As complicadas relações entre tática e ética, às vezes estratégia e ética, adquirem relevância especial em determinados momentos, para resistir ao avanço da animalidade na política
Para o meu amigo Rogério Viola Coelho
Registro primeiramente a minha posição de respeito a quem vem sustentando o voto nulo ou em branco no segundo turno das eleições estaduais, em que um candidato minimamente progressista não está disputando o segundo turno. Penso que neste momento, todavia, numa situação limite de avanço da ideologia e do poder fascista em nosso país, temos que adotar uma moralidade política e uma ética das finalidades, adequadas a importância que estas eleições terão no futuro do Brasil e da própria esquerda brasileira como força decisiva da luta democrática continental.
As complicadas relações entre tática e ética, às vezes estratégia e ética (fundidas nos momentos agudos de fim de ciclos), adquirem relevância especial em determinados momentos, para resistir ao avanço da animalidade na política nos momentos em que a sociedade é devolvida ao “estado de natureza”. Nestes, os argumentos perdem o valor perante as ações irracionais e a democracia social, que não se organizou para responder dentro da ordem aos assédios da ofensiva do ultraliberalismo articulado com o fascismo em ascensão planetária.
Entendo que o apoio de correntes políticas de centro, direita e de centro-direita ao Presidente Lula, no segundo turno, está no mesmo contexto do nosso comportamento, como partido e movimento democrático mais amplo aqui no Estado, sobre votar ou não votar no candidato que não representa – na disputa política concreta do Estado – as posições notoriamente fascistas do candidato do inominável no Rio Grande do Sul.
A questão de fundo que se coloca, em ambas as situações, é a seguinte: qual, a posição que mais dá sustentação ao voto no candidato do cambaleante campo democrático brasileiro, que, sem um partido forte de centro, programático e enraizado na população, conseguiu o milagre de ampla frente eleitoral antifascista, que tem como objetivo resistir à extrema direita, que já se sustenta em 40% dos eleitores do país?
São tempos distópicos que aparecem como “especiais” nas mentes perplexas do homem comum, mas que, na verdade, são repetências do sistema de dominação do capital que quer se reciclar, mas que crê não mais poder fazê-lo dentro do pacto democrático, que ele mesmo apoiou em outras situações históricas. Trata-se de um momento em que a sociedade elimina as diferenças de classe no imaginário da maioria, que ora se reportam somente ao presente: democracia ou força, paciência de construção democrática ou imediatidade da ditadura, disputa pelo consenso ou facilidades para a eliminação do adversário; presente e passado, assim integrados em cada movimento da política, cujo limite será a paz ou a guerra, a ferocidade do fascismo ou o reconhecimento do outro no contexto da civilidade democrática.
As bases materiais da sociedade industrial erguem os pressupostos éticos que dirigem as pessoas para relações de convívio mais (ou menos) solidárias (e conflitivas), para viverem de forma mais coletiva ou mais isolada. Sua existência gira em torno do consumo (no mercado), e em torno da produção material (ou de ideias) para o mercado, na sociedade da produção mercantil. A organização da família, o planejamento dos seus gastos, a educação, a religião, a formação técnica, a cultura e a ciência disponíveis, orientam as pessoas para este sentido do viver: de forma mais (ou menos) harmoniosa, de maneira a não colocar em perigo (e não poderiam fazê-lo) o seu viver na torrente da cotidianidade não escolhida.
A ação cultural e política do fascismo incide diretamente sobre as dúvidas que nascem destas condições de existência quando a crise faz com que elas percam o fascínio. Com a sua subjetividade influenciada pelo que vem de fora da sua alma o novo equilíbrio ético-moral é traçado, tanto dentro como fora do seu corpo e da sua mente. Esta paz relativa, rompida num determinado momento da história, vai para um vazio moral e existencial, áspero território destrutivo dos seus laços sociais. Porque a sociedade já não funciona mais dentro da ordem antiga, sem ter surgido a empatia por uma nova ordem. Aqui nascem os monstros, aqui – ainda mantidos espaços maiores ou menores de democracia e de integração na vida comum – nascem as possibilidades do fascismo.
A modificação dos padrões democráticos e profundamente desiguais da sociedade capitalista moderna, todavia, gera respostas e desequilíbrios, com fortes focos de tensão: a tensão da possibilidade da revolução sem permanência; a tensão do reformismo social para uma vida com formas distributivas mais solidárias do produto social; e, finalmente, a tensão distópica, que hoje nos assola. Ela é a destruição das duas formas anteriores de predicados de mudança, ou seja, a tensão do fascismo destrutivo, tanto das emoções humanistas como dos laços de solidariedade mínima e tolerância com os diferentes.
Os estranhos, os miseráveis, os inconformados que ameaçam os precários momentos de comunhão social que ainda é possível obter pelo diálogo democrático devem ser, então, eliminados. Ele, o fascismo, impõe a hierarquia pelo medo – instala os padrões de dominação das trevas – como força que se faz direito, não pela dominação pelo direito obtida dentro dos padrões da democracia política moderna. Esta é a crise de um tempo que deixou de ser da revolução social e da reforma e passou a ser o tempo da distopia que suprime as diferenças entre o bem e o mal, entre o homem e animal, entre o crime e a política.
Sustento que face à vitória da distopia em escala global, os pressupostos éticos que guiam as pessoas na esfera da política devem mudar, radicalmente: a separação entre moralidade e ética, ou seja entre a consciência imediata da necessidade de resistir ao vírus do fascismo na vida comum e a finalidade da ação, como moral da política, adquirem uma outra hierarquia. O fascismo não produz nem reforma, nem revolução, nem democracia, nem liberdade, nem espírito público nem conformidade possível dentro da ordem. Quando ele, o fascismo se instala, só se reproduz a si mesmo, como mal absoluto. Isso é o mínimo a considerar no presente e tudo que colabora para bloqueá-lo é virtuoso e ético, é moral e democrático. Por quê?
Ele não pode sobreviver sem matar, nem conduzir sem violência, nem dirigir sem o horror.
Forma-se, então, um novo tempo político premido entre a necessidade de fazer reviver a democracia e dar livre curso à ação que bloqueia o mal animalizado e as soluções do ódio que, se vitoriosas, ocupam o Estado, sufocam as consciências e assassinam o que tem de mais precioso na democracia capitalista dos tempos modernos: a possibilidade de lutar pelos outros, de definir padrões mínimos de igualdade perante a lei e de buscar o direito à felicidade, sem ser alvo da violência privada consentida nas milícias e na violência do Estado, já em mãos do criminosas. É o momento em que não ser fascista, não apoiar o fascismo, é uma virtude moral e política, mesmo só no silêncio medroso que apenas dialoga com a resistência e transforma em virtude precária, face ao momento de perigo absoluto.
“Como realidade que deve ser alcançada – disse o velho Lukács – a postulação do fim último não pode significar nenhuma abstração da realidade, nenhuma tentativa de impor sobre ela determinadas ideias, mas, sim, o conhecimento e a transformação prática daquelas forças que atuam no seio da realidade social”.
Votar contra os fascistas em todos os fronts”, mesmo que seja em lideranças que serão duvidosas no futuro – mas que no presente não querem se situar fora do campo democrático – pode ser decisivo para o retorno da civilidade democrática e da redescoberta das utopias de igualdade e de liberdade, para um futuro não muito distante. Com vitória de Lula!
*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).