Sophie Zang compartilhou relatório alertando para problemas que a empresa fingia não ver. Demitida, ela negou um acordo de 64 mil dólares que a obrigaria a permanecer calada
Por Natalia Viana, Agência Pública
A imagem de Sophie Zang aparece na tela do computador para uma chamada via Zoom. Jovem, de óculos de aros grossos e dois fones de ouvido que parecem aquele que gamers usam para uma melhor experiência imersiva, sua fala é entrecortada por uma gagueira que poderia ser atribuída à timidez ou nervosismo. Mesmo assim, essa americana de 30 anos fala de maneira resoluta. Em setembro de 2020, Zang tornou-se, sem querer, uma denunciante, quando decidiu compartilhar um longo relatório com seus colegas do Facebook em uma rede interna, alertando para os problemas que a empresa fingia não ver.
“Eu sei que tenho sangue nas minhas mãos agora”, escreveu no memorando, cujo objetivo era encorajar os colegas a mudarem a empresa de dentro. “Encontrem outros colegas que compartilham das suas convicções e trabalhem juntos. O Facebook é muito grande para qualquer pessoa sozinha consertá-lo”, escreveu.
Sophie acabava de ser demitida por “baixa performance”, e negou um acordo de 64 mil dólares que a obrigaria a permanecer calada. A postagem foi feita no seu último dia de trabalho, e logo foi removida pelo Facebook.
O memorando vazou para a imprensa, e foi publicado pelo Buzzfeed contra a vontade de Zang. “Mas era uma bomba: entre outras coisas, contava que ela e seus colegas encontraram e removeram 1,9 milhão de fãs falsos de páginas e 5,6 milhões de reações falsas e robotizadas que apoiavam políticos brasileiros durante as eleições de 2018.
Além disso, Zhang descobriu que o partido governista do Azerbaijão “utilizou milhares de contas inautênticas para assediar a oposição” e que uma rede “sofisticada de mais de mil pessoas trabalhavam para influenciar eleições locais em Delhi em fevereiro de 2020. Apesar de muitos desses casos terem sido deletados, o Facebook nunca disse isso publicamente nem tomou nenhuma atitude para responsabilizar esses políticos.
Tudo isso só aconteceu porque Sophie Zange decidiu tomar para si a tarefa de lutar contra atividades políticas inautênticas na plataforma.
“Eu comecei a ter insônia, não conseguia dormir à noite. Porque eu duvidava das decisões que eu estava tomando. Quero dizer, eu sou humana. Eu não posso prever o futuro”, disse Sophie durante a entrevista online para a Agência Pública.
Sophie começou a trabalhar para o Facebook em janeiro de 2018, recém-saída da universidade. Tinha 26 anos e era a primeira vez que trabalhava em uma grande corporação – antes, ela havia trabalhado em uma pequena start-up. Formada em física pela Universidade de Michigan, entrou na empresa como cientista de dados e logo foi alocada para a Equipe de Engajamento Cívico. Seu principal trabalho, lembra, era detectar redes de contas falsas que funcionam como spam. Ao explicar o que isso significa durante a entrevista, ela assume um tom professoral: “Por contas falsas, quero dizer, por exemplo, contas falsas com pessoas e que não existem. Isso também significa contas hackeadas. Também me refiro a contas autocomprometidas. Se alguém convencê-lo a obter o acesso à sua conta para que eles possam fazer coisas com ela. É como pensar em vender sua versão online para outra pessoa”.
Ela ressalta que a maioria das atividades falsas não tem nada a ver com política. “A maioria das pessoas não são políticos. E a maioria das discussões nas redes sociais não é sobre política. São pessoas comuns como você e eu que fazem posts sobre a vida, a carreira, a religião, as crenças pessoais e tudo mais”. O tipo de atividade que era seu dever localizar tem mais a ver com adolescentes que acabam comprando “likes” falsos pela internet, muitas vezes feitos por fazendas de likes ou scripts automatizados.
“Eu sei que fui colocada em uma posição impossível”
O problema de Sophie talvez tenha sido sua extrema curiosidade sobre o mundo. Em pouco tempo, através de cruzamentos de dados, ela passou a identificar atividades políticas que, da mesma maneira, inflavam determinados discursos em países tão distantes como o Equador ou o Azerbaijão. “Eu comecei a investigar essas contas no meu tempo livre, porque não era parte do meu trabalho, de fato. Nunca esperei que eu teria esse tipo de importância”, diz.
“Francamente, foi nesse ponto que a coisa começou a me afetar”, lembra. A gota d’água aconteceu em meados de 2020, quando começaram a sair notícias sobre a crise da COVID-19 no Equador. Sophie ficou particularmente impressionada pelas cenas de corpos sendo deixados diante das casas em bairros mais pobres, esperando serem recolhidos pelos serviços funerários. “O presidente era Lenin Moreno”, diz ela, forçando o “r” com seu sotaque norte-americano.
“Uma pessoa do seu governo estava recebendo grandes quantidades de apoiadores falsos. Eu levantei o assunto internamente quando isso aconteceu. E eu falei sobre isso de novo depois, mas eu não consegui nenhuma tração com isso”. A cientista de dados deixou, então, para lá. Mas, quando ela viu as cenas da pandemia pela TV, sentiu a sua própria responsabilidade sobre a vida daquelas pessoas.
“Eu acho que eles ficaram sem caixões e havia corpos nas ruas.”, lembra, com terror. “Não há nenhuma garantia que alguma coisa diferente teria acontecido se eles tivessem priorizado isso. E nem há nenhuma garantia que se algo mudasse, isso afetaria a resposta sobre a Covid”, diz, pensativa. “E eu sei que fui colocada em uma posição impossível”, diz. “Eu sei que nunca deveria ter sido minha responsabilidade. Mas se eu não agisse, ninguém agiria”.
