Vencer Bolsonaro foi o primeiro passo. Agora, é preciso entender a militarização da política e o pânico moral das igrejas neopentecostais, bases do retrocesso. E apontar saídas à gourmetização da vida, enquanto milhões amargam a fome
Todas as forças progressistas e democráticas deste país ficaram atônitas com o resultado geral do primeiro turno das eleições deste ano, com votações inimagináveis a candidatos que beiram a insanidade – ou, na melhor das hipóteses, a uma caricatura grotesca de algo amorfo. Em suma: um retrocesso de proporções inestimáveis. A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva no pleito de 30 de outubro amenizou o sentimento de frustração e temor em relação ao futuro do Brasil, mas é preciso reconhecer que este espectro sinistro conhecido como bolsonarismo plantou raízes e se tornou, por incrível que pareça, uma peça extremamente relevante no cenário político brasileiro.
Muito tem sido escrito sobre a ascensão desse fenômeno macabro, e minha contribuição parte do princípio de que a esquerda precisa reavaliar a sua compreensão sobre a realidade brasileira. Isso não significa necessariamente abortar velhos conceitos e metodologias. Afinal, as permanências perversas do constructo social brasileiro (como o racismo estrutural e o latifúndio, por exemplo) estão mais vivas do que nunca e os inimigos de sempre continuaram (e continuarão) à espreita, no aguardo de uma janela de oportunidade para a cooptação de partidários e implementação de uma agenda com ações extremamente reacionárias maximizadas pela velocidade e capilaridade das redes sociais. As tubulações de esgoto do tecido social deste país nunca estiveram tão entupidas.
Esse novo contexto invoca novas análises e reflexões, que devem estar correlacionadas com as profundas mudanças que têm impactado o território brasileiro desde o fim da ditadura militar e o início da chamada Nova República. E, para além da questão meramente nacional, edificá-las de forma mais realística e eficiente com o movimento do mundo que foi aberto com o declínio da bipolaridade da Guerra Fria, do qual emanou um poderoso turbocapitalismo globalizado. A questão é complexa, obviamente, e pede uma análise multidimensional que não se esgota em um livro, muito menos em um artigo. Procurei organizar o meu ponto de vista em temáticas que considero altamente relevantes para que uma espécie de “ajuste fino” no plano das ideias seja alçado à condição de reflexão mais geral dos rumos do Brasil, ajudando de alguma forma nas estratégias que serão utilizadas pelas forças progressistas de agora em diante.
A militarização da política
Desde o advento da República, a política brasileira sempre reservou algum grau de militarização, mas em raras ocasiões havia ultrapassado o sentido estrito do termo. Ou seja, a militarização da política, em maior ou menor escala, de acordo com o contexto, ficara geralmente restrita à participação direta e indireta das Forças Armadas – e o golpe de 1964, como sabemos, foi o ápice desse processo. Mas, infelizmente, o fenômeno ganhou amplitude inédita com a entrada significativa no jogo das forças policiais civis e militares e com uma parcela considerável da sociedade civil que explicitamente defende políticas armamentistas.
Segundo pesquisa Genial/Quaest divulgada em 31 de agosto último, 30% dos entrevistados disseram acreditar que as leis que facilitam compra, porte e uso de armas aumentaram a segurança das pessoas, e o mesmo percentual gostaria de ter uma arma para se defender1. Cabe lembrar, ainda, que o número de unidades em nome de colecionador, atirador desportivo e caçador (CAC) aumentou de 350,7 mil, em 2018, para pouco mais de um milhão, em 2022, após a publicação dos decretos do governo Bolsonaro flexibilizando as normas para compra, porte e uso de armas pela população civil2.
O sociólogo José Vicente Tavares dos Santos, estudioso das pautas ligadas à segurança pública, já havia observado, no âmbito das greves policiais de 2012, na Bahia, a constituição de um “fenômeno social”. Ele lembrou que uma lei de 1967, editada em plena ditadura, transformou as polícias militares em órgãos auxiliares das Forças Armadas e militarizou o ensino policial. Ou seja, não houve a devida adequação das PMs ao trabalho em uma sociedade democrática, já que “faltam noções de direitos humanos, de investigação criminal, algo básico mas incrivelmente precário no Brasil”3, além da ausência de conteúdo correlato a mediação de conflitos.
