A conjuntura Pan-Amazônica na Assembleia do Cimi Regional Norte 1: um olhar de esperança

A mesa de debates composta pelos bispos da Amazônia trouxe a esperança e a força para a continuidade da luta por uma Terra sem Males e por dignidade e paz para os povos indígenas

Por Gabriel Villardi (SJ), da Pastoral Indigenista de Roraima, em CIMI

Há pouco mais de cinquenta anos nascia o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) com o fim de ser presença no meio indígena e partilhar com profecia a luta desses povos tão explorados e massacrados nos últimos séculos. Foi nesse espírito de memória e mística que os missionários e as missionárias do Cimi Regional Norte 1 se reuniram para realizar, repletos de resistência e esperança, a sua Assembleia nos dias 11 a 13 de fevereiro, no Centro de Formação Xare, em Manaus.

Após o término de um terrível e desolador ciclo político em que a antipolítica indigenista causou profundos danos aos povos indígenas, um novo período se inicia e com ele seus desafios e perspectivas. A representatividade indígena nas mais altas esferas do governo federal nunca foi tão expressiva. Os postos-chave em um inédito Ministério dos Povos Indígenas, além da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) estão sob a coordenação direta de reconhecidas lideranças do movimento indígena, como Sônia Guajajara (MA), Joenia Wapichana (RR) e Weibe Tapeba (CE).

 Nasce o Cimi com o fim de ser presença no meio indígena e partilhar com profecia a luta desses povos tão explorados e massacrados nos últimos séculos

Nesse cenário, a Igreja desempenha um papel fundamental como aliada dos povos indígenas, como assim vem se posicionando nas últimas décadas e mais recentemente no Encontro de Santarém, em 2022, em que se comprometeu a “continuar assumindo ‘a opção preferencial pelos povos indígenas, com suas culturas, identidades e histórias’ (DFSA, n. 27) e apoiando o trabalho do Cimi e das organizações indígenas da sociedade civil” (Santarém, n. 57).

Sensíveis e aliados da causa indígena, fizeram-se presentes alguns bispos do Regional Norte 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Convidados para realizar uma análise da conjuntura eclesial Pan-Amazônica, os pastores presentes ofereceram valiosas contribuições. O cardeal da Amazônia, Dom Leonardo Steiner, apresentou a fundamentação da perspectiva adotada pelos bispos a partir do magistério do Papa Francisco.

A Igreja desempenha um papel fundamental como aliada dos povos indígenas

Primeiro, ele indicou a bula publicada na ocasião do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, chamada de Misericordie Vultus, o rosto da misericórdia. Também asseverou que a harmonia de uma sociedade depende de como a ética perpassa as múltiplas relações, inclusive a política, e como isso foi relativizado nos últimos tempos. Por sua vez, a característica fundamental da Igreja, constituída pelos batizados e batizadas, homens e mulheres que seguem Jesus, é a misericórdia, tão bem descrita no capítulo 25 do Evangelho de Mateus.

Para além da quantidade de missas e terços rezados, a essência do modo de ser Igreja e do seguimento de Jesus é a misericórdia. Trata-se de uma Igreja que sai ao encontro, “se deixa tocar pelas chagas humanas” e “está sempre aberta”, pontua o arcebispo de Manaus. Um modo de proceder que vai além da mera assistência social e que o Papa Francisco, no texto “Querida Amazônia”, afirma que o modo de ser da misericórdia tem uma hermenêutica própria de toda a realidade e não deixa nada de fora, seja da cultura, seja do social, seja ela ambiental, seja ela eclesial. Essa chave de leitura “ajuda a compreender melhor a identidade do próprio Cimi”, com seus mais de cinquenta anos de caminhada.

A essência do modo de ser Igreja e do seguimento de Jesus é a misericórdia

Outro texto fundamental apontado pelo bispo franciscano é a carta encíclica Laudato Si que “deu à Igreja a possibilidade de perceber que a obra criada faz parte do existir”, da Casa Comum onde todos habitam. Um documento que, segundo Dom Leonardo, permite àqueles que trabalham com os povos originários compreender melhor a razão do serviço prestado e do ser missionário.

