Governo Bolsonaro continua a dificultar a imunização infantil, para Carla Domingues, ex-coordenadora do PNI. Lula prometeu grande campanha em 2023, mas é preciso ir além para garantir que pais voltem a levar seus filhos com regularidade aos postos de saúde
Carla Domingues em entrevista a Gabriel Brito, em Outra Saúde
Ainda restam 45 dias de governo Bolsonaro. É evidente que não há nada a esperar de quem transformou a maior crise sanitária da história do país em um experimento de morticínio de massa. Mas o combate à sua política precisa ir até o último minuto de 2022. Atualmente, o governo sabota a vacinação infantil contra covid reservando as doses apenas para crianças pequenas com comorbidades. “Quando se fala de comorbidade, é algo para quando não há vacina suficiente. Não é o caso de agora. Não se pode dizer que não há vacina em quantidade suficiente para ser necessário privilegiar um grupo específico. Não há justificativa”. É assim que Carla Domingues, ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunização, define a atual condução da vacinação para crianças de seis meses a quatro anos no país.
Como disse Carla ao Outra Saúde, a pandemia refluiu, mas é inadmissível que tenhamos algo em torno de 50 mortes diárias – grande maioria de pessoas com esquemas vacinais incompletos ou desatualizados – de uma doença prevenível. Entre as mortes, estão 1,4 mil crianças – e “parece que isso não é relevante”. Se o negacionismo não pegou na população adulta, foi muito danoso para as crianças, uma vez que a cobertura vacinal não chegou ainda a 20% neste público. Resultado brutal da má-fé de Bolsonaro e seu ministro Marcelo Queiroga.
A definição de que apenas crianças até 4 anos com comorbidades podem se vacinar contribui, também, com a desigualdade, explica Carla. “Muitas vezes a criança pode até ter uma comorbidade, mas o pai nem sabe disso. Teria de procurar um serviço de saúde para fazer uma avaliação na criança e conseguir uma prescrição médica, coisa que quase nunca acontece. Assim, o que temos na prática é um favorecimento da população mais privilegiada, que tem acesso a médicos particulares, convênio médico etc. A população mais pobre, normalmente, já tem muito mais dificuldade de acesso ao serviço de saúde. Pediatra está em extinção, quase não tem pediatras na rede pública”, afirmou Carla, expondo outro detalhe importante do desfinanciamento do SUS.
A epidemiologista elencou os grandes desafios que o futuro governo terá na área da saúde. Lula já anunciou sua intenção de iniciar 2023 com uma grande campanha de vacinação. Mas Carla explica que a retomada de uma cobertura vacinal satisfatória exige políticas mais complexas do que um esforço pontual de incentivo à vacinação. Hoje, as crianças devem tomar 15 vacinas, cada uma com duas ou três doses – o que significa que os pais devem levar os filhos ao posto de saúde nove vezes ao longo da infância de seus filhos.
“Uma campanha vai estimular primeiro a vacinação de quem está com o esquema atrasado. Mas se não se acompanhar a rotina de estimular a mãe a voltar a ir ao posto de vacinação de acordo com o calendário, não vamos conseguir.” Segundo Carla, medidas como estender o horário de abertura dos postos e abrir aos sábados são essenciais para atender à população. “Uma mãe da década de 1980 era uma dona de casa. Hoje a mãe está trabalhando, os dados do IBGE mostram que grande parte das mulheres hoje são arrimo de família. Quando ela está no mercado informal, é um dia que ela deixa de trabalhar, se for levar seu filho para vacinar. Se ela tem que ir nove vezes ao posto de saúde durante um ano e meio, significa nove vezes em que ela fica sem renda para chegar ao final do dia e ter alimento para dar a seu filho.”
Para conseguir fazer essas mudanças, deve-se aumentar o orçamento do setor – não apenas garantir a compra de imunizantes – e fazer o SUS ir até as pessoas, de acordo com as características socioeconômicas de cada região do Brasil. “Tem que voltar a ter a prevenção e não o cuidado, porque cuidado significa que já há doença, sequelas, internação, tratamento e óbito. Ou seja, o custo para o SUS é infinitamente maior quando voltamos a ter doenças evitáveis no país. Por isso a vacinação em massa precisa ser posta como ação prioritária, tem de ter garantia de vacina no posto de saúde, equipes em quantidade suficiente”, elucidou.
“Só o setor de saúde não vai dar conta. Precisamos da educação e do terceiro setor trabalhando junto na mobilização da sociedade”, termina.
