ENSP 68 anos: Amazônia e a determinação socioambiental da saúde, conflitos, ameaças e resistência

Danielle Monteiro e Tatiane Vargas, no Informe Ensp

Como parte das atividades em comemoração aos 68 anos da ENSP, foi realizada na tarde do dia 8 de setembro, uma mesa que exaltou o Dia da Amazônia (celebrado nacionalmente em 5/9). A atividade abordou a determinação socioambiental da saúde, e os conflitos e ameaças, destacando os territórios e a saúde indígena, além do trabalho e o legado do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips em defesa da floresta e da representatividade dos povos indígenas. A palestra foi coordenada pelo pesquisador da ENSP, Marcelo Firpo, e contou com a participação do também pesquisador da Escola, Paulo Basta; da antropóloga Beatriz Matos; da diretora da Fiocruz Amazônia, Adele Schwartz Benzaken; e do professor da Unifesspa, Jax Nildo.

O diretor da ENSP, Marco Menezes, fez uma breve fala de abertura destacando toda a agenda pensada para as comemorações pelos 68 anos a ENSP. Segundo ele, no primeiro dia de comemorações o debate sobre o racismo estrutural trouxe uma pauta muito importante e definidora dos rumos da sociedade e do país que construiremos. Em seguida, a discussão sobre os 40 anos do Programa Radis destacou a questão da informação como um direito da sociedade, principalmente quando se fala em um conceito ampliado de saúde.

No segundo dia de atividades a Tribuna Livre, que contou com a participação de diretores e diretoras da ENSP, além de trabalhadores e trabalhadoras, sindicatos e com parte da comunidade, discutiu as agendas colocadas pelas conferências de saúde e pelos eventos da saúde que mobilizam a sociedade. Finalizando as discussões a mesa sobre a Amazônia veio pra somar com todo o debate anterior. “A Amazônia é uma questão central hoje para todas as discussões, pois estamos falando da fome no nosso país, estamos falando das emergências climáticas. Desta forma, discutir a determinação socioambiental, como estamos trazendo nessa mesa é muito importante pra ENSP e para todos os grupos de trabalhadoras e trabalhadores da casa que se dedicam a essa temática diariamente”, destacou o diretor.

Menezes reforçou em sua a fala o compromisso da Escola, uma instituição pública e estratégica de Estado, em aprofundar o debate com a sociedade e os movimentos sociais. Encerrando, o diretor destacou que a realização da mesa, com a construção de propostas para enfrentar os desafios, é fundamental no momento atual do país, que está em ano de eleição. “O momento é esse e a pauta que estamos discutindo durante todo o aniversário da ENSP mostra o caminho que queremos construir”, concluiu. O diretor também destacou durante sua fala que na última reunião do Conselho Deliberativo da Fiocruz, a Amazônia foi um ponto central de discussão, no sentido de como ampliar a ação institucional na região da Amazônia.

Em seguida, o coordenador da mesa e pesquisador da ENSP, Marcelo Firpo, destacou a ENSP como um ‘bastião’ na luta pela democracia, na construção das políticas públicas ligadas à Reforma Sanitária, ao SUS e seus princípios, e à ideia fundamental de que a luta pela saúde é uma luta pela democracia e pela mudança para uma nova civilização. Ele lembrou que muitas das conquistas alcançadas desde a década de 80 têm sofrido um retrocesso, com uma violência estrutural no Brasil, país que, apesar de não ser mais colônia, continua ainda em um processo de perda de autonomia, subordinação e subalternização, segundo o pesquisador.

Firpo citou a Amazônia como espelho das violências estruturais sofridas atualmente pelo país e como centro de definição do que vai ser o planeta nos próximos tempos, destacando que o tema da ecologia e do meio ambiente são cada vez mais centrais quando o assunto é o futuro do planeta. “Essa não é apenas uma discussão sobre o retrocesso para a retomada do que éramos, mas também sobre a transição paradigmática e civilizatória, pois ainda temos grandes mudanças e transformações a serem feitas. Temos uma violência não apenas diretamente na Saúde, mas também de falta das bases morais e éticas mínimas que o capitalismo neoliberal vem trazendo, junto com seus desafios que trazem à tona todo um conjunto de violências que afloram com intensidade”, afirmou.

As contribuições da Saúde Coletiva para a Amazônia

A diretora do Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazônia), Adele Schwartz Benzaken abriu a mesa Dia da Amazônia: determinação socioambiental da saúde, conflitos, ameaças e resistência. Ela abordou em sua apresentação algumas contribuições que a produção do conhecimento em Saúde Coletiva pode dar frente ao cenário de iniquidades sociais vigentes na Amazônia. Benzaken falou ainda sobre a atuação do ILMD e do desenvolvimento de um grande evento, no âmbito de toda a Fiocruz, para discutir sobre a região amazônica e seus desafios. Em seguida a diretora contextualizou a Amazônia Legal ou Amazônia Brasileira, criada na década de 50, com o objetivo de fomentar o desenvolvimento econômico e social da região amazônica. A Amazônia Legal possui cerca de 5.1 milhões de km2, o que corresponde a 60% do território brasileiro. Trata-se de uma região com elevador percentual de pessoas em situação de pobreza (41%), similar a região nordeste, além de ser uma região com altas taxas de violência e práticas ilegais.

