Legado de Zé Maria do Tomé consolida Ceará na resistência aos agrotóxicos

Projeto Brasil Sem Veneno identificou doze iniciativas no estado; morte de líder camponês na Chapada do Apodi, em 2010, fomentou criação de projetos educativos e aprovação de lei que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos; setores do agronegócio contestam

Por Nanci Pittelkow, especial para De Olho nos Ruralistas e O Joio e O Trigo

Em 21 de abril de 2010, José Maria Filho, conhecido como Zé Maria do Tomé, foi assassinado em Limoeiro do Norte (CE), vítima de uma emboscada próxima à comunidade onde residia e que lhe emprestava o nome. O município fica na Chapada do Apodi, uma região montanhosa e fértil localizada na divisa entre Ceará e Rio Grande do Norte, localmente chamada de “filé mignon” do agronegócio cearense.

A luta de Zé Maria começou quando sua filha, Márcia, então com 9 anos, passou a apresentar uma infecção de pele que não se curava. Os médicos sugeriram que roupas, lençóis e toalhas da menina fossem escaldados, mas não houve melhora. Foi quando uma senhora sugeriu que ela tomasse banho com água mineral. Márcia se recuperou.

Zé Maria começou a ligar os pontos. Além da filha, várias pessoas da comunidade estavam adoecendo anormalmente. Pouco antes, uma piscina de abastecimento de água da região fora contaminada pela pulverização de agrotóxicos, causando a morte de peixes, galinhas e outros animais.

“A pulverização aérea passava por cima das casas, por cima da igreja, parecia que estava nevando”, conta Maria do Socorro Guimarães de Oliveira, agricultora da comunidade e amiga de Zé Maria. “Ele alertava que as pessoas não davam ouvidos naquele momento, mas perceberiam o efeito disso depois de dez anos”. Socorro chegou a testemunhar ligações com ameaças contra Zé Maria, o que não intimidava o líder camponês. “Se me matarem e continuarem minha luta, eu morrerei feliz, pois continuarei vivo dentro dela’, ele dizia, segundo Maria do Socorro.

E a luta, de fato, continuou. O levantamento inédito de resistências contra os agrotóxicos realizado pelo projeto Brasil Sem Veneno — uma parceria entre De Olho nos Ruralistas e O Joio e o Trigo — mapeou doze iniciativas no Ceará, entre projetos de âmbito municipal e estadual. Destas, quatro homenageiam diretamente o legado de Zé Maria.

São elas: a Semana Zé Maria do Tomé, evento educativo que ocorre anualmente na Chapada do Apodi reunindo organizações populares, acadêmicas e sindicais que se aliaram na luta do líder camponês; a Escola Família Agrícola Jaguaribana, da Comunidade de Olho d’Água dos Currais, em Tabuleiro do Norte; o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador e Ambiente (Ceresta), com sede em Limoeiro do Norte; e a Lei Estadual nº 16.820/19, mais conhecida como Lei Zé Maria do Tomé.

PRIMEIRO CASO COMPROVADO DE MORTE TEM INDENIZAÇÃO PENDENTE

Pesquisas acadêmicas confirmaram a percepção de Zé Maria muito antes do que o previsto por ele. Durante anos, o líder camponês percorreu rádios, igrejas, Câmara Municipal e sindicatos para denunciar os efeitos nocivos dos agrotóxicos. Vendo que não era levado a sério, ele passou a contatar as universidades, contando com o apoio da Cáritas, uma organização humanitária da igreja católica.

Em 2013, pouco depois de sua morte, um estudo publicado pelo Núcleo Tramas da Universidade Federal do Ceará (UFC) indicou que Limoeiro do Norte, Quixeré e Russas, municípios diretamente atingidos pelas pulverizações, registravam 38% mais mortes por câncer em comparação com doze outros municípios de perfil socioeconômico similar, mas sem atividade de fruticultura extensiva.

“Vi mulheres muito jovens com câncer de mama durante as pesquisas”, conta Saulo da Silva Diógenes, médico pesquisador do Tramas, que atuou no trabalho. “Testemunhei o caso de um agricultor morto aos 31 anos por câncer e histórico de uso massivo de veneno”.

A pesquisa de 2013 revelou um índice 76% superior de internamentos por casos de câncer na Chapada do Apodi. Só que as patologias vão além: “A cada 3 empregados examinados, um apresenta sintomas de intoxicação aguda no momento do exame”, revela a médica Raquel Rigotto no documentário “Chapada do Apodi, morte e vida“, lançado no mesmo ano. Tanto o Núcleo Tramas quanto o filme fazem parte do levantamento do projeto Brasil Sem Veneno.

