Depois do “Marx”, Jean Tible lança agora “Política Selvagem”

Em 2021. Jean Tible nos ofereceu o relançamento de Marx Selvagem, versão de sua tese de doutorado junto à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Desta virada de ano, temos agora Política Selvagem, a partir de sua tese de livre-docência junto ao Departamento de Ciência Política da USP e, segundo ele, um desdobramento do “Marx” relançado há menos de dois anos. Com ele, Jean Tible nos convida a “pensar a política com as lutas das coletividades dissidentes e suas incessantes revoltas atravessando tempos-espaços-mundos”.

Política Selvagem terá seu lançamento no Rio de Janeiro na livraria Folha Seca, em 3 de março de 2023. E, para dar uma pequena dica do que nos espera, segue abaixo o comentário de Peter Pál Pelbart a respeito da obra. (TP)

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“Esta é minha frase predileta do livro que hoje lançamos. “Imaginemos um Marx na floresta tomando yãkoãna, conectando-se aos conhecimentos ancestrais de cura e conhecimento. Nelson Rodrigues, numa de suas sarcásticas tiradas, provoca: ‘o brasileiro, inclusive o nosso ateu, é um homem de fé’. Conheço vários marxistas que são, ao mesmo tempo, macumbeiros. E um povo que pode conciliar Marx e Exu está salvo e, repito, automaticamente salvo”, escreve Jean Tible.

É sob o signo dessa irreverência teórica que Política selvagem nos arrasta para dentro do tsunami contemporâneo. Nada aqui é calmo, tudo é agitado, intenso, alegre, saltitante – insurreições mil, revoltas, levantes, motins, rupturas, reviravoltas.. Afinal, o planeta inteiro está em busca de novas formas de lutar pelas mutações que esse tempo pede. As velhas
fórmulas já não servem. E pipocam por todo lado experiências muitíssimo diversas. O que então liga essas experiências, pergunta o autor? “Tudo é posto em xeque e nada mais funciona como habitualmente. Daí uma tomada em mãos e retomada dos gestos simples e decisivos da vida coletiva não subordinada, sua transformação e auto-organização por pessoas comuns”.  Não sei se há aqui uma proposta, ou antes a cartografia suculenta, onde cada qual poderá encontrar sua afinidade predileta. Negri, Fanon, Butler, Zé Celso, Célia Tupinambá, Kopenawa, Tiqqun… aqui tem de tudo. Mas não qualquer coisa. Nesse cardápio só entram aquelas experimentações que soltaram uma faísca no ar, que liberaram uma energia, um fogo, um alento.

Mas o pano de fundo, embora amplo, é de grande clareza e precisão. Vem de Espinosa e vai até Negri e Deleuze, passando pelo operaismo italiano. Resumo da ópera: a potência vem primeiro, o poder vem depois. A potência é criação inesgotável– o poder é organização do medo, superstição. Daí a consequência principal. Primazia ontológica e pragmática da luta, da resistência. Mais do que ficar olhando para o Estado, ou se sentir medusado pelo Capital, ou paralisado pelo tigre de papel, como diria Mao, cabe priorizar a potência da multidão e sua criatividade. Entre o poder e a potência, o jogo é aberto, reversível, tão incerto e tenso quanto numa partida de futebol o é o domínio da bola. Em suma – enquanto a potência é vital e sanguínea, o poder é roubo, vampirismo, morte.

Mas como pensar assim ao rastrear as lutas de hoje? Que me baste puxar uma das linhas que cruza este livro. Nos anos de devastação pandêmica, de ecocídio necropolítico, o inconsciente político brasileiro deu a ver cada vez mais um filão de há muito recalcado. É o cruzamento insólito entre o pensamento afrodiaspórico e o indígena. É daí que nos vem a percepção aguda de que o que está em jogo hoje não é apenas um regime político, ou uma opção ideológica, mas um modo de vida. Que vida desejamos nesta terra? A que mundo aspiramos? Que relação queremos com o corpo da Terra, com o espírito do coletivo, com o sonho, com o desejo, com os afetos comunitários, com o cosmos, com o tempo? É de acúmulo e predação infinitos, ou de suficiência intensiva? Uma fronteira de chumbo vai ficando cada vez mais visível entre um certo Norte branco, masculino, antropocêntrico, eurocêntrico, racionalista, por um lado, e um Sul perspectivista, antropofágico, espectrofágico, espiritual, seja ameríndio ou afrodiaspórico.

Mas não nos enganemos: o Ocidente não necessariamente se situa no Ocidente: não é uma região, é um projeto que açambarcou o planeta. É, portanto, uma luta muito assimétrica na qual estamos todxs metidos. É David contra Golias. Kopenawa contra a Queda do Céu. E ainda
assim o primeiro turno eleitoral no Brasil mostrou um aumento expressivo de representantes negros, indígenas, LGBTIAQ+ e mulheres, apesar do aumento simultâneo de deputados policiais e pastores evangélicos. Em qualquer caso, é um sinal de que algo está se movendo, apesar de tudo.

Uma mudança nas placas tectônicas, partindo de conhecimentos menores, práticas minoritárias, subjetividades que se dizem dissidentes ou ancestrais, provenientes da floresta ou dos quilombos, das favelas ou dos sem teto, das mulheres ou dos desertores, e das formas de vida e de cuidado com a vida que lhes correspondem. Isto atravessa os circuitos acadêmicos, artísticos, ativistas, políticos, rituais – vai-se formando uma sensibilidade outra. Embora a macropolítica tenha se tornado mais sinistra nos últimos anos, os experimentos nesta direção se multiplicaram, minúsculos e maiúsculos. Eu me pergunto se a associação entre os movimentos quilombolas, indígenas, feministas, dissidências de gênero, ocupações, favelados, e tantos outros que o arrastão de Jean Tible nos dá a ver não estaria em vias de inventar um neozapatismo tupiniquim.

Um sopro cosmopolítico tem atravessado nossas mentes e corpos. Novos seres-terra têm aparecido, diz Marisol de la Cadena. Novas confluências estão surgindo, diz Nego Bispo. Para quem acha que não tem nada de novo debaixo do sol, pelo visto sim, tem. Obrigado, Jean.

 

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