A diretora do ILMD expôs também, alguns indicadores de ciência e tecnologia na região. A Amazônia Legal possui a menor taxa de mestre e doutores do país, e apesar do crescimento no número de Programas de Pós-Graduação na região, há uma disparidade na proporção de cursos de excelência. “A região amazônica é a região com a menor participação dos dispêndios de ciência, tecnologia e informação das regiões brasileiras”, lamentou. Sobre o desmatamento, Benzaken destacou que para 1% de floresta derrubada anualmente na Amazônia, há um aumento de 23% na incidência de casos de malária, e de aproximadamente 9% de casos de leishmaniose.

Adele apresentou algumas pesquisas desenvolvidas no ILMD sobre as desigualdades sociais e sanitárias na região norte, dando como exemplo o número restrito de médicos que autuam na região, 1 para cada 100 mil habitantes. No âmbito da violência interpessoal na região da Amazônia Legal, ela citou que o volume dos homicídios duplicou entre 2000 e 2010, sendo cinco vezes maior que o crescimento populacional, configurando uma situação de descontrole e de fracasso dos poderes públicos em enfrentar a criminalidade violenta na Amazônia. No contexto dos desafios a serem superados no âmbito do SUS, a diretora destacou algumas ações, entre elas, ampliar o conhecimento dos territórios buscando conhecer os modos de vida das populações, superando barreiras de acesso, e propondo medidas de superação.

Por fim, Adele Benzaken, lamentou que na Amazônia o direito à vida nunca esteve garantido. “Reconhecemos os avanços na equidade, acesso e efetivação das ações de APS na região, entretanto, as disparidades econômicas e a forte concentração de renda neutralizam, em grande medida, o esforço feito pelo SUS. A conjuntura atual, que aponta para o desmonte da seguridade social, a desvinculação dos orçamentos de políticas sociais e a privatização do SUS exige muita mobilização dos setores da sociedade para mudar a trajetória atual”.

O cuidado com a Amazônia

Dando continuidade ao debate, o pesquisador da ENSP Paulo Basta, fez uma contextualização dos principais problemas enfrentados na região amazônica na atualidade, apresentou dados de alguns estudos em regiões específicas e apontou alguns caminhos que podem ajudar a refletir sobre os desafios e problemas da região. Basta integra o Grupo de Pesquisa Ambiente, Diversidade e Saúde, que conduz estudos sobre os impactos causados pela mineração ilegal e uso indiscriminado do mercúrio.

Segundo ele, o Instituto Igarapé fez um levantamento nas bases da Polícia Federal sobre os inquéritos policiais que estão transitando sobre determinado tipo de crime e esse relatório, (apresentando em março deste ano – 2022) demostra as cinco principais categorias de crime que vem sendo praticados no território da Amazônia. São elas: desmatamento ilegal, grilagem de terras públicas, extração ilegal de madeira, mineração ilegal e agropecuária com passivo ambiental. O relatório aponta ainda, os ilícitos mais frequentes por estado. Basta expôs um mapa, feito pela Rede Amazônica de Informação Socioambietal Georeferrenciada, que apontava que em 2020 existiam 641 pontos de atividade de mineração ilegal sob o território da Amazônia.

Em outro levantamento apresentado pelo pesquisador, esse desenvolvido pela ONG MapBiomas, dados apontam que de 1985 a 2020 houve um incremento importante das atividades de mineração no território brasileiro. Os autores chamam a atenção que em 2020 a área minerada no Brasil é 6x maior do que em 1985, saltando de 31 mil hectares para 206 mil. Paulo trouxe ainda um estudo que aponta a mineração como um problema frequente nos territórios indígenas, situando as três terras indígenas mais afetadas pela mineração: TI Kayapó, TI Munduruku e TY Yanomami. Em seguida apresentou inúmeras notícias publicas sobre a devastação que atinge as terras indígenas, além de falar sobre sua relação com alguns povos indígenas e as pesquisas que vem desenvolvendo com esses povos e seus resultados.

Por fim, o pesquisador enfatizou a Carta que a Fiocruz elaborou e encaminhou para todos os candidatos a presidência da república, com dez pontos chaves, dando destaque ao item que fala sobre assegurar a proteção ambiental abrangente, envolvendo os diversos biomas, a promoção do uso de energias sustentáveis, a regulação do uso dos territórios, o combate à práticas predatórias e a proteção aos povos tradicionais, desenvolvendo e incorporando inovações e tecnologias sociais e também reconhecer os territórios tradicionais de sociedades indígenas e quilombolas. “Mais uma vez, a Fiocruz numa atitude de vanguarda, está pautando a sociedade, apontando ações para que possamos trabalhar em busca daquilo que de fato é importante”, finalizou.

