“Bolsonaro está muito mais sintonizado com o Brasil de hoje”, diz Miguel Lago

Para cientista político, país vive revolução religiosa, cultural e política que a esquerda não soube acompanhar

Por Paula Bianchi, em Agência Pública

De 2003 para cá, quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pisou no Palácio do Planalto pela primeira vez, o Brasil mudou e mudou muito, defende o cientista político Miguel Lago. Ele considera que o país viveu uma revolução nos últimos 20 anos, ainda pouco aceita por uma parte da sociedade.

Essa revolução passa por uma mudança na identidade religiosa, com o grande crescimento da população evangélica, pelo crescimento da força política e cultural do agro, e por uma mudança fundamental na forma como nos comunicamos, com uma descentralização da produção de informação. Revolução com a qual Jair Bolsonaro (PL) soube se relacionar melhor do que qualquer outro grupo político, o que para o cientista político ajuda a entender também a força e a resiliência do bolsonarismo.

“O país do samba hoje em dia escuta muito mais música sertaneja do que qualquer outra coisa”, diz Lago. “O Bolsonaro está mais em em sintonia com esse Brasil que emerge, com o qual as elites brasileiras não estão acostumadas. Que fala outra língua religiosa, que tem outros hábitos culturais.”

Para o cientista político, tanto a direita quanto a esquerda antibolsonarista erram ao menosprezar Bolsonaro e ignorar o imenso poder comunicacional que ele tem e que veio afinando desde a sua eleição em 2018. “Olham para o Bolsonaro como se ele fosse um idiota, sendo que ele fez algo extraordinário, que foi ganhar uma eleição presidencial com pouquíssimo segundos de televisão, com pouco dinheiro, sem boas articulações estaduais. Ainda assim, parte da esquerda diz: “Não, o Bolsonaro só ganhou porque o Lula foi preso”. Aí a direita diz: “Não, Bolsonaro ganhou porque foi o voto antipetista”, diz .

Lago, que lançou recentemente o livro “Do que falamos quando falamos de populismo” junto com o também cientista político Thomás Zicman de Barros, em que analisa os contextos em que o termo surgiu no mundo e no Brasil e as diferenças entre os populismos de Lula e Bolsonaro, considera que, eleito ou não, o atual presidente seguirá sendo a maior força política do país. E que ignorar isso ajuda tanto quanto ignorar a revolução em curso no Brasil.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

Num artigo em maio do ano passado, você escreveu que “se tivesse que apostar, colocaria suas fichas no cavalo Bolsonaro”. Passado o primeiro turno, parte da sociedade foi pega de surpresa pela porcentagem de votos do atual presidente e pela força do bolsonarismo na eleição do Congresso. O que aconteceu? O que as pesquisas e os analistas não foram capazes de captar?

Essa é uma pergunta complexa de responder. Mas o que é muito forte no Bolsonaro? Por um lado, é que ele tem uma máquina de comunicação extraordinária que ninguém tem, sabe comunicar como ninguém. E talvez seja inclusive essa capacidade de mobilização digital que tenha virado vários votos nas últimas 24 horas antes do primeiro turno, como foi na eleição passada. Desde 2018 a gente já sabe, tem evidências, de que Bolsonaro tem uma estratégia, uma máquina comunicacional, muito bem montada. A segunda coisa é que ele é capaz de segmentar a comunicação e tudo que um certo segmento da população escuta vem a partir dele. É uma estratégia de canal. Ele se torna absolutamente hegemônico em canais específicos.

Além disso, ele tem a máquina do governo, que sempre pesou muito no Brasil, sempre foi usada por todos os governantes a seu favor em eleições. Eu pensava: “Bom, com essas duas grandes armas fica muito difícil o Bolsonaro não ser reeleito”. A questão é que realmente o governo dele teve grandes erros, uma série de decisões muito equivocadas, a vida das pessoas piorou muito. Tinha essa memória eleitoral de que no tempo do Lula era melhor. Mas só focar na memória eleitoral, que é a estratégia do Lula, falar dos oito anos que ele governou, não é suficiente para você derrotar o bolsonarismo.

Vamos pensar assim. Lula e o Alckmin soltaram uma carta para os cristãos porque existe essa mentira que está sendo espalhada de que o Lula vai fechar as igrejas. E aí eles fazem uma carta como se estivéssemos há 20 anos atrás. Quem vai ler a carta deles? Vai soltar onde, no jornal? Quem lê jornal hoje em dia? Provavelmente os próprios eleitores do Lula e do Alckmin. No lado do bolsonarismo, o que está rolando é a Damares dizendo que criança não pode tirar o dente pra fazer sexo oral. É uma desproporção de canais muito grande. Bolsonaro está muito mais sintonizado com os dias de hoje.