Sem perder a lúcida profecia, o bispo denunciou ainda que “o agronegócio tem infestado as nossas terras de agrotóxico e a terra se tornou cinza”. Como não reconhecer nas palavras do cardeal a angustiante realidade amazônica com o avanço impiedoso da fronteira agrícola, os inescrupulosos megaprojetos governamentais de infraestrutura e os garimpos ilegais em terras indígenas encharcados em sangue e mercúrio? É exatamente esse o cenário perturbador com o qual se deparam os missionários e as missionárias indigenistas da região.

Como não reconhecer  a angustiante realidade amazônica com o avanço impiedoso da fronteira agrícola, os inescrupulosos megaprojetos governamentais de infraestrutura e os garimpos ilegais em terras indígenas encharcados em sangue e mercúrio?

O terceiro documento citado pelo ex-secretário-geral da CNBB foi a carta encíclica Fratelli Tutti e a necessidade de resgatar a fraternidade universal entre a humanidade. Enquanto a luta pela liberdade e pela igualdade ocupou o espaço central nos últimos séculos, esqueceu-se a importância da fraternidade. Uma “fraternidade que no Evangelho ultrapassa qualquer medida nossa”, visto que não é autorreferencial. Esse “modo de ser Igreja na Amazônia” foi confirmado pelo “encontro de Santarém”, apostando numa “Igreja mais dialogal”, “profundamente missionária” e laical.

Dom Leonardo não teve receio de reconhecer que se trata de uma Igreja em disputa e em tensão, que muitas vezes possui uma face “violenta”, “agressiva” e propagadora “das notícias falsas”. Lembrou que nem o Papa Francisco escapa desses ataques, mas mesmo assim não tem deixado de denunciar “esse modo ideológico que mata a experiência da fé”. Todavia, essa mesma Igreja que não teme o conflito, “tem consciência da democracia, tem consciência dos povos originários, tem consciência do meio ambiente”.

A Igreja “tem consciência da democracia, tem consciência dos povos originários, tem consciência do meio ambiente”

Por fim, fez memória de sua visita a Roraima, como enviado do Papa, para apresentar sua solidariedade ao povo Yanomami. Dom Leonardo lembrou que os povos indígenas possuem “uma religiosidade muito profunda” e que ficou chocado com o relato de uma liderança indígena dizendo estarem “tão fragilizados fisicamente, que psicologicamente estão perdendo a força maior que tem”: sua espiritualidade. Quando se perde “essa força maior, nós como humanidade” desaparecemos, arrematou o escolhido para suceder Dom Pedro Casaldáliga na Prelazia de São Félix do Xingu.

Dom Edson Damian, presidente do Regional Norte 1 da CNBB, comunicou a proposta dos bispos para que a 60ª Assembleia Geral transforme a Comissão Especial para a Ecologia Integral e Mineração em Comissão Episcopal Pastoral para a Ecologia Integral, a Mineração e os Povos Originários, somando-se às demais doze comissões permanentes da entidade. Seria um grande avanço constituir uma comissão própria para tratar dos irmãos indígenas. Afinal, em muitos locais a Igreja é a única aliada dos indígenas, mantendo seu viés crítico a qualquer forma de mineração destrutiva do meio ambiente e que coloque em risco a vida dos povos que habitam essas regiões.

Dom Leonardo lembrou que os povos indígenas possuem “uma religiosidade muito profunda”

O presidente da Comissão Pastoral da Terra, Dom José Ionilton de Oliveira, trouxe a exortação apostólica pós-sinodal “Querida Amazônia”, que completou três anos no dia 12 de fevereiro passado. Ele ressaltou o ineditismo do Papa Francisco em indicar que o documento final do Sínodo deve ser lido em conjunto com a sua exortação, chancelando assim as decisões aprovadas pelos padres sinodais. Recordou ainda os quatro sonhos apresentados na exortação: o social, o cultural, o ecológico e o eclesial.