A complexidade da Amazônia 

Professor e diretor do Instituto de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), Jax Nildo trouxe um olhar sobre a Amazônia para além da questão indígena, chamando a atenção para a complexidade da região, o que demanda a criação de condições para a elaboração de processos emancipatórios de saúde, sustentabilidade e democracia locais. Nascido e residente em Rondon do Pará, no sudeste paraense, parte da Amazônia oriental que mais foi devastada e com maiores registros de conflitos e violências nos últimos 40 anos, Nildo defendeu a criação de redes de estudos e colaboração na região e contou que a maior preocupação de indígenas, ribeirinhos, camponeses e quilombolas é o medo de perder seu território, em função da fragilização das instituições e naturalização da violência, em decorrência do garimpo e avanço do agronegócio.

Dados da CPT de 2021, apresentados pelo professor, revelaram que, dos 800 mil conflitos que envolvem a questão da terra, água e questões trabalhistas no Brasil, a maioria ocorreu na Amazônia Legal. “O que está em jogo hoje é a questão da ocupação do território. Até metade dos anos 60, as terras da Amazônia eram livres. O que alterou significativamente esse padrão foi o Programa Grande Carajás, que é uma estratégia de desenvolvimento do governo civil militar, composta pela organização do latifúndio, da construção de uma base de infraestrutura para explorar e vender minério e consolidação de um conjunto de empresas rurais com foco na agropecuária”, explicou.

Ao traçar um breve panorama a partir da instauração do Programa Grande Carajás, Nildo explicou que, até 2015, havia uma conformação de mais de 600 assentamentos rurais e mais de 400 áreas de quilombos, além de um conjunto de terras ribeirinhas regularizadas, no sudeste paraense, porém, os últimos quatro anos foram marcados pela naturalização da violência e perdas de território na Amazônia. Segundo ele, é preciso alterar o padrão de desenvolvimento na Amazônia, para melhorar as condições de vida e saúde da região.

O trabalho do indigenista Bruno Pereira na Amazônia

Em seguida, a antropóloga, professora da Universidade Federal do Pará (UFPA) e esposa do indigenista Bruno Pereira, assassinado no Vale do Javari (AM) juntamente com o jornalista britânico Dom Phillip em junho, ressaltou que a atuação da ENSP tem subsidiado o trabalho de aliança com os povos indígenas. “Nós que trabalhamos com isso sabemos que a violência é constante, mas, quando ela nos atinge tão pessoalmente, sentimos no corpo essa dor que tantas lideranças indígenas e quilombolas sentem. Sentimos muito próximo o que é essa violência sistêmica no Brasil contra seu próprio povo”, lamentou.

Beatriz destacou a importância das instituições de governo e de políticas públicas, o trabalho de pesquisa financiado e apoiado pelo interesse na saúde pública, assim como o fortalecimento dessas instituições para a garantia dos direitos e para a própria existência e possibilidade dos modos de vida próprios dos povos da Amazônia, que são os que garantem a existência da região.

A esposa de Bruno falou sobre o trabalho do indigenista no Vale do Javari, que tinha como foco o monitoramento e proteção dos povos tradicionais da região, destacando a importância daquela população para a proteção do território e sua relação simbiótica com o ambiente natural. “As terras indígenas são efetivamente áreas de proteção ambiental, devido ao uso sustentável que os indígenas fazem dela, em uma relação respeitosa entre sujeitos”, salientou. Ela contou que o trabalho do indigenista era subsidiar essa relação, ajudar no monitoramento local e oferecer alternativas para os jovens que gostavam de viver na aldeia e desejavam permanecer no local. “A ideia é possibilitar que os conhecimentos próprios das comunidades sejam ouvidos, respeitados, subsidiados, complementados, e dar condições de possibilidades para que elas continuem fazendo o que fazem lá, oferecendo renda e possibilidades, em um diálogo com nossos conhecimentos, para não enveredarem para viver na cidade e abandonarem suas aldeias”, contou.

Beatriz também atentou para o enfraquecimento das instituições de controle de monitoramento e proteção territorial e para os ataques generalizados em vários âmbitos contra as políticas de proteção territorial que atingem todo o país, citando, como exemplos, os ataques ideológicos, o corte de verbas, entre outros ocorridos nos últimos quatro anos. “Sem o envolvimento, não tem Amazônia, não tem futuro. São os povos indígenas que garantem as condições de possibilidades do nosso futuro. Nossas condições de vida na terra vão piorar muito. E eles têm muita consciência disso”, concluiu.

Assista, abaixo, o vídeo completo da mesa ‘Dia da Amazônia: determinação socioambiental da saúde, conflitos, ameaças e resistência’:

Foto: Leonardo Prado

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