A própria integração das Forças Armadas ao país depois de 21 anos (1964-85) de mandos, desmandos e atrocidades também se mostrou bastante frágil. A criação do Ministério da Defesa em 2000, durante o governo FHC, parecia ser um antídoto, mas novas crises apareceram na relação entre civis e militares no terreno político. Em 2004, a demissão do então ministro José Viegas ocorreu em meio à insatisfação de militares diante da anunciada abertura dos arquivos da ditadura. Cabe lembrar que a Comissão Nacional da Verdade, proposta no Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), no segundo mandato do governo Lula, também não foi bem recebida por vários setores da caserna. O caso do general Maynard Marques de Santa Rosa, que a chamou de “comissão da calúnia” e acabou sendo exonerado, ganhou as manchetes em 2010. “Os três comandantes militares reagiram contrariamente às cláusulas que propunham rever abusos contra os direitos humanos durante a ditadura e colocaram seus cargos à disposição”, lembrou a cientista política Maria Celina d’Araujo4.
A proposição da revisão da Lei de Anistia – que acabou sendo barrada pelo Superior Tribunal Federal (STF) por 7 votos a 2 — foi outro evento com ressonância extremamente negativa no seio das Forças, sobretudo com as declarações públicas de apoio do então Ministro da Justiça, o petista Tarso Genro. E, na sociedade civil, os defensores do golpe de 1964 e de uma nova quartelada em pleno século XXI assombram o país, de forma recorrente desde as eleições de 2018, com demonstrações de efeito. Para completar, o antropólogo Celso Castro, especialista do universo militar, admite que existe um déficit de conhecimento sobre o cotidiano da caserna, “daí compreender-se pouco o funcionamento dessas instituições”5.
D’Araujo clama por uma reflexão sobre o papel das forças de Defesa perante o povo e o Estado brasileiros, assunto que “nunca mobilizou os partidos, nunca deu votos”, além do desinteresse generalizado do Congresso sobre a questão. Mas, ao que parece, o bolsonarismo conseguiu encontrar aí uma brecha valiosa para a sua estratégia de poder, de certa forma interditando qualquer debate sobre a pauta sugerida por D’Araujo. É fato a adesão de setores e agentes das forças de segurança ao bolsonarismo – a participação de militares em cargos de confiança ao longo do governo Bolsonaro é espantosa –, mas muito ainda permanece sob uma cortina de fumaça quanto ao real potencial de ativismo político da categoria, sobretudo em relação aos policiais civis e militares.
A articulação política das igrejas evangélicas neopentecostais
A pesquisadora francesa Marion Aubrée talvez tenha sido uma das primeiras intelectuais a se debruçar sobre o fenômeno do expressivo crescimento dos movimentos evangélicos tidos como neopentecostais no Brasil. Um projeto que remonta ao final dos anos 1980, ainda em estágio inicial, encabeçado pela Igreja Universal do Reino de Deus com a sua missão global de evangelização a partir de um país do Terceiro Mundo. Segundo ela, esses movimentos “se adaptam bem à busca de uma devoção emocional pelo povo brasileiro às suas aspirações de uma relação direta com Deus”, na qual o transe corporal (ou a explosão do corpo, como define Aubrée), pouco compreendido ou rejeitado, foi substituído pela “transverbal”, ou “a linguagem dos anjos que, quando praticada, inibe as expressões corporais”6.
Mesmo assim, a articulação midiática dos cultos e atividades na tela da tevê – apenas para ficar no exemplo mais emblemático, a tradicional TV Record, fundada em 1953, foi comprada pelo bispo e empresário Edir Macedo em 1989 – levou a um ajuste, tolerando a maquiagem e roupas menos convencionais e deixando o corpo mais livre. Como afirma Aubrée, “voltou a ser brasileiro”. Desse modo, “sensibilizou setores ponderáveis das classes mais modestas da população”, além de acolher, continua ela, “parte dos vitimados pelo êxodo rural e pela marginalização urbana e ajudando-os a reconstruir suas identidades perdidas em tantas vicissitudes”.