O bispo da Prelazia de Itacoatiara mencionou que no sonho social o “Papa vai dizer que tudo aquilo que destrói a Amazônia deve ser chamado com o nome correto, que é injustiça e crime”. Assumir o “compromisso com a construção de uma sociedade melhor” implica não deixar “anestesiar as consciências”, asseverou. Já no sonho cultural está o apelo para que se “respeitem todas as culturas”, principalmente, “as culturas dos povos indígenas”.

“O Papa vai dizer que tudo aquilo que destrói a Amazônia deve ser chamado com o nome correto, que é injustiça e crime”

No sonho ecológico, o prelado ressaltou a necessidade de um “compromisso com a ecologia integral e com a proteção da Amazônia”. Enquanto que o sonho eclesial defende um “rosto amazônico da Igreja” e o “protagonismo leigo”. Acrescentou que não se deve esquecer que “através do Cimi, a Igreja se faz presente” em muitas realidades e ainda que se possa buscar o apoio de outras instâncias eclesiais, o importante é “sentir-se Igreja”.

A “primavera da igreja na Amazônia, com esse olhar comprometido do Papa Francisco” foi destacada pelo bispo de Tefé, Dom José Altevir da Silva. Dentre outros pontos elencados como sinais dessa vitalidade estão a sinodalidade, a inculturação, a evangelização libertadora e o Documento de Santarém. O administrador diocesano de Roraima, adre Lúcio Nicoletto, também tomou a palavra e provocou sobre necessidade de se pensar uma Igreja que deve “se encarnar dentro de uma realidade em contínua mudança”, pensando a sua “presença dentro de uma realidade que pede mais escuta do que soluções”.

O sonho eclesial defende um “rosto amazônico da Igreja” e o “protagonismo leigo”

Para encerrar a mesa, Dom Leonardo retomou sua contribuição para aprofundar a novidade que representou a criação da Conferência Eclesial Amazônica (Ceama), não somente como instância episcopal, mas eclesial, como desejou expressamente o Papa Francisco. Na presidência do organismo, há entre outros um representante indígena. Acrescentou, por fim, que em seu âmbito ocorrem duas relevantes discussões, a do “rito amazônico” e a da “presença da mulher na Igreja”.

Nesse sentido, vale citar o nº 48 do Documento de Santarém (2022), que pede o reconhecimento dos “serviços e a real diaconia do grande número de mulheres que hoje dirigem comunidades na Amazônia” para “consolidá-los com um ministério adequado de mulheres dirigentes de comunidades”, bem como “a legitimidade da ordenação diaconal de mulheres”, solicitando “este ministério para a Igreja da Amazônia”. Esse protagonismo feminino que menciona o cardeal pode ser constatado na grande quantidade de missionárias, leigas e religiosas, comprometidas com a luta dos povos indígenas. Inclusive, atualmente, dos três membros da coordenação colegiada do Cimi Regional Norte 1, dois são missionárias leigas.

O Documento de Santarém pede o reconhecimento dos “serviços e a real diaconia do grande número de mulheres que hoje dirigem comunidades na Amazônia”

Em rebelde fidelidade à Pedro Casaldáliga, bispo de todos os missionários indigenistas, e em comunhão com os bispos da Amazônia, bendigam-se os novos tempos que se anunciam:

“Pai-Mãe da Terra e da Vida,

Deus Tupã de nossos pais e mais,

Venerado nas selvas e nos rios,

no silêncio da lua ne no grito do sol:

Pelos altares e pelas vidas destruídas

em teu nome, profanado,

nesta nossa Abya Yala colonizada,

Te pedimos que fortaleças

a luta e a esperança dos Povos Indígenas,

na reconquista de suas terras,

na vivência da própria cultura,

na fruição da autonomia livre.

E dá-nos (a nós, neocolonizadores)

vergonha na cara e amor no coração

para respeitarmos esses Povos-raiz

e para comungar com eles em plural Eucaristia.

Awere, Amém, Aleluia”.

Como ousaram um dia sonhar um punhado de missionários e missionárias indigenistas, que se possa continuar a imaginar outros mundos, uma Terra sem Males, em que os povos indígenas vivam a sua dignidade em paz!

Mística com imagens de religiosos que deram suas vidas na luta em defesa dos povos originários. Foto Fabio Pereira

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