Leia aqui a entrevista completa de Carla Domingues ao Outra Saúde.
Como avalia o atual momento da vacinação infantil de covid e o desempenho do ministério da Saúde neste sentido?
Não há nenhum estímulo à vacinação infantil por parte do ministério da Saúde e, principalmente, uma orientação da importância da vacinação nessa faixa etária. Nós tivemos 1,4 mil óbitos na faixa infantil e parece que isso não é relevante. Quando olhamos para o calendário de vacinação, para todas as vacinas que foram implantadas nos últimos anos, vemos que nunca se discutiu sua importância, menos ainda a inclusão de uma nova vacina no calendário.
É uma situação inadmissível e o ministério da Saúde dificulta a vacinação infantil de covid, de crianças de seis meses a dois anos de idade, ao recomendar a vacinação só para crianças que teriam comorbidades. Acontece que é muito difícil identificar comorbidades nessa faixa etária e quando acontecem são raríssimas. Todos os estudos até agora mostram que mais de 50% dos óbitos na faixa etária infantil não têm nenhuma indicação de comorbidade.
Estamos dificultando o acesso à vacinação com risco do adoecimento, complicações e óbitos em crianças. A vacinação infantil é primordial e necessária num momento como esse.
Portanto, uma medida que supostamente buscaria privilegiar crianças com comorbidades na verdade é só mais uma medida para sabotar a vacinação e promover de forma dissimulada o negacionismo científico?
Exatamente. Eu não tenho a menor dúvida disso. O ministério da Saúde continua negando a importância da vacinação infantil. Desde o início, começou com a população adulta, mas não teve receptividade. No entanto, o discurso negacionista está tendo efeito na vacinação infantil. O que a gente está vendo? Baixíssimas coberturas da população de 3 a 12 anos de idade, não chega a 20% de cobertura nesta faixa etária. É irrisório.
Quando falamos de critérios mais rígidos, como comorbidade por exemplo, é algo para quando não tem vacina suficiente, uma ideia de equidade, de dar mais para quem precisa mais, daí a justificativa de tais critérios. Não é o caso de agora. Nós não temos nenhum problema hoje, quase dois anos depois de a vacinação ter começado. Não se pode dizer que não há vacina em quantidade suficiente e seria necessário privilegiar um grupo específico. Não há justificativa.
Segundo, não há como fazer esse diagnóstico de forma clara. Muitas vezes a criança pode até ter uma comorbidade, mas o pai nem sabe disso. Teria de procurar um serviço de saúde para fazer uma avaliação na criança e conseguir uma prescrição médica, coisa que quase nunca acontece. Assim, o que temos na prática é um favorecimento da população mais privilegiada, que tem acesso a médicos particulares, convênio médico etc. A população mais pobre, normalmente, já tem muito mais dificuldade de acesso ao serviço de saúde. Pediatra está em extinção, quase não tem pediatras na rede pública.
Como vamos criar uma demanda se não temos como atender a população para fazer esse diagnóstico de comorbidade? O ministério da Saúde acabou de lançar uma nota sobre a questão explicando como eram os grupos de comorbidades. Mas eles simplesmente fizeram um copia e cola da comorbidade adulta para a infantil. Fala-se de obesidade mórbida em criança. Você já viu alguma criança com obesidade mórbida, com o IMC acima de 40 (Índice de Massa Corporal e seu respectivo número indicador de taxa que caracteriza obesidade)? Isso não existe.
Portanto, sim, a ideia é dificultar o acesso. Por exemplo, o ministério fala de cardiopatias. E coloca cardiopatias típicas de adultos na nota, sequer se deram o trabalho de caracterizar cardiopatias infantis. É claro que é uma política para retardar e dificultar a vacinação infantil, confundir a população e deixá-la hesitante em buscar a vacinação.
E, enquanto ainda temos quase dois meses deste governo, ressurge a ômicron em uma nova subvariante. Quais as consequências deste cenário podem ser projetadas para os próximos meses?
É difícil avaliar qual vai ser o cenário epidemiológico. Felizmente, nós temos a grande maioria da população vacinada e uma boa porcentagem, quase 60%, com pelo menos uma dose de reforço. Devemos ter covid, principalmente a grave, nas pessoas que não foram vacinadas ou estão com o esquema incompleto. Infelizmente, ainda há uma minoria assim. Mas não vamos mais viver aquela situação anterior à vacina. Devemos ter surtos localizados, exatamente na população que não está devidamente vacinada. A solução é estimular a população a se imunizar e completar o esquema vacinal. A magnitude vai mudar e não teremos aqueles 3 mil, 4 mil casos por dia, mas eu acho inadmissível termos 50, 100 casos por dia de uma doença prevenível por vacinação.
