Demarcar a terra e a tela: exposição no IMS destaca produção audiovisual indígena

Intercalando obras contemporâneas e fotografias históricas, mostra questiona a produção da imagem do Xingu por olhares brancos e dá protagonismo a narrativas indígenas

por Carolina Azevedo*, Le Monde Diplomatique Brasil

A exposição “Xingu: Contatos”, em cartaz até abril de 2023 no Instituto Moreira Salles Paulista, coloca lado a lado imagens históricas dos povos do Xingu, feitas por fotógrafos brancos, e a produção indígena contemporânea, em busca de novas narrativas em torno do território e dos diferentes povos que o habitam. Com curadoria do cineasta Takumã Kuikuro e do jornalista Guilherme Freitas, a mostra reúne cerca de 200 itens em duas galerias do Instituto, com destaque para os projetos audiovisuais produzidos por diferentes artistas de 13 das 16 etnias do Xingu.

Concentradas no primeiro andar da exposição, as peças audiovisuais comissionadas abrem a mostra. A inversão da ordem cronológica foi uma escolha da curadoria, que destaca a importância das imagens de acervo, mas prefere interrogá-las, intercalando fotografias antigas com a nova produção artística do Xingu, como conta Guilherme:  “As imagens antigas têm uma importância para o público entender a história, em muitos casos são imagens simbolicamente violentas, mas o público vê essas imagens antigas e entende melhor a importância do trabalho de artistas indígenas, o que muda quando o registro passa a ser feito por quem é do território. Essa história, durante quase um século, foi contada por homens brancos. Não mostrar isso é apagar parte dessa história”.

O audiovisual indígena

Os seis curta-metragens documentais que compõem a primeira parte da mostra unem as diferentes culturas e línguas do Xingu para tratar de assuntos variados, de histórias pessoais à luta por direitos e pela preservação. Os organizadores apostaram na sinfonia cacofônica das diferentes telas lado a lado, ao invés de salas fechadas para a exibição, como forma de representação dessa diversidade de falas e objetos.

Em um dos filmes, “Kamukuwaká: A História Sagrada do Povo Alto Xinguano”, o cineasta Piratá Waurá apresenta a gruta de Kamukuwaká, que é considerada sagrada por seu povo e ficou de fora do território demarcado. Os entrevistados no documentário denunciam as ações de desmatamento e vandalismo que acontecem no local, cujas pinturas rupestres vêm sendo depredadas desde 2018. O curta já está sendo usado pelo povo para movimentar o reconhecimento desse território, afirmando o valor político concreto que a mostra carrega.

Os curtas também evidenciam a importância do cinema para os povos indígenas em seu próprio conteúdo, como é o caso de “Kamatxi cineasta”, em que a realizadora Kamatxi Ikpeng mostra a importância das ferramentas audiovisuais para as lutas dos Ikpeng. Também em “A câmera é a flecha”, Takumã Kuikuro apresenta a atuação do Coletivo Kuikuro de Cinema, que há duas décadas atua nas aldeias de todo o Xingu e em festivais ao redor do mundo.

Contatos: entre o arquivo e o novo

Já na segunda galeria, acompanha-se a história da luta em defesa do Parque, criado em 1961, e os contatos entre brancos e indígenas, através de fotografias e reportagens que ganharam destaque em publicações como a revista O Cruzeiro, que enviou fotógrafos como José Medeiros e Henri Ballot para documentar a Expedição Roncador-Xingu, nas décadas de 1940 e 1950. A exposição interroga essas foto-reportagens, que muitas vezes alimentavam o discurso de que a região central do país era um vazio demográfico que precisava ser conquistado pela “civilização brasileira”.