É como se ele tivesse criado um conglomerado pessoal de mídia que cai direto no WhatsApp das pessoas.

Exatamente. É só você pensar no lavajatismo, por exemplo, que é uma das coisas mais extraordinárias que Bolsonaro conseguiu fazer. Ele começa com um movimento que parte de duas premissas: confiança de que a imprensa está dizendo a verdade — as denúncias de corrupção dos governos do PT saíam pela grande mídia —, e confiança na Justiça, que conduzia a Lava Jato. O lavajatismo se torna um movimento muito forte, faz grandes manifestações contra a presidente Dilma Rousseff e é um eleitorado que naturalmente ia votar no Bolsonaro, inclusive por associar o PT às questões de corrupção. Mas boa parte desse eleitorado, claro que tem exceções, se tornou bolsonarista. Não acredita mais na grande mídia, chama a Globo de “Globo lixo”, não acredita mais na Justiça, no STF. São instituições que mudaram muito pouco em dez anos, mas que na percepção de um determinado grupo mudaram totalmente. O Sergio Moro era um ídolo do lavajatismo há alguns anos e, quando rompeu com o Bolsonaro, passou a ser um pária.

Bolsonaro foi brilhante na maneira como soube conduzir o lavajatismo pra ele. Ele pegou o principal adversário dele junto a esse público, que era o Moro, e colocou ele no Ministério da Justiça, para cozinhar o Moro, que caiu feito um patinho. Isso mostra a força desse poder comunicacional. E não é só o Bolsonaro. Tem uma série de políticos no mundo todo que estão atualizados aos meios de comunicação que fazem isso muito bem. O Lula claramente não faz isso bem. Não está no DNA da campanha dele. É uma campanha muito mais voltada para a grande imprensa, para os antigos canais de comunicação. Tem uma questão aí geracional. É a lógica do broadcast, de um para muitos. Sendo que hoje em dia a comunicação é toda segmentada. Ela é muitos para muitos.

Em 2018 a gente já tinha visto isso, o Bolsonaro se elegeu com segundos de televisão. Quatro anos não foram o suficiente para o campo progressista perceber que a comunicação mudou?

Eles menosprezam muito o Bolsonaro. Tanto a direita quanto a esquerda antibolsonarista olham para o Bolsonaro como se ele fosse um idiota, sendo que ele fez algo extraordinário, que foi ganhar uma eleição presidencial com pouquíssimo segundos de televisão, com pouco dinheiro, sem boas articulações estaduais. Ainda assim, parte da esquerda diz: “Não, o Bolsonaro só ganhou porque o Lula foi preso”. Aí a direita diz: “Não, Bolsonaro ganhou porque foi o voto antipetista”. Não teve um real reconhecimento da qualidade, pelo menos técnica, de Bolsonaro. Até muito pouco tempo atrás havia discussões sobre terceira via considerando que se estaria num segundo turno contra o Lula. Como assim? Olha a força do Bolsonaro. O Bolsonaro tem o governo na mão.

Falando nessa força, o que esse resultado diz sobre o bolsonarismo enquanto força política? 

Mostra que o bolsonarismo é uma força política muito resiliente e que, mesmo que eles percam a eleição, o que é muito possível, vão continuar sendo a maior força política do Brasil, na minha opinião. A grande força política que está articulada, mobilizada, que tem ânimo, que tem vontade, é o bolsonarismo, não é o lulismo. O Lula tem muita força. Ele. Mas essa força não se traduz na capacidade de cabo eleitoral dele. A gente viu isso nas eleições legislativas e nas eleições estaduais. O Bolsonaro elegeu um astronauta que nunca fez nada da vida. O Lula tinha um ex-governador de São Paulo [Márcio França, que concorreu a senador por São Paulo], que é um político muito calibrado, e perdeu. E o astronauta foi muito bem votado. Isso é o Bolsonaro.

Aí tem o Congresso. O Congresso que foi eleito não é um Congresso bolsonarista; é, como sempre, corrupto. Boa parte dos deputados do partido do Bolsonaro não são bolsonaristas, são do Centrão, e o Centrão está sempre com quem estiver no governo, seja de esquerda, seja de direita. Não vejo problema de governabilidade do ponto de vista institucional para o governo Lula. O que vejo, sim, é a possibilidade de um nível de oposição organizada ao governo que nunca se viu. Acho que Bolsonaro vai ser capaz de fazer uma oposição muito forte e muito eficiente a um governo do Lula. E se o Bolsonaro for eleito aí ele tem um Congresso muito favorável e tem essa força da sociedade que vem reanimada de uma reeleição que era uma reeleição muito difícil. Vai estar muito mais fortalecido do que estava em 2018.

Em alguns dos seus artigos, você defende que o Brasil está vivendo uma revolução nesses últimos anos. Que revolução é essa da qual, se o bolsonarismo não é símbolo, é sintoma?

Não sei se ele é sintoma ou se ele é causador, ele é um pouco as duas coisas. O Brasil mudou muito nos últimos 20 anos. Ainda é o maior país católico do mundo, mas a identidade religiosa mais importante no país hoje não é mais a católica, nem de perto. Eu sou católico, por exemplo. Mas boa parte dos fiéis católicos não vai à missa. As pessoas se dizem católicas porque fizeram primeira comunhão, eventualmente casaram na igreja etc. Mas a identidade católica não é algo fundamental do seu dia a dia, como é o caso da identidade neopentecostal, que condiciona uma série de decisões na sua vida, desde a sua vestimenta até o que você vai consumir, os candidatos em quem você vai votar e daí por diante. Esse elemento religioso é o primeiro elemento e surge de uma nova identidade religiosa muito poderosa, uma identidade militante muito diferente da identidade católica, mais inercial. Ainda que seja uma minoria, é uma minoria que está muito mais bem articulada do que essa maioria silenciosa.

Segundo, temos o agro. O Brasil depende cada vez mais do agronegócio, o que não era o caso há 20 anos. O país se desindustrializou, o que também não é algo do governo Bolsonaro, vem de antes. E não é só que o agro ocupe um lugar central na economia, porque ele ainda não é o motor da economia, representaria entre 7% e 25% do PIB. Mas é o setor mais emergente, mais pujante. Criou toda uma identidade política muito forte. Não vemos os industriais tão engajados na campanha política como você vê o setor agrícola, querendo demitir pessoas que não votaram no Bolsonaro. Tem uma identidade nacional, política, que se formou junto com o agro. Se promoveu uma cultura sertaneja no Brasil que é uma novidade também.

O país do samba hoje em dia escuta muito mais música sertaneja do que qualquer outra coisa. Você tem a cultura do rodeio, uma cultura do interior do Brasil, um Brasil rico, que não era o caso 30 anos atrás. E que também está associada ao bolsonarismo, que soube dialogar muito bem com esse grupo, soube sobretudo pautar esse setor. Assim como ele fez também com os neopentecostais. O Bolsonaro está mais em sintonia com esse Brasil que emerge, com o qual as elites brasileiras não estão acostumadas. Que fala outra língua religiosa, que tem outros hábitos culturais. A terceira grande mudança é a da descentralização da produção de informação. São mudanças estruturais na sociedade brasileira que o bolsonarismo soube casar muito bem.

Qual o papel das pautas identitárias e também do anti-intelectualismo nisso?

A questão identitária é importante e tem sido determinante como instrumental do bolsonarismo, mas não vejo ela sendo tão usada pelo outro lado. Ela está sendo usada [pelo bolsonarismo] como uma estratégia que deu certo em 2018. A barbaridade de você inventar aquelas fake news ligadas a crianças. Está mais nessa chave, e essas coisas pegam e funcionam. Agora eu concordo com você que segue sendo anti-intelectual. Faz parte do repertório dele. Escrevi recentemente um livro sobre populismo. É engraçado que tanto o Lula quanto o Bolsonaro são populistas, mas são dois populistas diferentes.

A elite para o Bolsonaro é o MST. Porque no fundo a elite são todos os, digamos assim, intelectuais da sociedade que, no fundo, na cabeça do Bolsonaro, dependem do Estado e que não deixam justamente os empresários trabalharem. Bolsonaro consegue criar uma ferramenta retórica muito boa, dando a entender que no fundo MST é elite e o povo é o latifundiário, cidadão de bem que está só querendo produzir na sua terra. O Lula não. O Lula tem uma separação entre povo e elite mais tradicional, entre pobres e ricos. É um populismo mais tradicional, como Getúlio Vargas, como Perón. Bolsonaro tem um populismo mais bem construído nesse sentido e mais complexo, mas que funciona. Porque o povo deles são cidadãos de bem, e cidadão de bem não tem nada com renda, com poder aquisitivo.

Qual seria a diferença entre o populismo do Lula e do Bolsonaro?

O populismo sempre é um discurso que divide a sociedade entre elite e povo. O populista é representante do povo contra uma elite que trabalha contra o povo. A maneira como cada um dos dois significa elite e povo é muito diferente. No caso, o Lula entra numa tradição latino-americana em que o povo são os pobres e a elite são os ricos. No caso do Bolsonaro, o povo é o cidadão de bem e a elite é aquele que não deixa o cidadão de bem trabalhar. Chega ao paralelismo de, no caso de lutas fundiárias, o MST ser visto como elite e o latifundiário como povo porque o cidadão de bem é o latifundiário que está tendo a sua terra “invadida” por um militante do MST que é mantido pelo governo… É contra os intelectuais. Aí “intelectuais” tem que incluir não apenas intelectuais do ponto de vista acadêmico, mas intelectuais da sociedade. Intelectuais orgânicos. Lideranças de movimentos sociais são intelectuais. Muito da agenda anti-intelectual de Bolsonaro entra na construção do discurso populista que ele faz. Ela é muito importante porque são eles os adversários a serem combatidos.

Recentemente o senador eleito Hamilton Mourão falou em “enquadrar o STF”. Bolsonaro disse que já recebeu essa proposta, o que foi comparado a uma ação autocrata. Que cenários você vê caso Bolsonaro seja eleito? Ele pode se tornar um autocrata? 

Se o Bolsonaro tem uma qualidade é que ele é sincero. Se ele diz que quer fazer algo [como ampliar o número de ministros do STF], eu acredito que ele queira fazer. Se eu posso dar um elogio para ele é esse. As pessoas que votaram no Bolsonaro me falaram: “Ah, mas eu não imaginava que ia ser assim”. Mas imaginavam o quê? Eu achei, inclusive, que ia ser muito pior. Na resposta da pandemia, era óbvio que o Bolsonaro ia fazer o que fez. Na primeira semana, ele assumiu uma posição mais responsável e foi uma catástrofe para ele.

Acho que temos todos os indícios [de que ele pode se tornar um autocrata], mas o Bolsonaro às vezes surpreende. Quando olhamos para os governantes chamamos de autocratas no mundo, e olhamos como eles usaram a pandemia, vemos que muitos deles aproveitaram para aumentar o estado de exceção. O Modi [primeiro-ministro da Índia] é um excelente exemplo. Ele fez vários lockdowns, aproveitou esse momento para prender todo mundo em casa literalmente e soltar os cachorros em cima da população muçulmana. O Viktor Orbán na Hungria, no início da pandemia, também aumentou o estado de exceção no país. É curioso que o Bolsonaro, sendo ele um “autocrata” ou com essa propensão, não tenha usado a pandemia para intensificar um estado de exceção no Brasil. Não sei se o que a gente vai caminhar é para uma ditadura clássica ou uma autocracia no exemplo da Hungria, da Turquia, da própria Venezuela, em que no fundo você tem uma deterioração constante da democracia. Certamente aumentaria o número de juízes do STF, perseguiria inimigos políticos. Não tenho nenhuma dúvida de que a agenda dele será absolutamente antidemocrática e perigosa. Só não sei se vai tomar um um sentido mais clássico de autocracia, como a gente já conhece, ou uma coisa nova, pior.

Considerando que ele não seja eleito, que caminho ele deve seguir, levando em conta que a extrema direita brasileira tem se inspirado muito na extrema direita americana?

 

Acho que ele tem três opções. Uma possibilidade, já comentamos, é ele ganhar. Perdendo, ele tem dois caminhos. Ele precisa contestar o resultado das eleições. Não existe outra possibilidade para Bolsonaro, assim como não existia ele dizer: “Não, esse vírus é muito sério. A gente vai combater ele com todos os nossos esforços. Eu vou aqui me unir com todos os governadores e prefeitos e vamos traçar um plano para combater esse vírus”. Isso seria a morte para ele. Bolsonaro rapidamente percebeu isso na pandemia e mudou de discurso. O Bolsonaro precisa sempre criar dissenso. O tempo todo, ele só surfa no dissenso. Onde existe consenso, Bolsonaro murcha. Ele não consegue construir consenso, não consegue crescer no consenso. Então o dissenso que ele vai criar é “houve fraude, a eleição não é válida, não reconheço o resultado”. Ele vai fazer isso com certeza se perder. Agora, será que ele vai usar isso e aproveitar que está dando auxílio para tudo quanto é taxista, para tudo quanto é caminhoneiro, para eles bloquearem as rodovias do país, por exemplo? Será que ele vai incitar as polícias militares a fazerem greves? Será que ele vai incitar os mais de 2 mil clubes de tiro que foram criados durante a sua gestão e os quase 700 mil CACs [Caçadores, Atiradores e Colecionadores], que têm licença, portanto têm direito de portar armas, e irem para rua atirar em pessoas? Será que ele vai fazer mais uma revolução no sentido de uma insurgência em que ele toma de assalto o país e diz que não aceita o resultado, que fica? Acho que ele tem todas as condições para isso. Ele armou a população, tem uma estratégia de comunicação direta com os policiais. Nesse sentido, o exército é irrelevante. Só precisa ficar quieto.

Vide a Bolívia.

Exatamente. Faz uma coisa meio Bolívia. Mas seria muito arriscado para o Bolsonaro. Você imagina sustentar isso no longo prazo. Com os Estados Unidos sendo contra, a Europa, você começa a ter bloqueios de fora. O empresariado não vai ficar calado, tampouco. Seria uma batalha muito mais dura pro Bolsonaro, um fim precoce dele. Não acho que faça sentido, embora eu ache que ele tem condições de paralisar o país e fazer uma insurreição generalizada como ninguém tem. Acho que a melhor estratégia para ele é dar uma de Trump. O Trump fez aquela performance lá no Congresso para não deixar passar em branco, mostrar que ele tinha alguma força. Os apoiadores dele vão lá, invadem o Capitólio, fazem uma uma balbúrdia e fica por isso mesmo. Ao fazer algo no sentido do Trump, ele mantém essa extrema direita fiel a ele.

Você também defende que derrotar o bolsonarismo deve ser uma obsessão política de todos os democratas nos próximos anos. Como derrotar o bolsonarismo?

Aqui meu lado católico fala mais alto que o de cientista político. Para os católicos, talvez a mensagem mais importante do evangelho seja a de que os últimos serão os primeiros. E quem são os últimos da Bíblia? São os descartáveis, os mais frágeis. O último não é o pobre, é aquele que não tem relevância para a “sociedade”. Acho que temos que conduzir todas as políticas públicas, todo o nosso discurso, para a proteção dos últimos, dos mais frágeis. Isso vai desde pessoas até biomas como, por exemplo, a Amazônia. Amarrar isso com esse diálogo com a religiosidade sem questionar a laicidade do Estado, mas ancorando o discurso político em valores cristãos fundamentais, que é um discurso e uma prática voltada para os últimos. E daí não é dar auxílio. Vou dar um exemplo de uma política pública que é feita para os últimos. A saúde. Quem tem prioridade na fila são os idosos, quem está pior. Um governo que vai combater o bolsonarismo na sociedade é um governo que tem que integrar, por exemplo, a saúde e o Ministério do Meio Ambiente. Isso é priorizar a fragilidade acima de tudo. É algo que a saúde faz muito bem, diferente da educação, em que se prioriza o potencial, “que vençam os melhores”. A gente tem uma série de infraestruturas de cuidado que têm que ser voltadas para isso. E não tem como o Lula querer repetir o que foram os dois mandatos dele. Se ele for eleito, tem que ser um governo conectado ao que é o século XXI e que está protegendo a fragilidade.

O que a gente vê dos governos que estão lutando contra a extrema direita? O Macron na França, por exemplo. Ele tem uma agenda muito boa, só que é uma agenda dos anos 90. No mundo já passaram 30 anos. Como se nos anos 90 se tivesse uma agenda dos anos 60. Tenho a impressão de que o “campo progressista” ainda está sonhando com aquela época gloriosa consensual em que as políticas públicas têm um caminho determinado, que é um pouco o sonho do Lula, sonho do Macron, cada um com as suas diferenças e matizes. Esse sonho de uma unidade que não existe, e não um olhar para os mais frágeis. Não tem que governar para todos. Tem que governar para os mais frágeis. Assim como Bolsonaro não governa pra todos. Ele governa para os mais fortes. Vamos equilibrar. Isso tem que ser mais afirmado. Mas eu duvido que o Lula faça isso. Vai ser um ministério todo formado por um bando de senhores com mais de 70 anos do PT, do PSDB, do MDB. O importante é que eles ganhem, porque, se não ganharem, aí realmente acabou o país. Não estou nem esperando que o governo Lula seja bom. Se for um governo mediano, já está ótimo.

Miguel Lago é cientista político e diretor executivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps)

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