Precisamos de uma abordagem específica para lidar com os efeitos da covid, inclusive de longo prazo, na vida das crianças brasileiras?
Sim, sem dúvidas. Estamos vendo muitas pessoas que não tiveram casos graves e depois de três, quatro meses começam a ter sintomas do que se chama covid longa, necessitam ter acompanhamento e tratamento. Teremos realmente de olhar esse grupo e ver quais são suas necessidades, pensar uma ação específica dentro do campo da saúde. E não vemos nenhuma política dentro do ministério da Saúde para enfrentar a questão da covid longa. Vai ser um desafio para o próximo governo.
Falando no próximo governo, como recebeu o anúncio de Lula de iniciar 2023 com uma grande campanha de vacinação?
É um pontapé inicial, não pode ser o único. Uma campanha é um motivador para estimular a vacinação. Mas nós temos uma agenda inconclusa que deveremos retomar, que é restabelecer principalmente a rotina do serviço de saúde. Hoje, existem 15 vacinas no calendário infantil, cada vacina exige de duas a três doses. Assim, uma criança, para ter o esquema completo, precisa comparecer nove vezes ao serviço de saúde.
Portanto, uma campanha vai estimular a primeira vacinação de quem está com o esquema atrasado. Mas se não se acompanhar a rotina de estimular a mãe a voltar a ir ao posto de vacinação de acordo com o calendário, não vamos conseguir preencher essas nove visitas apenas fazendo campanha toda hora.
Como motivador e um estímulo para gente começar a falar da importância da vacinação a ideia é salutar, mas devemos efetivamente criar condições para que as mães voltem a levar o filho nos postos de saúde de acordo com o calendário. Sair da maternidade com as vacinas BCG e de hepatite B, depois se imunizar com dois meses de vida, quatro, seis, depois com 3 anos, 5, 9, 12, 15. Temos de cumprir todo esse calendário.
Numa campanha, consegue-se colocar em dia a primeira dose de quem está com o calendário atrasado. Mas tem de dar continuidade. Nós temos uma grande ação pela frente, que é voltar a fazer com que os pais voltem a comparecer aos postos de saúde dentro dos prazos adequados para receber cada dose recomendada no calendário.
Como produzir essa vacinação infantil de massa diante do orçamento de 2023 do Plano Nacional de Imunizações?
Não dá. Qualquer governo tem de escolher prioridades. A gente gostaria de fazer tudo mas não é possível fazer tudo. Na minha visão, imunização hoje é uma prioridade de Estado, não de governo. Se abrirmos mão de coberturas altas veremos surtos, com risco de voltar a ter doenças que já foram controladas ou eliminadas. Por exemplo, o sarampo: dois anos depois de ter sido certificado como área livre da circulação do sarampo, a baixa de coberturas vacinais fez o país voltar a ter surtos de de alta magnitude. Em 2019, houve mais de dez mil casos com oito óbitos na população infantil e o Brasil perdeu a certificação de área livre do sarampo.
Podemos voltar a ter pólio, surtos epidêmicos de coqueluche, doenças que podem voltar a encher enfermarias. Quando falamos de cuidar de outras doenças é porque não cuidamos mais de doenças preveníveis, e elas vão ser a primeira na agenda da assistência.
Tem que voltar a ter a prevenção e não o cuidado, porque cuidado significa que já há doença, sequelas, internação, tratamento e óbito. Ou seja, o custo para o SUS é infinitamente maior quando voltamos a ter doenças evitáveis no país. Por isso a vacinação em massa precisa ser posta como ação prioritária, tem de ter garantia de vacina no posto de saúde, equipes em quantidade suficiente. Precisamos de horários de funcionamento adequados. Hoje, tem posto de saúde que funciona das 8 às 11, fecha na hora do almoço, depois funciona até as 16 horas, há ocasiões em que não se abre o frasco de vacina para não desperdiçar o imunizante… Aos finais de semana não se abre posto no horário mais estendido, em locais de difícil acesso é você que tem de levar a vacinação à população e não ficar esperando passivamente, deve-se ter postos itinerantes… É assim que se repensa um programa de vacinação, como ele foi concebido na década de 1980: criando estratégias para que se coloque a ação de imunização como prioridade do ministério da Saúde. Se ficarmos passivamente só comprando vacina e distribuindo, vamos continuar com baixas coberturas na população.