O acúmulo científico em torno das contaminações na região levou ao primeiro caso de condenação de uma empresa privada por exposição continuada de um trabalhador a venenos agrícolas. Vanderlei Matos da Silva faleceu em 2008, vítima de uma hepatopatia grave — isto é, seu fígado parou de funcionar. Todas as outras causas possíveis da patologia, como vírus, bactérias, alcoolismo, uso de remédios ou drogas, foram descartadas. Sobrou apenas a intoxicação pelo manejo de agrotóxicos, reconhecida oficialmente pelo Tribunal Regional do Trabalho no Ceará em 2018, uma década após Vanderlei falecer.

Depois de alguns meses atuando na multinacional Del Monte, Vanderlei foi transferido para a área de misturas e armazenagem dos venenos utilizados na plantação de abacaxis. Permaneceu por três anos na função. “Quando adoeceu, foi um mês até sua morte”, conta a esposa, Maria Gerlene Silva dos Santos. “No hospital, ele falava que se saísse daquela situação processaria a empresa. Foi por isso que eu entrei na justiça, pela família, pelo nosso filho”. Depois de catorze anos, Gerlene obteve vitória em todas as instâncias, mas ainda aguarda a ordem do juiz para o pagamento. “Às vezes dá muita revolta”, desabafa. “Chama justiça, o nome já está dizendo, não injustiça”.

AGRONEGÓCIO TENTA DERRUBAR LEI ESTADUAL NO SUPREMO

O Ceará foi o primeiro — e, até agora, único — estado do país a sancionar uma lei que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos. A Lei Zé Maria do Tomé (16.820/19) foi apresentada pelo deputado estadual Renato Roseno (PSOL) assim que tomou posse, em 2015. Foram quatro anos de embates até a aprovação pela Assembleia Legislativa, em dezembro de 2018. “O agronegócio mobiliza tudo o que pode, com influência política e pareceristas dizendo que tudo é seguro”, conta o deputado. “Com muita paciência e rigor e a participação dos movimentos do campo conseguimos essa vitória”.

As audiências públicas tiveram depoimentos e comprovações científicas de médicos e especialistas do Instituto Nacional do Câncer (Inca), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Núcleo Tramas da UFC, mostrando os impactos sanitários, sociais e ambientais da deriva de pesticidas.

Proibida em diversos países, a pulverização aérea é responsável pela contaminação do solo e do ar, além de atingir áreas vizinhas à sua aplicação em decorrência da deriva, escoamento superficial, derramamento e lixiviação do solo, mesmo quando aplicada sob temperatura e vento ideais. Isso coloca em risco mananciais, afetando peixes e outros organismos, contamina a superfície do solo e as águas subterrâneas e representa perigo para as pessoas, que se tornam vulneráveis à ingestão de água e alimentos contaminados, bem como à potencial exposição durante a aplicação.

Após ser sancionada pelo governador Camilo Santana (PT), em janeiro de 2019, a Lei Zé Maria do Tomé tornou-se alvo de uma batalha judicial promovida pela Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Ceará (Faec) e seus aliados nacionais. Organizações do agronegócio tentaram derrubar a legislação em pelo menos três oportunidades, por meio de mandado de segurança, moção popular e Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). Perderam as três.

Em 2021, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja) e o Sindicato Nacional da Aviação Agrícola entraram com nova ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF). No momento, o julgamento está paralisado, atendendo a um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, denunciado por uso irregular de agrotóxicos em suas fazendas no Mato Grosso. Carmem Lúcia e Edson Facchin votaram a favor da constitucionalidade da lei.

RESISTÊNCIAS INCLUEM CENTRO DE SAÚDE E ESCOLA AGROECOLÓGICA

Em janeiro de 2010, a Câmara Municipal de Limoeiro do Norte aprovou uma lei proibindo a pulverização aérea no município. “A União Europeia havia aprovado uma lei assim alguns meses antes”, lembra a pesquisadora Raquel Rigotto. O prefeito do município tentou derrubar a lei embutindo um “jabuti” em uma nova regulamentação ambiental, mas a iniciativa foi combatida por Zé Maria, que convocou o povo e ocupou a Câmara. “Retiraram o projeto da pauta naquele dia”, recorda Socorro, amiga do líder camponês. Um mês depois de sua morte, a lei contra a pulverização caiu.

“O agro tenta criar pânico dizendo que sem agrotóxicos a produtividade cai e o cultivo de alimentos seria inviável”, conta Renato Roseno. “Três anos depois da pulverização por avião ser proibida no estado, a produção de bananas aumentou”. Os dados estão compilados em uma nota técnica da Grupo de Pesquisa Territórios do Semiárido, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). O estudo concluiu que a produção de banana no Ceará registrou um aumento da quantidade produzida, da área plantada e da produtividade nos anos posteriores à promulgação da Lei Zé Maria do Tomé. Do mesmo modo, houve um aumento na exportação de banana pelo Ceará, registrando-se um acréscimo na quantidade exportada e no valor gerado.

