se tornando falsos profetas e sacerdotes hipócritas, muitas vezes, lobos em pele de ovelhas.
Não foram somente os hapirus ouhebreus, mencionados nas cartas de Amarna (Egito; século XIV a.E.C.) e escravizados sob o imperialismo dos faraós no Egito que, protagonizaram o Êxodo (Fuga das garras dos faraós do Egito) e as lutas pela conquista da Terra Prometida por Javé. Vários grupos foram escravizados e fugiram da fornalha das relações sociais escravocratas do Egito sob o domínio dos faraós. Foram eles: a) os já mencionados hapirus; b) os empobrecidos da cidade, do clã de Raab;
c) pastores seminômades das estepes, endividados (shasu, mencionados em documentos egípcios); d) pastores seminômades de Madiã, terra de Jetro, sogro de Moisés;e) camponeses cananeus empobrecidos; f) povos de outras etnias, também violentados na sua dignidade humana.
Todos estes povos se articulam em clãs e tribos, primeiramente, nas montanhas, livres dos reis das Cidades-Estados de Canaã. Inclusive pastores seminômades descendentes dos patriarcas, e que não tinham participado do Êxodo do Egito, já haviam migrado para as montanhas. A presença de “estrangeiros” na luta pela terra e na terra, no livro de Josué, está em sintonia com o que defende o Terceiro-Isaías (Is 56-66) e os livros de Rute e de Jonas, em discordância com os livros de Esdras e Neemias, que em tom de restauração primam pela pureza racial e ritual como condição para a reconquista da terra e a afirmação como “povo de Deus”.
Muito mais do que afirmar que o povo, com fé em Javé, conquistou e partilhou a terra prometida por Javé, o livro de Josué quer mostrar o como, o jeito, o caminho trilhado para se conquistar a terra. Eis alguns exemplos. O livro de Josué enfatiza que Josué acolheu a voz de Javé e se levantou, de cabeça erguida, olhar firme, sem ficar enroscado em complexos de impotência (“Ah se eu pudesse!?”), ou de pequenez (“Quem sou eu!” “Se eu tivesse poder ...”). A exortação de Javé para Josué se levantar aparece várias vezes. “Levanta-te!” (Js 1,2; 7,10.13; 8,1).
O livro de Josué mostra também que a coragem de lutar é imprescindível para a conquista da terra. “Uma pessoa corajosa vale mais que um exército”, diz certa sabedoria popular. A exortação à coragem também aparece várias vezes. “Sê forte e corajoso!” (Js 1,6.7.9.18; cf. 10,25). O livro de Josué mostra que coragem é o contrário do medo. Quem tem medo não tem coragem e não será exitoso na luta pela terra. A exortação a exorcizar o medo é enfatizada muitas vezes. “Não temas!” (Js 1,9; 8,1; 10,8; 11,6; 10,8; 11,6; cf. 10,25). Entretanto, coragem não se adquire apenas com oração, mas com mãos à luta, que é o melhor remédio para expulsar o medo e infundir coragem. Quem entra para a luta coletiva pela terra e por qualquer direito humano pouco a pouco vai crescendo em coragem e perdendo o medo de se arriscar nas lutas justas e necessárias. Quem não luta vai sendo pouco a pouco tomado pelo medo e pelo desânimo.
Nota:
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG