Uma polarização assimétrica e perene

O resultado das eleições de outubro aponta, assim, para a perenização da polarização assimétrica entre uma esquerda light e uma direita agressiva – o que significa manter a debilitada democracia brasileira sob tensão. Mas outros desdobramentos são possíveis.

Por Luis Felipe Miguel*, no Blog da Boitempo

As eleições para o Congresso e nos estados trouxeram uma certeza: a extrema-direita chegou para ficar. O bolsonarismo não é um pesadelo do qual despertaríamos depois de quatro anos, mas um elemento que acompanhará a vida política brasileira por longo tempo.

A reforma do sistema eleitoral, com a proibição das coligações e a vigência da cláusula de barreira, rendeu um efeito modesto, mas perceptível. Ao longo da Nova República, os indicadores de fragmentação partidária no Congresso mostraram tendência de piora, um processo que se acelerou a partir das eleições de 2014 – isto é, no momento em que o regime entra em crise. A eleição de 2022 revelou um quadro ainda de enorme fragmentação, mas de volta aos níveis de meados da década de 2000, como mostra a tabela 1.

A redução dos partidos com representação parlamentar costuma ser vista, pelo senso comum do jornalismo e da ciência política, como necessária para a consolidação da democracia no Brasil. Mas, obtida por meio de regras arbitrárias, pode significar pouca coisa em termos de aprimoramento da representação. A fusão de PSL e DEM, que gerou o União Brasil, enxugou o número de partidos. A nova legenda, porém, é tão invertebrada, desagregada e oportunista quanto as que lhe deram origem, nada acrescentando como compromisso programático ou clareza de perfil diante do eleitorado.

Mais importante que a diminuição no número de partidos é observar o perfil dos eleitos. Embora perfaçam, juntos, meros 33% da Câmara, PL e PT funcionam como polos à direita e à esquerda, agregando partidos menores, e serão também os polos de oposição e situação, para os quais gravitam, ao sabor das conveniências, os deputados do chamado Centrão.

A permanência do PT como carro-chefe de um dos polos é significativa, mostrando enraizamento eleitoral e resiliência da liderança de Lula. O partido elegeu deputados federais em 19 unidades da federação, três governadores já no primeiro turno e foi ao segundo turno em outros quatro estados.

Na crise de 2015-6, quando Dilma foi derrubada quase sem resistência, não faltou quem vaticinasse que chegara o momento de uma esquerda pós-petista. No entanto, a posição do PT é ainda mais forte hoje. PSB e PDT não apenas diminuíram como têm dificuldade para afirmar um perfil de esquerda. O PSOL cresce devagar e, alinhado ao lulismo, pouco consegue se diferenciar do próprio PT. Seu setor mais importante, aquele de Guilherme Boulos, é praticamente uma tendência externa do petismo.

Ainda que a sucessão à liderança de Lula seja uma incógnita, sobretudo caso Haddad não consiga chegar ao governo de São Paulo, tudo indica que o PT permanecerá não só como uma força política de primeira grandeza, mas como um dos eixos de estruturação da disputa política no Brasil.

O caso do PL é diferente. Por suas características (um movimento personalista com chefe errático, incapaz de firmar uma estrutura de lideranças intermediárias), o bolsonarismo tem dificuldade de se organizar como partido. Não é possível dizer se o PL terá o mesmo destino do PSL ou se vai de fato se estabelecer como a legenda de Bolsonaro e de seus seguidores.

O que parece certo é que uma nuvem de parlamentares de extrema-direita permanecerá atuante no país, ocupando o espaço de contraposição ao PT que antes era do polo de centro-direita capitaneado pelo PSDB. Trata-se do amálgama próprio do bolsonarismo, que funde o conservadorismo religioso (que lhe permite ativar o pânico moral, chave de seu sucesso junto à base popular) ao fundamentalismo de mercado (que lhe garante a simpatia do andar de cima).