Este é apenas um dos exemplos colhidos durante a pesquisa do Mapa de Resistências aos Agrotóxicos de que é possível produzir e gerar renda sem o uso intensivo de venenos. Para isso, a comunicação e a educação de base são essenciais.

Uma das iniciativas que trabalham sob esta perspectiva é o Movimento 21, que organiza a Semana Zé Maria do Tomé, evento que conta com romarias, encontros e seminários e já consta nos calendários oficiais de Limoeiro do Norte e do estado. “O movimento fomenta na região uma cultura permanente de crítica ao agronegócio e de vigilância da expansão dele”, comenta Raquel. “Reúnem denúncia de mortes de abelhas, difundem informações nas escolas sobre esse modelo produtivo, riscos à saúde, ao ambiente, sobre injustiça hídrica”.

Outra conquista listada pelo projeto Brasil Sem Veneno foi a instalação em Limoeiro do Norte do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador e Ambiente (Ceresta), uma das nove unidades do Ceará. O Ceresta Zé Maria do Tomé foi inaugurado em 2014, para combater a subnotificação de doenças relacionadas ao trabalho, especialmente as causadas por agrotóxicos, a partir de formações e capacitações.

O centro é gerido desde 2020 por Antonia Márcia Xavier, filha de Zé Maria. Formada em Psicologia, ela defende que o fim da pulverização aérea trouxe ganhos para a comunidade. “Na aplicação manual, a deriva é menor”, afirma. “Mas no caso das intoxicações, muitos funcionários já chegam assumindo a culpa, dizendo que fizeram o manejo errado do produto”.

Márcia aponta a necessidade de equipes de fiscalização do trabalho independentes da vigilância sanitária municipal, que sofre influência política das empresas do agronegócio. “O controle de vendas também é necessário”, diz.

— Vemos muitos pequenos agricultores intoxicados, pois seguem o modelo dos grandes. Onde tem menos casos de problemas de saúde gerados por agrotóxicos? No Acampamento Zé Maria do Tomé, do MST, e nos cultivos da Escola Familiar Agrícola.

ACAMPAMENTO DENUNCIA GRILAGEM E PRODUZ SEM VENENO

Em maio de 2014, um grupo de trabalhadores sem-terra ocupou um espaço de 1.000 hectares, dentro de uma área de 1.700 hectares reivindicada para a reforma agrária, criando o Acampamento Zé Maria do Tomé, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Primeiro, os agricultores tiveram suas terras desapropriados para a criação do perímetro irrigado, em um projeto do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) que remonta ao período da ditadura militar. Entre os anos 80 e 90, as primeiras empresas começaram a se instalar, impondo o modelo da fruticultura para exportação. Com o capital privado, veio a grilagem de terras.

Na tese de doutorado ““As firmas tomaram conta de tudo”: agronegócio e questão agrária no Baixo Jaguaribe – CE“, o geógrafo Leandro Cavalcanti constata com dados do próprio Dnocs que, dos 9.605,71 hectares totais do perímetro irrigado Jaguaribe-Apodi, 3.817,66 estavam em situação irregular, ou seja, 40% de toda a área.

“A grilagem é praticada pelas firmas Frutacor, Del Monte, Banesa, WG Fruticultura e Betânia, além de pequenos e médios produtores que também se apropriaram das terras públicas”, informa a tese. O mandante do crime contra Zé Maria, João Teixeira Júnior, mais tarde excluído da denúncia, é dono da Frutacor.

“Somente quatro empresas ocupam 25 mil hectares dentro do “filé mignon” do agronegócio dentro da Chapada do Apodi”, conta Camila Dutra dos Santos, professora do núcleo Na Terra da Universidade Estadual do Ceará (Uece). “As empresas se instalaram às margens do perímetro irrigado, e com o passar dos anos foram avançando as suas cercas dentro da infraestrutura pública”.

O acampamento produz predominantemente de forma agroecológica e doou toneladas de alimentos para a comunidade local durante a pandemia. Outra conquista foi a instalação, em 2016, da Escola Família Agrícola (EFA) Jaguaribana Zé Maria do Tomé, voltada para a permanência dos jovens no campo na perspectiva da agroecologia. O acampamento, porém, se mantém no terreno apenas pela resolução do STF que impede despejos durante a pandemia, já que perdeu ações contra a reintegração de posse em todas as instâncias.

Imagem em destaque (Denise Matsumoto): projeto Brasil Sem Veneno mapeia resistências contra os agrotóxicos em todo o país

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