O SUS precisa retomar o protagonismo de trabalhar e convencer a população e, principalmente, dar condições e facilidades para que essa população seja vacinada. Uma mãe da década de 1980 era uma dona de casa. Hoje a mãe está trabalhando, os dados do IBGE mostram que grande parte das mulheres hoje são arrimo de família. Quando ela está no mercado informal, é um dia que ela deixa de trabalhar, se for levar seu filho para vacinar. Se ela tem que ir nove vezes ao posto de saúde durante um ano e meio, significa nove vezes em que ela fica sem renda para chegar ao final do dia e ter alimento para dar a seu filho.
Precisamos entender essa nova conformação da sociedade e dar condições de facilitar o acesso. Eu sempre digo que vacina é diferente de vacinação. Não adianta o ministério da Saúde comprar a vacina e mandar chegar lá no posto de saúde em 48 horas. Se não tiver toda essa ação funcionando, a vacina vai ser desperdiçada e pode ser descartada sem chegar no braço do cidadão.
Acredita na necessidade de se praticar restrições, como a aceitação de matrícula em escolas, condicionadas à vacinação de crianças?
Eu não sou a favor de atrelar à matrícula, porque nós estamos falando de exclusão, de deixar a criança fora da escola. Mas exigir a caderneta de vacinação no momento da matrícula é fundamental. As vacinas começam nos primeiros meses, na idade de ir à creche, e não há creche para todas as crianças no país. A educação infantil só é obrigatória a partir dos quatro anos. Até lá a criança já tem de ter tomado várias vacinas. Exigir a caderneta para crianças a partir de cinco anos vai facilitar a recuperação da pessoa que está atrasada, mas não é a maior condição de atualização da caderneta de vacinação.
Temos de criar condições para que se complete o calendário vacinal até o segundo ano de vida, pois infelizmente muitas crianças estão fora da escola, não tem creche suficiente para todas as crianças do Brasil. Exigir a caderneta na matrícula escolar é uma ação que pode apoiar, mas não é a principal.
Com um adolescente é diferente, pois 100% deles devem estar na escola. É inadmissível que não se acompanhe a caderneta de vacinação de um adolescente. Ele é resistente à vacinação, é diferente da criança, que o pai bota no colo e leva. O jovem tem de ser convencido, portanto, devemos criar condições, discutir a importância da prevenção na escola, o risco que eles têm se não se vacinarem, porque a escola é o grande propulsor de surtos.
Temos de evitar que isso aconteça, garantir que crianças na creche, na idade da primeira infância e depois na adolescência, tenham a garantia de chegar na escola com a sua vacinação atualizada. É exigir, mas não impedir o acesso. E quando às crianças com calendário incompleto, deve-se estimular o pai a ir ao posto de saúde. Num caso extremo, pode-se chamar o Conselho Tutelar. O ECA já coloca que o pai pode ser penalizado se não vacinar o seu filho. Já temos mecanismos legais que exigem a vacinação infantil.
Mas reforço: mais do que a obrigatoriedade, o que faz um pai levar a criança a se imunizar é o convencimento, entender a importância da vacinação. Assim, ele responde ao chamado do ministério da Saúde.
Objetivamente, será possível realizar toda essa ação sem um aumento do orçamento do SUS em 2023, descartando a versão enviada por Bolsonaro?
Não tenho dúvida, não é possível a Saúde ser prioridade sem recurso financeiro. Hoje, o Programa Nacional de Imunizações tem recursos financeiros que a gente chama de ação obrigatória, não pode ter contingenciamento para compra de vacina. Mas para todas as atividades que englobam o PNI, como estratégias de comunicação, que são fundamentais, há mais custos, que são elevados.
E deve-se fazer campanha o ano inteiro, não é só durante o dia ou nas vésperas de uma campanha. Como aconteceu na década de 1980, quando tínhamos o Zé Gotinha maciçamente na televisão. Tinha o Sujismundo, que além de falar da limpeza da cidade, falava de vacinação, tinha participação de terceiro setor, Rotary, Pastoral da Criança…
De novo, só o setor de saúde sozinho não vai dar conta. Precisamos da educação e do terceiro setor trabalhando junto na mobilização da sociedade.