Bolsonaro se garantiu como grande porta-voz deste campo. Por um lado, as igrejas se renderam a ele, abdicando de qualquer independência. Por outro, iniciativas ultraliberais concorrentes perderam qualquer força, caso do MBL e do Novo – este último não apenas minguou eleitoralmente como, sob o comando de Zema e Felipe d’Ávila, virou um anexo do bolsonarismo.

A bancada que o PL e seus satélites elegeram não é necessariamente composta por direitistas fanáticos. Há um bom punhado de oportunistas de velha cepa, que apenas entenderam que um discurso radicalizado se tornou o caminho das pedras para o sucesso eleitoral. Ainda assim, eles têm um poderoso incentivo para não abandonar o ex-capitão: o fracasso nas urnas dos ex-bolsonaristas, do qual o exemplo mais gritante é Joice Hasselmann, que perdeu mais de um milhão de votos – quase 99% do que havia alcançado – entre 2018 e 2022. (A exceção são os lavajatistas, como Moro e Dallagnol, mas convém lembrar que no decorrer da campanha eles retornaram ao seio do bolsonarismo.)

Ou seja, mesmo que não inteiramente sinceros, estes parlamentares devem ser fiéis ao extremismo que ostentaram na campanha.

A ciência política brasileira sempre lamentou a ausência de compromisso programático de nossos representantes, a fraqueza do vínculo representativo. Agora a situação mudou, mas há pouco a comemorar: é uma coerência entre discurso e ação que trabalha contra, não a favor da democracia. Como diz a sabedoria popular, “toma cuidado com aquilo que desejas”…

O avanço de uma direita extremada não é fenômeno exclusivo do Brasil – mas estamos entre os países com instituições democráticas frágeis, portanto com menores condições de reação. O Supremo foi desmoralizado por sua conivência com o golpe de 2016, o desmonte da Constituição e o retrocesso dos direitos, o que dificulta a defesa da separação de poderes, entretanto crucial neste momento. A cúpula militar nunca se adaptou ao controle civil e ao regime democrático, mantendo a nostalgia da ditadura. Os meios de comunicação de massa hoje se apresentam como vítimas do bolsonarismo, que os persegue e ameaça com censura, mas foram cúmplices do desmonte da ordem constitucional, do apoio à conspiração Lava Jato ao discurso da “escolha muito difícil” em 2018. O movimento popular, em especial o movimento sindical, está enfraquecido e com baixa capacidade de resistência.

O resultado das eleições de outubro aponta, assim, para a perenização da polarização assimétrica entre uma esquerda light e uma direita agressiva – o que significa manter a debilitada democracia brasileira sob tensão. Mas outros desdobramentos são possíveis.

Caso Bolsonaro se reeleja, podemos esperar uma campanha de banimento de seus adversários políticos, nos moldes da Turquia ou da Hungria, com o objetivo de aniquilar a esquerda. Caso as instituições não consigam barrá-lo, o PT será asfixiado e a polarização vai se tornar mais virtual do que real. Caminharemos para um regime autoritário, sem opções políticas factíveis.

Uma vitória de Lula só seria completa caso, no novo governo, Bolsonaro e seu clã fossem responsabilizados pelos muitos crimes que cometeram nos últimos anos. Esta seria, também, a melhor forma de combater a extrema-direita. A força com que o bolsonarismo saiu das urnas, porém, torna pouco provável uma ação punitiva mais incisiva. Mesmo derrotado em 30 de outubro, o atual presidente será premiado com a impunidade. O que é pior, viveremos sob um paradoxo. Incapaz de estabelecer compromissos e sabedor de que é a agitação política da base que o protege, ele ficará tanto mais seguro quanto mais trabalhar para desestabilizar o novo governo.

Serão tempos turbulentos, sem qualquer saída fácil à vista. E esta é a melhor da hipóteses.

Luis Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Imagem: (Da esquerda para direita) Foto 1: Ricardo Stuckert – Foto 2: Reprodução/YouTube

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