O resultado é que, integrados ao movimento, os indivíduos “redescobrem a autoestima, o senso da dignidade”, atendendo, assim, ao “preceito-chave da ética individualista predominante no mundo atual – (…) que o homem tem que ser forte, equilibrado espiritual e moralmente para encontrar seu lugar ao sol”. Soma-se a isso a introdução pragmática da Teologia da Prosperidade nas comunidades evangélicas, alavancada por cursos de alfabetização, aprendizado de profissões, oferta de empregos e possibilidade de desenvolver carreira eclesiástica, “buscando meios para as pessoas progredirem na vida”.
Como bem disse o historiador Leandro Karnal, a “capilaridade notável” de “milhares de pequenas igrejas nas periferias das cidades” elevou o mundo evangélico a um “poderoso dínamo para as almas e para as urnas”7. Na sua análise, como tendência geral os evangélicos “valorizam pontos como críticas ao casamento homoafetivo”, embora o tom médio do eleitorado brasileiro “é muito conservador e isso antecede a presença evangélica no Parlamento”. Para Karnal, “evangélicos não criam, apenas reforçam um reacionarismo difuso”, e acreditar que votam em quem pastores e bispos mandam seria uma ideia que “subestima a capacidade crítica dos evangélicos e omite a mudança na composição social do grupo”. Naquele contexto, em 2014, Karnal analisou a questão como um controle até desejável pelas lideranças religiosas, mas que “não existe como dado absoluto”. Entretanto, deixou o debate em aberto, pois a temática estaria em “ebulição intensa”.
Mas os fatos recentes mostram que neste campo foi aberta outra brecha bastante utilizada pelo bolsonarismo: uma aliança tácita e explícita entre os exploradores da fé alheia e os falsos defensores dos valores de Deus e da família que envolve interesses de ambos os lados e muito dinheiro. E o dado absoluto agora está aí: o resultado foi o reforço da chamada bancada evangélica no Congresso – dos 177 candidatos a deputado federal, 109 foram eleitos, taxa superior a 60%. Ademais, alguns novatos ligados às igrejas evangélicas foram campeões de voto em seus respectivos estados. Nikolas Ferreira (PL-MG), o deputado mais votado do Brasil, com cerca de 1,492 milhão de votos, integra a Comunidade Evangélica Graça e Paz. O ex-procurador Deltan Dallagnol (Podemos-PR), conhecido por ter sido um dos cabeças da famigerada Operação Lava Jato, é da Igreja Batista do Bacacheri, em Curitiba, e com alguma frequência realiza palestras e pregações nos púlpitos evangélicos.
Filipe Barros (PL-PR), da Igreja Presbiteriana Central de Londrina, Silas Câmara (Republicamos-AM), Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), Paulo Freira Costa (PL-SP) e Cezinha Madureira (PSD-SP) são outros exemplos, todos da Assembleia de Deus, que mantém o seu domínio sobre a Frente Parlamentar Evangélica, que tem na “pauta dos costumes” a sua trincheira de valores conservadores contrários à esquerda. “Vai ter um grupo mais coeso agora, porque os novos deputados eleitos são evangélicos e é gente mais aguerrida. Isso vai ficar muito bom para a bancada”, declarou o deputado Gilberto Nascimento (PSC-SP), um dos principais articuladores do movimento e reeleito para o seu quarto mandato8. Por outro lado, os evangélicos de esquerda continuam sendo minoria.
O ex-ministro do STF, Cezar Peluso, já havia declarado que a Corte, provocada a deliberar sobre direitos considerados lesivos à sociedade pelas forças conservadoras (aborto, células-tronco, fetos anencéfalos, direitos dos homoafetivos), “reforça o caráter laico do ordenamento jurídico, (…) ao ponto de enfrentar as resistências religiosas em nome da laicidade do Estado”9. Na campanha para o segundo turno, Lula teve que lançar, estrategicamente, uma carta aos evangélicos que afirma a liberdade de culto e a posição contrária ao aborto. Ao mesmo tempo, a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, lota igrejas neopentecostais Brasil afora ao lado da senadora eleita Damares Alves (Republicanos-DF), conhecida por inflar a pauta conservadora de costumes.
