Benefício era negado pelo INSS com base em regra de idade mínima que desconsiderava os costumes próprios da cultura indígena
Ministério Público Federal em São Paulo
A partir de agora, mulheres indígenas do povo Guarani que vivem nos municípios da Grande São Paulo poderão receber o salário-maternidade quando se tornarem mães antes dos 16 anos. O benefício previdenciário deverá ser pago pelo INSS às jovens cadastradas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) como exercentes de atividade rural. A medida foi determinada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), que atendeu pedidos feitos em uma ação do Ministério Público Federal. Até então o direito ao salário-maternidade vinha sendo negado às adolescentes indígenas com o argumento de que não possuíam a idade mínima prevista na Lei n° 8.213/91. A decisão do TRF3 é definitiva, pois transitou em julgado no último dia 19 de outubro.
Segundo a legislação que dispões sobre os benefícios da Previdência Social, o salário-maternidade deve ser pago durante 120 dias às seguradas especiais que exerceram atividade rural em regime de economia familiar por um período de, pelo menos, dez meses. Contudo, a Lei n° 8.213/91 determina que, para fazer jus ao benefício, a jovem mãe precisa ter no mínimo 16 anos – regra que seria destinada a coibir o trabalho infantil.
Tal lógica, entretanto, não se aplica às populações indígenas Guarani, já que as características culturais e sociais deste povo levam as adolescentes a trabalharem em regime de economia familiar e terem filhos antes dos 16 anos. Por isso, o MPF vem atuando desde 2017 para que o INSS reconheça o direito ao salário-maternidade às seguradas indígenas que exercem trabalho peculiar à sua cultura, independentemente da idade. “Parece evidente que uma norma protetiva – a que proíbe o trabalho do menor – não pode resultar em prejuízo para aqueles a quem visa proteger, sobretudo quando o trabalho coletivo constitui um aspecto central do povo indígena a que a adolescente pertence”, ressalta a procuradora da República Suzana Fairbanks, autora da ação do MPF.
O respeito à organização social e aos costumes dos povos originários é garantido pela Constituição Federal e por outras normas, como o Estatuto do Índio (Lei n° 6.001/73). Tal legislação, por exemplo, assegura aos indígenas brasileiros todos os direitos previstos nas leis trabalhistas e de previdência social, sendo “permitida a adaptação de condições de trabalho aos usos e costumes da comunidade a que pertencer o índio”. Assim, o direito a benefícios previdenciários para as indígenas não se restringiria a uma idade mínima, devendo seguir os costumes comunitários.
Tramitação – Apesar das previsões legais, quando questionada extrajudicialmente pelo MPF, a Superintendência Regional do INSS em São Paulo informou que manteria as exigências vigentes, indeferindo os requerimentos de salário-maternidade quando não cumprido o requisito da idade mínima pelas jovens do povo Guarani. Como resultado, a Procuradoria da República ajuizou uma ação em 2018, para que o instituto previdenciário fosse obrigado pela Justiça a admitir a inscrição das mulheres indígenas menores de 16 anos no Regime Geral da Previdência Social (RGPS).
“Como se infere da Constituição e de todo o ordenamento jurídico, o sistema de assistência social e previdenciária alcança a proteção aos índios respeitando sua organização social, suas tradições e suas práticas. Não se pode, administrativamente, aplicá-los de forma prejudicial, ainda que escudada na proibição do trabalho para os menores de 16 anos”, destaca a ação.
Em 2019, a sentença em primeira instância julgou improcedente os pedidos do MPF, alegando, entre outros pontos, que, devido aos escassos recursos destinados ao financiamento da Previdência Social, estender o salário-maternidade para situações não contempladas na lei poderia comprometer o equilíbrio financeiro e atuarial do RGPS. O MPF recorreu e o caso foi julgado este ano pelo TRF3, que aceitou os argumentos da apelação e modificou a sentença inicial.
Em sua decisão, o desembargador federal David Dantas ressaltou que a maternidade e a condição laboral anterior aos 16 anos é um traço característico dos povos indígenas brasileiros, que lutam para manter suas tradições, não obstante a interferência externa. “Desta feita, negar o benefício, pelo não preenchimento do requisito etário para filiação ao RGPS, a uma jovem impelida a trabalhar, por razões culturais, antes mesmo dos seus 16 anos, mostra-se em dissonância com as leis que tutelam as minorias indígenas e com o propósito da norma de proteção ao menor, deixando ao desamparo mãe e filho”, afirmou o magistrado.
Com o trânsito em julgado da decisão, o INSS fica obrigado a admitir no RGPS a inscrição de mulheres indígenas do povo Guarani, menores de 16 anos, residentes nos municípios abrangidos pela Seção Judiciária de São Paulo e cadastradas pela Funai como exercentes de atividade rural. O instituto também não pode indeferir o benefício de salário-maternidade exclusivamente em função do requisito etário, respeitadas as demais exigências legais. A decisão abarca as cidades de Barueri, Guarulhos, Mogi das Cruzes, Mauá, Osasco, Santo André, São Bernardo do Campo e São Paulo.
Leia a íntegra da ação do MPF e da decisão do TRF3. O número do processo é 5009160-45.2018.4.03.6100. Para consultar a tramitação, acesse o site da Justiça Federal.
—
Arte: Secom/MPF