Menina de 13 anos, que estava desaparecida, era neta do cacique Getúlio de Oliveira, da aldeia Jaguapiru, em Dourados; caso é o quarto assassinato envolvendo membros da etnia nos últimos três meses; Mato Grosso do Sul é segundo estado com maior número de indígenas mortos
Por Cláudio Eugênio e Mariana Franco Ramos, em De Olho nos Ruralistas
O feminicídio da adolescente indígena Ariane Oliveira Canteiro, de 13 anos, escancarou, mais uma vez, a falta de políticas públicas e de assistência que há anos assola os povos Guarani Kaiowá. O corpo da menina foi encontrado no último domingo (11), dentro da mata, nas margens da rodovia que liga Dourados a Itaporã (MS).
Foi o quarto assassinato envolvendo a etnia no Mato Grosso do Sul desde maio de 2022. Os crimes se somam a um crescente número de despejos ilegais, ameaças, estupros e agressões. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a morosidade do julgamento do marco temporal e a política anti-indígena do governo Jair Bolsonaro (PL-RJ) favorecem os ataques.
Neta do cacique Getúlio de Oliveira, da aldeia Jaguapiru, em Dourados (MS), a jovem estava há nove dias desaparecida. Embora o autor do ato infracional seja também um adolescente, de 17 anos, apreendido em flagrante no mesmo dia, tanto a Polícia Civil como os moradores alertam para o descaso do poder público e o aumento sistemático dos vários tipos de violência, em um território dominado pelo agronegócio.
Segundo a mãe da estudante, Aldinéia Oliveira, sua filha saiu do quarto onde estava com o irmão para atender a porta e não foi mais vista. O adolescente invadiu o local e a arrastou pelos fundos. O capitão da aldeia, Ramon Fernandes, contou que, desde o início das investigações, o rapaz era apontado como principal suspeito. “Após a apreensão, ele confessou ter cometido o crime, porque Ariane não queria namorar com ele”, afirma.
De acordo com Fernandes, os problemas com álcool e drogas na região têm levado muitos jovens para a marginalidade. “A falta de infraestrutura para a promoção de ações inclusivas e uma política de prevenção ao crime são gargalos que devem ser resolvidos urgentemente”, opina. “Mas a falta de recursos é uma constante no nosso trabalho”.
“O ESTADO VIROU AS COSTAS PARA A NOSSA SITUAÇÃO”, DIZ AVÔ
A reportagem do De Olho nos Ruralistas acompanhou durante a semana passada a apreensão e angústia de amigos e familiares na busca pela adolescente. “Nós vivemos uma violência constante no dia a dia e a minha neta é mais uma nesta guerra para eliminar a nossa cultura”, lamenta o cacique Getúlio Oliveira.
Segundo ele, é comum ouvir pessoas defenderem a eliminação dos indígenas na região. “Eu estou triste e bravo também porque o Estado virou as costas para a situação que vivemos e nunca toma nenhuma providência”. Ele afirma que sua neta “não devia nada para ninguém” e que só saía de casa para ir à escola. “Queremos justiça”.
Conforme a mãe de Ariane, as situações de violência contra os moradores da aldeia são crescentes, e a polícia só aparece quando ocorrem mortes. “Até o cavalinho de Ariane foi assassinado no dia seguinte ao desaparecimento da jovem”, relata Aldinéia. Ela pede que os culpados pelo crime sejam punidos.
As sucessivas violações contra os Guarani Kaiowá foram tema do programa De Olho na Resistência, em julho deste ano:
ETNIA VIVE EM CONFLITO PERMANENTE COM FAZENDEIROS E POLÍCIA
Os indígenas da região vivem em conflito permanente para preservação dos seus direitos e de sua cultura, contra diversos grupos, formados por fazendeiros, igrejas evangélicas neopentecostais e facções criminosas. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) destaca que produtores de soja, cana de açúcar ou gado para exportação invadiram e hoje dominam o território ancestral. Milícias praticam arbitrariedades com apoio da polícia e do governo.