Antes do Equador, Sophie já tinha tido outra experiência, que também a impactou profundamente, quando descobriu contas falsas que apoiavam a oposição a Evo Morales na Bolívia em 2019. “Havia duas dúzias de contas falsas durante as eleições. É um número muito pequeno em termos de contas falsas. Então, objetivamente, eu decidi que não era tão importante”. Meses depois, ela acompanhou pelo noticiário os protestos massivos que aconteceram e o golpe que se seguiu – e levou ao exílio de Evo Morales e à posse temporária de Janine Añez. “Ou seja, houve muitos conflitos e divisões por causa daquelas eleições. E se eu pudesse prever o futuro – o que eu não posso – eu teria escolhido limpar aquela atividade [falsa]”.
“Eu estava tentando esvaziar um oceano com uma peneira”, diz. “Não era muito efetivo”, lamenta.
Sophie diz que trabalhava intensamente fora do expediente por sentir que tinha “responsabilidade com o mundo e as pessoas de diferentes países de fazer o meu melhor”. Na entrevista, pergunto a ela se as consequências na sua saúde mental foram pesadas. “Absolutamente. Se eu tivesse tido um melhor treinamento, eu talvez poderia lidar melhor com isso. Mas se você coloca uma garota de 20 e poucos anos, jovem e impressionável, em uma situação em que ela sente que tem muita influência e não tem tempo suficiente… Ela vai sentir uma enorme responsabilidade, e francamente, vai se sentir culpada de não poder salvar tudo e ter que tomar decisões difíceis”.
América Latina: “não é nossa prioridade nesse momento”
Durante dois anos e meio, Sophie buscou vários canais internos para tentar levantar suas preocupações com atividades políticas na plataforma. No seu relatório de despedida, ela descreveu ter encontrado “várias tentativas flagrantes de governos estrangeiros de abusar de nossa plataforma em grande escala para enganar seus próprios cidadãos e causou notícias internacionais em várias ocasiões. Eu pessoalmente tomei decisões que afetaram presidentes nacionais sem supervisão e tomei medidas para aplicar contra tantos políticos proeminentes em todo o mundo que perdi a conta.”
Uma das suas preocupações chegaram perto a um presidente que seria preso, anos depois, por tráfico de drogas – o hondurenho Juan Orlando Hernández.
Ela percebeu que as páginas do então presidente de Honduras estavam “inflando” comentários e reações que vinham de páginas, e não de pessoas. Ele recebeu sozinho 90% de todas as atividades falsas detectadas em Honduras, centenas de milhares de likes e comentários feitos para parecer que o presidente era mais popular do que era de fato. Quando investigou, ela descobriu que todas essas páginas eram administradas pela mesma pessoa que cuidava da página pessoal da porta-voz da presidência. “Quer dizer, se você nem se incomoda em esconder. É muito óbvio de quem é a responsabilidade. Quero dizer, se você fosse esperto, criaria contas falsas para escrever páginas falsas para você. Mas o presidente de Honduras não foi muito esperto, francamente. Ele está enfrentando julgamento por contrabando de drogas para os EUA para financiar sua campanha presidencial depois de deixar o cargo. Uma grande pessoa”.
Sophie defende a cautela do Facebook em atribuir a culpa a um ou outro político porque, como ela explica, seria fácil um oponente político criar um exército de robôs para aplaudir um candidato e para que ele fosse penalizado, por exemplo. Mas nesse caos havia uma linha clara de responsabilidade. E isso foi o mais frustrante.
“No caso de Honduras, levou nove meses para conseguir que o Facebook concordasse em começar a investigar isso”.
Ela chegou, inclusive, a se fazer uma reunião de briefing com o vice-presidente da empresa, Guy Rosen, em meados de 2019, a respeito dessa rede de contas falsas. “Francamente, fiquei impressionada que ele se dispôs a falar comigo”, lembrou. “Eu fui honesta. Ele estava curioso sobre o que estava acontecendo. Eu o informei sobre a situação. Ele disse essencialmente, isso parece ruim, mas temos prioridades e essa não é uma delas”.
Segundo ela contou ao jornal The Guardian, o vice-presidente explicou que o país latino-americano não estava entre as prioridades da empresa em termos de atividade falsa. O Facebook dá prioridade a atividades contra os Estados Unidos ou a Europa, ou aquelas feitas pela Rússia ou pelo Irã.
Em outras palavras, importa o que está alinhado com o governo norte-americano.
“É muito difícil conseguir esse tipo de ação. Eu trabalhei manualmente em contas em 20 ou 25 países, e a maioria no final foi removida. Mas em apenas dois casos houve um anúncio público do que foi feito, como em Honduras”. Mesmo assim, ela explica, o presidente Juan Orlando Hernández. não foi responsabilizado.
Após a saída da empresa, Zhang tenta chamar atenção para os erros que ela viu dentro do Facebook. E continua comprometida com as populações de países onde ela jamais pôs os pés.
“Eu nunca nem passei para o sul do Rio Grande”, diz ela, se referindo ao rio que faz a divisa entre o México e o Texas. “Nunca estive na América Latina. Não falo nenhuma palavra de espanhol. Não falo nenhuma palavra em português”.
“Mas isso só prova que eu nunca tive nenhuma ideologia política quando decidia o que deveria priorizar”.
Procurado pela Agência Pública, o Facebook preferiu não comentar.