O diretor do Observatório Evangélico, Vinicius do Valle, enxerga um ambiente bastante violento no universo das igrejas, com “consequências sérias, dentro e fora dos templos”10. O desejo de aniquilamento da diferença, “mesmo entre aqueles que comungam da mesma fé”, foi incrustado nas igrejas pelo bolsonarismo, formando uma legião de (pseudo) religiosos que passou a disseminar a ideia de que o Partido dos Trabalhadores (PT), “amigo de ditaduras sanguinárias, fecharia igrejas, obrigaria as crianças a usar banheiros unissex, liberaria o aborto e ameaçaria a integridade das famílias”.
Valle explica que as pautas morais e religiosas, situadas “no terreno das crenças e das paixões, e menos conectadas à materialidade”, são “mais suscetíveis à dinâmica do marketing político agressivo e das fake news”. E o “bom marketing político”, como nos mostra a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz, “é aquele que vai de encontro à imaginação política que já existe” e, portanto, “o bom candidato é aquele que sabe dialogar com esse imaginário da sociedade”11. Eis aqui, portanto, uma questão que precisa ser mais bem estudada, compreendida e enfrentada.
A força do dinheiro e do consumo
Uma enxurrada de números mostra o quadro sombrio para boa parte da população brasileira. Em 2021, 62,93 milhões de pessoas (ou 29,62% do total) viviam com renda domiciliar per capita de até US$ 5,50 por dia – ou seja, abaixo da linha da pobreza, segundo parâmetro internacional adotado pela Organização das Nações Unidas (ONU). No mesmo ano, o rendimento médio mensal per capita registrou o menor valor desde o início da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) desde 201212. Tecnicamente, de cada quatro brasileiros um está sob a linha de pobreza.
Não é exagero admitir, entretanto, que as condições materiais do povo brasileiro melhoraram, em níveis gerais, a partir dos anos 1990. Não pretendo aqui discutir as causas desse fenômeno – obviamente que as políticas sociais reorganizadas, azeitadas e vitaminadas com o PT no poder o explicam em parte –, e nem mesmo fechar os olhos para as mazelas crônicas e estruturais, mas o Brasil não é a Índia e nem a África, sem qualquer sentido pejorativo ou discriminatório sobre essas duas partes do mundo. Quero dizer com isso que a força do dinheiro e do consumo aterrissou com peso no Brasil a partir daquele contexto, mesmo que em escalas e condições diferenciadas. Com o neoliberalismo irresponsável e a abertura indiscriminada ao mundo globalizado, o país foi inserido numa posição amplamente disputada pelo capital internacional, já que passou a figurar entre os dez principais mercados consumidores mundiais de quase todos os bens de consumo, sejam eles duráveis, semiduráveis ou não-duráveis.
Gradativamente houve uma multiplicação de shoppings centers nas grandes cidades, inclusive nas periferias, chegando anos depois a várias cidades de porte médio do interior do país. O efeito-demonstração causado pelo consumismo – e tudo o que ele carrega, como a criação inesgotável de desejos materiais, a ideia de felicidade, a busca por status e afirmação social e altas dosagens de entretenimento entorpecente – atingiu em cheio a todos os extratos da sociedade, sobretudo os mais baixos, que até então apenas de forma marginal faziam parte do mercado consumidor e, na sua estrutura psíquica e cultural, não tinham no consumo um valor em si de grande relevância para o seu cotidiano. Em suma, o dinheiro transformou-se no grande mediador das relações sociais em praticamente todas as porções do território e em todas as classes sociais.
O próprio governo Lula proporcionou um crescimento vertiginoso dessa dinâmica com as correlatas políticas de expansão do crédito público e aumento real do salário mínimo acima da inflação, incrementando o poder aquisitivo de grandes parcelas da população. Mas junto com o dinheiro e o consumo vêm o individualismo, a ganância e a ambição, um pacote completo embalado por milhares de peças publicitárias e pela ideia fortemente difundida da meritocracia e do empreendedorismo, diametralmente oposta aos valores humanistas de alteridade e solidariedade. O progresso material se sobrepõe a tudo e a todos e a busca pela “gourmetização da vida” é, agora, o modus operandi e o objetivo geral a ser alcançado por uma expressiva parcela da sociedade. Completa-se, assim, a atomização do indivíduo, presente nas periferias e nos bairros de classe média, nas capitais e no interior, no litoral e nos confins da Amazônia.