O caso de Ariane se soma a pelo menos outros três assassinatos registrados neste ano. No dia 21 de maio, Alex Recarte Vasques Lopes, de 18 anos, foi morto no Tekoha Jopara, nas proximidades da reserva Taquaperi, em Coronel Sapucaia (MS), divisa com o Paraguai, quando saiu para buscar lenha. O crime levou os indígenas a iniciarem um movimento de retomada.
Em 24 de junho, ocorreu o “Massacre de Guapo’y”. A ação violenta da Polícia Militar (PM) resultou no homicídio, a sangue frio e em plena luz do dia, de Vitor Fernandes, de 42 anos, um homem com deficiência. Além dele, dezenas de pessoas ficaram feridas. A ação teve início após os Kaiowá ocuparem uma área da Fazenda Borda da Mata, vizinha da TI Amambai.
De Olho nos Ruralistas contou que o imóvel de 269 hectares pertence à empresa VT Brasil Administração e Participação, controlada por Waldir Cândido Torelli e seus três filhos: “Saiba quem é o dono da fazenda onde Guarani Kaiowá foi assassinado, no Mato Grosso do Sul“.
Menos de um mês depois, na tarde de 14 de julho, três Guarani Kaiowá sofreram uma emboscada violenta por parte de homens armados. O crime resultou no assassinato de Márcio Moreira e deixou dois outros líderes feridos.
Além das mortes, a casa de reza da aldeia Jaguapiru já foi incendiada três vezes em um curto período e as ameaças de uma nova investida se avolumaram no último ano. A região registrou, ainda, diversos casos de estupros de meninas indígenas. Ariane estaria recebendo ameaças de morte por cartas e tinha sido sequestrada em outubro de 2021.
MS FOI SEGUNDO ESTADO COM MAIS HOMICÍDIOS DE INDÍGENAS EM 2021
Lançado em agosto e com dados correspondentes a 2021, o relatório “Violência contra os Povos Indígenas do Brasil“, do Cimi, mostra um aumento em quinze das dezenove categorias sistematizadas, como o observatório já noticiou: “Bolsonaro é um assassino e deveria ser preso”, diz líder sobre recordes de violência contra indígenas.
Em relação aos casos de “violência contra a pessoa”, foram registrados os seguintes números: abuso de poder (33); ameaça de morte (19); ameaças várias (39); assassinatos (176); homicídio culposo (20); lesões corporais dolosas (21); racismo e discriminação étnico cultural (21); tentativa de assassinato (12); e violência sexual (14).
Os registros totalizam 355 situações de violência contra pessoas indígenas em 2021, maior número desde 2013, quando o método de contagem foi alterado. Em 2020, foram catalogados 304 casos do tipo.
Os estados que tiveram maior número de assassinatos de indígenas foram Amazonas (38), Mato Grosso do Sul (35) e Roraima (32). Os três também contabilizaram a maior quantidade de assassinatos em 2020 e em 2019.
Entre os casos que se destacam estão dois assassinatos de indígenas do povo Tembé, na TI Alto Rio Guamá, no Pará. Isac Tembé, professor de 24 anos, foi morto por policiais militares quando caçava com outros jovens numa área próxima ao território. Semanas depois, Benedito Cordeiro de Carvalho, conhecido como Didi Tembé, também foi morto a tiros, em circunstâncias ainda não esclarecidas.
O relatório registra, ainda, assassinatos de jovens e crianças indígenas praticados com extrema crueldade e brutalidade. Causaram comoção, em 2021, as mortes de Raíssa Cabreira Guarani Kaiowá, de apenas 11 anos, e Daiane Griá Sales, do povo Kaingang, de 14 anos. Ambas foram estupradas e mortas.
Imagem principal (Povos Indígenas/Cimi): Enterro de Vitor Fernandes, morto em Amambai (MS).