Ao lado de fotografias feitas por Kamikia Kisedje e por comunicadores da Rede Xingu +, que mostram o cotidiano das aldeias e a presença dos povos xinguanos em atos políticos, imagens de arquivo são ressignificadas, destacando a violência do contato entre brancos e indígenas e devolvendo o protagonismo dos criadores indígenas, como conta Takumã: “O audiovisual é uma ferramenta de luta que carrega a força dos povos indígenas, a nossa história e a nossa realidade. Isso faz de nós os protagonistas de nossa própria história, estamos nos tornando donos da nossa imagem. Ocupando esse espaço no audiovisual, demarcando a terra e demarcando a tela, ocupando o congresso nacional e os festivais nacionais e internacionais com nossa obra audiovisual.”

Identificação e ressignificação 

Outro núcleo de atuação importante da curadoria é o da identificação: ao explorar a segunda galeria, chama a atenção que cada imagem de arquivo carrega duas legendas. Durante os dois anos de pesquisa para a concepção da mostra, os curadores tiveram como grande obstáculo a identificação precária de imagens do acervo do IMS, cujas legendas raramente revelavam quem eram as pessoas retratadas, de que povo ou região vieram e em que situação se encontravam.

Guilherme conta sobre o processo:  “Fizemos todo um trabalho de identificação dessas imagens para poder expor dignamente, todas as fotos passaram por esse processo, feito em parceria com as associações de cada um dos 13 povos que aparecem na exposição. Mandamos as fotos e eles nos ajudaram a reconhecer, dar nome para essas pessoas”.

O processo de revisitar e atribuir nome aos fotografados tem um papel importante na construção de uma história apagada pela colonização, dando a devida importância a lideranças indígenas cujas histórias deveriam ser ensinadas nas escolas. No último núcleo da exposição, uma parede intercala fotografias de antigas lideranças indígenas, como o Cacique Raoni Metyktire, cuja atuação foi fundamental em momentos históricos como a Constituinte de 1988, com novas lideranças, em sua maioria, mulheres.

Mulheres indígenas e novas formas liderança

A escassez de figuras femininas dentre as imagens de acervo pode chamar atenção, mas a escolha tem a ver com a forma como elas foram mais frequentemente representadas pelo olhar do homem branco. Com a consultoria de Watatakalu Yawalapiti, uma das lideranças do movimento de mulheres do Xingu, os curadores optaram por deixar de fora fotografias marcadas pelo olhar erotizado através do qual era representada a mulher indígena. Daí também surgiu a ideia de incluir imagens de lideranças mulheres dos dias de hoje.

Em um momento político marcado pela ascensão de mulheres indígenas em lugares de poder – como é o caso de Sônia Guajajara e Célia Xakriabá, eleitas neste ano como deputadas federais por São Paulo e Minas Gerais, respectivamente – Takumã, que assina o documentário “As Hiper Mulheres”, de 2011, destaca: “Vivemos uma transição política muito forte. Nós indígenas estávamos no buraco, trouxemos essa exposição para que pudéssemos levantar a poeira, sobretudo com a força das mulheres na liderança, que estão lutando, ocupando esse espaço e trazendo protagonismo para os povos indígenas.”

A mostra fecha olhando para o futuro, direcionando o olhar para o novo governo, que se compromete a criar o Ministério dos Povos Indígenas, e para a força que a câmera carrega nas mãos desses povos. “Antes, lutavamos com o arco e flecha. Hoje, com o audiovisual. Todo invasor é registrado, tudo o que acontece vai para as redes sociais. O audiovisual é a flecha que leva as coisas para longe, uma ferramenta de luta de dentro da comunidade, pois só alguém que vive no território tem essa visão, a luta dos povos indígenas do nosso ponto de vista.”

Xingu: contatos

5 de novembro de 2022 a 9 de abril de 2023

IMS Paulista (Avenida Paulista, 2424)

Horário de funcionamento: Terça a domingo e feriados, das 10h às 20h

Entrada gratuita

*Carolina Azevedo faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.

Imagem: Kainahu Kuikuro, integrante do Coletivo Kuikuro de Cinema, no ritual do Kuarup na aldeia Afukuri, julho de 2021 (Foto: Takumã Kuikuro)

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