Como bem disse Karnal, “viver imune aos apelos do consumo é complexo para o adulto e quase intransponível para o jovem”13. O geógrafo Milton Santos vai além. Em sua análise sobre a globalização (que prefere denominar de “globaritarismo”, a aliança entre a tirania do dinheiro e da informação), o consumo é “o grande fundamentalismo do nosso tempo, porque alcança e envolve toda gente”. É um grande emoliente, “produtor ou encorajador de imobilismos”, ou “um veículo de narcisismos, por meio dos seus estímulos estéticos, morais, sociais”. E completa: “Consumismo e competitividade levam ao emagrecimento moral e intelectual da pessoa, à redução da personalidade e da visão do mundo, convidando, também, a esquecer a oposição fundamental entre a figura do consumidor e a figura do cidadão.”14
Mesmo que em camadas, nuances, formas e situações diferenciadas o brasileiro entrou (ou foi empurrado) com força na dinâmica do turbocapitalismo globalizado, na qual a espiral do consumismo é um de seus principais traços, e o medo da perda das condições materiais, mesmo que reduzidas se comparadas aos extratos mais elevados da sociedade, aparece como elemento paralisante e reacionário. A questão da segurança pública ajuda a reforçar esse último aspecto com narrativas e imagens veiculadas incessantemente por programas de televisão sensacionalistas e a escassez, em outros tempos um forte elemento a favor das revoluções sociais, hoje parece estar mais inclinada ao reacionarismo.
Talvez a essência do brasileiro tenha se tornado mais individualista e menos espontânea, cada vez mais enquadrada no “reino do cálculo e da competitividade”, amparado por um discurso único do mundo no qual as formas de relações econômicas implacáveis não aceitam discussão e exigem obediência imediata, como nos ensina Milton Santos15. Assim, a competitividade como norma acaba justificando os “individualismos arrebatadores e possessivos” na vida econômica, na ordem política, na ordem do território e na ordem social e individual. É o “dinheiro em estado puro”, explica o autor, em que dinheiro e consumo são tidos como reguladores da vida individual, cujo “objetivo é a necessidade, real ou imaginada, de buscar mais dinheiro”16.
Desde o último quartel do século XX, já há toda uma geração criada na frente da televisão, submetida a milhares de peças publicitárias por ano e seduzida pela expansão em grande escala da variedade de bens de consumo. Uma geração inteira receptora de enlatados estadunidenses em volume absurdo, na tevê, no cinema, nas rádios e nas antigas videolocadoras, fortalecendo o chamado american way of life na mente de grande parte da juventude brasileira de então. Uma geração inteira induzida ao convencimento da grandiosidade do papel dos Estados Unidos no mundo. Uma geração inteira com alto grau de despolitização, cujos ideais revolucionários pretéritos deixaram de ser atraentes.
Esses valores forjaram (e continuam forjando) a estrutura emocional, psíquica e cultural de parcela considerável das classes altas e médias das grandes e médias cidades brasileiras, frequentadoras assíduas da Disneylândia (desde criancinha) e dos inúmeros voos semanais para Miami e outros lugares dos Estados Unidos e da Europa. O pior é que esse fenômeno está gerando capilaridade entre as camadas mais pobres e se propaga pelo celular, na velocidade e ferocidade da internet e das redes sociais.
Por uma reforma agrária nos marcos do século XXI
É escancarada a rejeição dos agentes do agronegócio a Lula e ao PT. No primeiro turno, o candidato à reeleição venceu em 77 dos 100 municípios mais ricos do agronegócio, que juntos equivalem a 5,3 milhões de votos e concentram 34,3% do Valor Bruto da Produção Agrícola (VBP) nacional em 2021, índice medido pelo IBGE. A votação de Bolsonaro chegou a 74,84% em Canarana (MT), contra 21,80% de Lula. Em 22 municípios, o candidato do Partido Liberal (PL) recebeu mais de dois terços dos votos. Dos dez primeiros, sete são do Mato Grosso (Sorriso, Sapezal, Campo Novo dos Parecis, Diamantino, Nova Ubiratã, Nova Mutum e Querência), dois, da Bahia (São Desidério e Formosa do Rio Preto) e um, de Goiás (Rio Verde)17.
