Com 87 representantes na Câmara e nas Assembleias, as corporações policiais abraçam um projeto conservador amplo, muito além das pautas de segurança e trabalhistas. Será preciso contê-las. Evitar o atrito, a essa altura, é o pior a fazer
A convulsão social pela qual o Brasil tem passado nos últimos anos vem acompanhada de vários fenômenos, e um dos mais significativos deles, sem dúvida, é a politização das polícias. Um fenômeno que se reflete nas urnas. Em 2018, já havíamos batido o recorde de policiais eleitos para a Câmara dos Deputados, com 25 membros oriundos das forças de segurança pública. Em 2022, um novo recorde: 37 policiais.
Mas quais os significados deste fenômeno de politização das polícias inédito na história do país?
Sim, inédito. Quando digo isso, não é que a polícia nunca tenha tido um papel político no Brasil. Longe disso. No mundo todo, as polícias modernas foram as instituições responsáveis, por exemplo, por consolidar o Estado moderno. Basicamente todas as democracias liberais do mundo foram possibilitadas e fundadas através da violência policial e de sua atuação no controle das “classes perigosas”.
Falando mais especificamente do Brasil, as polícias tiveram participação em todas as movimentações políticas do país desde que elas se consolidaram no século 19. Atuaram na manutenção da escravidão, suprimiram revoltas anti-imperiais, auxiliaram a política dos governadores na Velha República, exerceram a polícia política de Vargas e foram força auxiliar do Exército na Ditadura Militar.
A diferença deste desenvolvimento histórico para os dias de hoje é que, em cada um desses movimentos, a polícia nunca foi formuladora, nunca teve um mínimo de autonomia. Era sempre uma força auxiliar a serviço de uma elite que realmente comandava o movimento. Uma força quase que acrítica, capaz de mudar de rumo na mesma velocidade que as ordens que recebia das classes dirigentes.
São raros os acontecimentos históricos em que algo diferente disso foi demonstrado. Houve, sim, algum protagonismo da Força Pública paulista na Revolução Constitucionalista de 1932, embora a força central do movimento tenha sido mesmo a indignação da velha oligarquia paulista. Tivemos, também, boicotes de setores das polícias civis a presidentes que não se alinhavam ao udenismo entre 1945 e 1964, como Vargas, JK e Goulart, mas nada que formasse um movimento político completo.
De 2018 pra cá, uma “chavinha” parece ter virado nas forças de segurança pública brasileiras. A polícia de hoje tem pauta própria, e é capaz de brigar até mesmo com a direita política mais tradicional. Tem seus próprios formuladores e se tornou um núcleo importante do “bolsonarismo”, onde não é só braço, mas também cabeça.
Para o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, “os policiais que tinham uma pauta mais corporativista, associativista ou sindical no sentido de pautas de carreira policial, (…) não foram eleitos. Os nomes que se destacam nesta eleição emulam o bolsonarismo radical, extremamente radical”.
Nesse ponto, concordo integralmente com Renato. Apenas discordo de sua conclusão de que esses “policiais eleitos não foram eleitos como representantes das suas corporações: ou são influencers, pela midiatização da atividade policial, ou linha auxiliar do bolsonarismo radicalizado”.
Creio que esses policiais eleitos não só são, sim, representantes de suas corporações, como apontam a mudança política pela qual as fileiras dessas corporações passaram nos últimos anos: pautas “trabalhistas” parecem realmente ter sido deixadas de lado por policiais, que abraçaram a ideia de um projeto político conservador muito maior, que ultrapassa a própria área da segurança pública. A entrada massiva de igrejas evangélicas nas corporações também é um ponto a ser considerado nesta conta.
E foi nesse sentimento de pertencimento real a um projeto político muito maior que chegamos a uma situação em que 7% da Câmara dos Deputados, a “Casa que representa o povo”, é ocupada pela classe policial. Uma situação em que policiais e militares conquistaram 87 cadeiras nas Casas Legislativas de todo o país.
Soma-se a isso a situação tensa nos estados que se viu nos últimos anos, que culminou, às vésperas do 7 de setembro de 2021, numa reunião entre governadores para discutir formas de manter o controle sobre suas polícias, alvoroçadas pelo golpismo bolsonarista. Casos pontuais como o de Sobral e o de manifestações reprimidas em Pernambuco e São Paulo anos antes já soavam esse alerta.
Um cenário que nos mostra que há uma verdadeira bomba-relógio armada no país, sujeita a todo tipo de incerteza que a política nacional nos dá na atualidade.
Caso icônico é o de São Paulo: como se portará a maior, mais equipada e mais treinada Polícia Militar estadual do país num estado em que a única certeza é a de que as coisas vão mudar? Como se portará a PM paulista sendo comandada, pela primeira vez na sua história, por um governador de esquerda? Ou como se portará a PM paulista passada das garras dos tucanos às mãos do bolsonarismo?
Como será essa situação de conflito em outros estados no caso de vitória de Lula? Que tipo de força as polícias estaduais sentirão no caso de vitória de Bolsonaro?
Independente dos resultados das urnas no fim do mês, todos nós teremos de lidar com essa bomba-relógio. E não há resposta simples para desarmá-la.
Trazer o debate para o campo “trabalhista”, na perspectiva do policial como trabalhador, parece inútil quando as próprias fileiras policias já deixaram a pauta de lado em nome de um projeto conservador muito maior. Evitar atritos também parece ineficaz quando toda sorte de radicalismo é inflada pelo outro lado.
Tudo indica que a árdua tarefa de colocar as polícias sob controle passa, inevitavelmente, pelo atrito. Passa por medidas que vão causar ainda mais descontentamento nas fileiras policiais, como a punição a insubordinações e à violência policial, ou o aumento de participação social nas estruturas que atuam com poder disciplinar sobre as polícias. Medidas que não serão postas em prática sem a boa vontade de governadores e Ministério Público, e, aqui, temos outros entre tantos problemas.
Porém, já estamos quase no apagar das luzes de 2022 (e também da nossa democracia). A essa altura do campeonato, quem foge do atrito não entendeu absolutamente nada do que está acontecendo.