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Às vésperas da folia do Momo, enquanto blocos e escolas de samba iniciam seus ensaios, já há quem debata sobre o uso indevido de símbolos culturais no Carnaval. O tema da apropriação cultural, geralmente, vem à tona nesta época do ano. Mas não se resume apenas na questão de usar ou não um cocar como fantasia. Vale aproveitarmos este momento para refletir como ele é um dos muitos elementos que fazem parte dos conflitos socioambientais e é um dos muitos obstáculos a um desenvolvimento com justiça ambiental e climática. O assunto é complexo e não é somente cultural, também é político.
Desenvolvimento é considerado cultura, de acordo com o antropólogo Kabengele Munanga. Pois as sociedades humanas transformam a natureza, produzem riquezas, inventam ciências e tecnologias que ajudam na transformação da vida e na melhoria de saúde, alimentação, transporte, comunicação e instituições. Tanto as diversas etnias indígenas que já viviam no Brasil, quanto as dos africanos tinham técnicas e conhecimentos distintos que os colonizadores não possuíam.
O antropólogo e babalorixá Rodney William explica que apropriação cultural (em livro homônimo) ocorre quando um elemento é próprio de uma cultura e dela foi retirado sem o devido “crédito”, “autorização” ou “retribuição” à cultura de origem. Ocorre em um contexto de dominação, dentro de uma estrutura colonialista e racista, quando o componente usurpado é uma ferramenta de resistência de um grupo historicamente subalternizado.
“A vinda dos negros escravizados para o Brasil não se deu pela força (física) deles, mas pela expertise na agropecuária e na mineração. Eram atividades econômicas já desenvolvidas por eles [na África] e com tecnologias de detecção e extração de ouro. As técnicas de plantio também”, explica a economista Rita Maria da Silva Passos, em entrevista ao ClimaInfo, na qual falou sobre racismo ambiental.
Africanos escravizados na Alta Guiné (onde hoje estão o Senegal, a Mauritânia e a Gâmbia) eram criadores de gado, e suas técnicas eram usadas no interior do Brasil. Um pouco mais ao Sul africano – onde hoje estão Guiné-Bissau, República da Guiné, Serra Leoa e Costa do Marfim –, o povo que lá vivia tinha o conhecimento do cultivo de arroz.
Os escravizados do Congo desenvolveram avanços nas técnicas de metalurgia e eram responsáveis pela criação das forjas e das fábricas rudimentares de ferro no interior do Brasil. Em outras regiões, havia mergulhadores especializados na coleta de pérolas marinhas, conforme o jornalista Laurentino Gomes, em seu livro Escravidão, volume II.
A busca de ouro pelos portugueses no Brasil tornou-se sistemática a partir de 1671. Quem tinha a tecnologia da época para achar ouro? Entre os exploradores de ouro e diamantes de Minas Gerais estavam os africanos da Costa da Mina (faixa litorânea hoje situada entre Nigéria e Gana). Os “senhores de escravos” os chamavam de bons “farejadores” de minerais preciosos e diziam que os escravizados davam “boa sorte” para encontrar as jazidas. O uso de palavras como “farejar”, que animalizam povos não-brancos, é um capítulo à parte, que vale ser debatido em breve. Aqui, focamos no uso da palavra “sorte”, que não tinha nada a ver com o acaso, mas, sim, com o fato de que os africanos escravizados eram detentores de tecnologia para isso.
Porém, não é preciso voltar ao tempo. A prática de apropriação cultural perdura na atualidade. “O baixo índice de representatividade contrasta com a crescente apropriação, muitas vezes perpetrada por indústrias que utilizam as técnicas ou a estética desses grupos, mas não repassam nenhum tipo de incentivo nem oferecem oportunidades de trabalho”, explica Rodney William.
Conscientemente ou não, quem se apropria ainda utiliza a lógica da escravidão e do colonialismo, ao dar a escusa que é “patrimônio de todos” ou que essas pessoas “precisam de sua tutela”. A lista é vasta de exemplos: vão desde exploração de trabalhos manuais de artesanato ao comprá-los a preços irrisórios e vender roupas a preço de ouro; registro de alimentos ou de alguma técnica de preparo de algum prato que faz parte da cultura de um povo ou região; utilização, por pesquisadores acadêmicos, de conhecimentos de determinados povos e/ou pessoas sem dar o devido crédito ou retorno a eles; aproveitamento, por parte de indústrias, de tecnologias desenvolvidas a partir de saberes ancestrais para lucrar, sem trazer retorno financeiro a quem disponibilizou esse know-how.
Para buscar mecanismos que tragam uma real justiça ambiental e climática às populações minorizadas, e reparar o dano ambiental que muitos povos não-brancos sofrem, é preciso compreender o racismo ambiental também pela ótica da apropriação cultural.
Como explicou Rita Maria, os grandes conflitos socioambientais têm a ver com o nosso processo de desenvolvimento econômico, que é marcado pelas mesmas atividades econômicas do período colonial: a agricultura, hoje representada pelo agronegócio, e a mineração. É preciso reivindicar as devidas autorias desses elementos culturais (de desenvolvimento, de forma geral), dar o devido crédito e a remuneração adequada.
(*) Tatiane Matheus é jornalista e pesquisadora em Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão no Instituto ClimaInfo
Edição: Daniela Vianna
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Ilustração: Mihai Cauli / Terapia Política