Segundo José Carlos Hausknecht, sócio-diretor da consultoria MB Agro, o forte apoio do setor já era esperado, “principalmente dos produtores, o que envolve as famílias e influencia nas cidades também”. Ele explica que os produtores “se sentem perseguidos, ameaçados com invasões do MST e atacados como responsáveis pelo desmatamento, pelo latifúndio improdutivo e pelo uso de defensivos”, e ao mesmo tempo nutrem o reconhecimento de um setor “que dá sustentação à economia e contribui com a balança comercial”18.
Seria muito ingenuidade imaginar que juntamente com esse fluxo produtivo e comercial, sobretudo em tempos muito favoráveis do ponto de vista cambial, não emergiria uma classe política potente e influente, que foi sendo construída gradativamente desde que a expansão da fronteira agrícola chegou aos confins do Centro-Oeste e à franja meridional da Amazônia, a partir da década de 1970. Como bem explicou o antropólogo Caio Pompeu, o agro não é pop, é político, e a partir do processo desencadeado para estabelecer o golpe contra a presidente Dilma Rousseff, em 2016, “nucleações dominantes do campo do agronegócio alcançaram protagonismo na agenda do Estado brasileiro” e o PT era considerado pelos líderes do agronegócio “como seu principal inimigo político”19.
Para além da questão política, sabemos que o agro não tem nada de pop, pois se trata de uma atividade com várias contradições e conflitos agudos nos temas que envolvem as questões agrária (condições de vida do trabalhador do campo e concentração fundiária), agrícola (latifúndio improdutivo), ambiental (desmatamento e outras práticas predatórias), indígena (violência e desrespeito para com as populações ancestrais) e trabalhista (trabalho escravo). E, nessa pauta, um dos elementos mais sensíveis diz respeito à reforma agrária — conceito temido pelas classes dominantes desde meados dos anos 1950, quando do advento das Ligas Camponeses no Nordeste.
Muitos autores advogam a tese de que o anúncio das Reformas de Base durante o governo João Goulart (1961-64) – da qual a reforma agrária era um dos pilares — foi a gota d’água para a deflagração do golpe militar de 1964, em um contexto caracterizado pela Guerra Fria. Do ponto de vista estrutural, o poder no Brasil guarda íntima correlação com a propriedade da terra, e uma mudança radical implicaria na eliminação do latifúndio e da especulação fundiária (a terra como reserva de valor).
Mas a temática da reforma agrária, a meu ver, precisa estar mais relacionada à realidade brasileira do século XXI, e não da segunda metade do século anterior. O país foi submetido a um enorme processo de urbanização, acompanhado de alterações demográficas igualmente substanciais, e grande parte dos problemas sociais também se deslocou para as cidades – déficit habitacional, ausência de saneamento básico, serviços insuficientes de saúde e educação, precariedade do transporte público, desemprego, etc.
Entretanto, não se trata de uma bandeira ultrapassada, pois a própria Constituição Federal prevê a desapropriação de terras que não cumprem a sua função social para serem destinadas à reforma agrária. Mas fica aqui a reflexão: será que o instrumento da reforma agrária seria eficaz, no momento atual, para resolver os problemas estruturais brasileiros? Por isso a necessidade de repensar o modelo de reforma agrária para o Brasil de hoje, sem deixar de criticar o que deve ser criticado. Afinal, como disse Eduardo Galeano, “a soberania começa pela boca” e, para quem dispõe de um mínimo de humanismo, é um absurdo ter fome no país aclamado como o “celeiro do mundo”.
É possível superar o ódio e a barbárie?
Agora caiu a máscara. Sem metáforas. Sem cortes. Sem o mito da tão propalada “democracia racial”. Ficou explícita a aversão que as forças conservadoras e reacionárias replicam em torno da figura do negro, indígena, pardo, favelado e suburbano, tida como de segunda categoria que atravanca o progresso do país — e, mais ainda, breca o desejo latente da “europeização” da sociedade brasileira. Sempre foi assim, é verdade, mas, nos marcos civilizatórios do atual contexto do mundo, deveria ser algo inadmissível. Uma “ralé eternizada”, na visão do sociólogo Jessé Souza, colocada como o “nosso maior conflito social”20. Um processo gradativo, perverso e crescente de naturalização da desigualdade social no Brasil e de tentativa de criminalização de qualquer tipo de movimento e/ou organização social daqueles que estão na base inferior da sociedade brasileira.
E, convenhamos, o núcleo duro do bolsonarismo está cheio de gente que pensa assim. São contra o fato de que o Brasil é um país mestiço e muito diverso em todos os aspectos. São contra a ideia de que empregadas domésticas devem ter salário digno e direitos trabalhistas. São contra a ideia de que pobres devem ter acesso às universidades públicas pelo sistema de cotas. Nunca aceitaram e não aceitam a ideia de um nordestino, metalúrgico e sindicalista ter sido presidente da República em duas ocasiões – e agora pela terceira vez.
Obviamente que o Brasil é muito mais complexo e diverso do que esse panorama e muitos aspectos colocados ao longo do texto são de conhecimento das forças progressistas. Entretanto, alguns elementos merecem uma compreensão mais profunda, muitos não foram sequer mencionados (o crescimento da extrema direita em várias partes do mundo, por exemplo) e outros ainda não sabemos ao certo como lidar, seja no plano intelectual, seja no plano político. Apesar de tudo, o Bolsonaristão foi derrotado e a esquerda está viva.
Referências citadas:
1. RAMOS, Pedro. Maioria rejeita uso de armas, afirma pesquisa Genial/Quaest,in jornal O Estado de S. Paulo, Política/A9, 1º set. 2022.
2. Os dados, publicados pelo jornal O Estado de S. Paulo (Metrópole/A15, 06 out. 2022), são dos Serviços de Fiscalização de Produtos Controlados (SFPC).
3. CRUZ, Christian Carvalho. Mais uma para ficar na história, in jornal O Estado de S. Paulo, Aliás/J4, 12 fev. 2012.
4. D’ARAUJO, Maria Celina. Demissão anunciada, in jornal O Estado de S. Paulo, Aliás/J3, 07 ago. 2011.
5. GREENHALGH, Laura e MARSIGLIA, Ivan. Brios e vacilos nas fileiras, in jornal O Estado de S. Paulo, Aliás/J4, 14 fev. 2010.
6. SABÓIA, Napoleão. Estudiosa francesa analisa a fé dos brasileiros, in jornal O Estado de S. Paulo, Caderno2/D7, 08 jun. 2003.
7. KARNAL, Leandro. Rebanho não tão uniforme, in jornal O Estado de S. Paulo, Aliás/E3, 07 set. 2014.
8. WETERMAN, Daniel. Campeões de voto reforçam bancada evangélica no Congresso,in jornal O Estado de S. Paulo, Política/A21, 08 out. 2022.
9. GREENHALGH, Laura. Oceano processual, in jornal O Estado de S. Paulo, Aliás/J4, 15 maio 2011.
10. VALLE, Vinicius do. Violência política toma conta de igrejas, in jornal O Estado de S. Paulo, Política/A11, 20 out. 2022.
11. TAVARES, Flávia e MARSIGLIA, Ivan. Por trás da máscara, in jornal O Estado de S. Paulo, Aliás/J4, 19 out. 2008.
12. AMORIM, Daniela e NEDER, Vinicius. Renda do brasileiro tem queda recorde, in jornal O Estado de S. Paulo, Economia&Negócios/B1, 11 jun. 2022.
13. KARNAL, Leandro. Compro e vivo, in jornal O Estado de S. Paulo, Cultura&Comportamento/C12, 09 out. 2022.
14-16. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do discurso único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.49 e p.56.
17-18. DUARTE, Isadora. Bolsonaro domina votação em 77 dos 100 municípios mais ricos do agronegócio, in jornal O Estado de S. Paulo, Política/A10, 12 out. 2022.
19. POMPEIA, Caio. Formação política do agronegócio. São Paulo: Elefante, 2021, p.299.
20. SOUZA, Jessé. A ralé eternizada, in jornal O Estado de S. Paulo, Aliás/J4, 06 jul. 2008.
*Jornalista, geógrafo e professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).