A médio prazo, é crucial romper com as lógicas do agronegócios, que despreza o abastecimento popular e produz para concentrar riqueza e poder. Mas a fome não espera: Lula terá de traçar um plano de importação de alimentos, com subsídios
Andei lendo vários artigos e escutando debates e lives sobre o candente tema da taxa de juros Selic e a necessidade de reduzi-la. Em anexo a esta tempestade de opiniões há o quiproquó da autonomia do Banco Central. Talvez não tenha pesquisado o suficiente, mas não consegui encontrar um foco bem definido sobre a origem da nossa inflação atual. Afinal de contas, os remédios dependem do diagnóstico, não é mesmo? Se a inflação é provocada pelo excesso de demanda, a solução clássica é esfriar a economia para apertar a demanda e buscar um equilíbrio que segure os preços. Isto se faz pelo aumento dos juros, puxados no Brasil, pela taxa Selic. Esta solução é sempre cruel, pois ela implica, normalmente, em baixar a renda e o emprego das grandes massas. Os economistas clássicos sempre explicam que é um mal temporário e que a inflação é o pior dos males para os mais pobres. Não quero discutir esta fórmula agora, até porque não creio que a força principal que move a nossa alta de preços seja provocada por excesso de demanda, embora isto exista em termos relativos que explicarei mais adiante.
Por que não se pode dizer que temos uma inflação de demanda? A perda de renda das grandes massas foi um contínuo, desde 2015 até agora, com as classes C, D, E voltando a níveis pré-Lula e a B estagnando, enquanto apenas a classe A teve aumento de renda no período. Não estamos falando da aquecida demanda por carrões importados, lanchas gigantes ou jatos (hoje em dia não dá mais para falar de jatinhos, como no passado, os bichinhos cresceram muito), que está provocando filas nos fornecedores. O peso do consumo deste setor, por mais suntuário que seja, envolve tão poucos que não é capaz de definir a direção geral da inflação. O que pesa na inflação é o consumo das classes menos favorecidas e muito mais numerosas. Pois bem, não só estas classes perderam poder de compra, como estão fortemente endividadas, com 70% de faturas que comprometem até 40% da renda familiar. Não há sobras depois dos pagamentos e das compras essenciais. Na verdade, não há dinheiro para a maioria cobrir estas despesas. De onde vem então a pressão de demanda?
Desde o início da pandemia e a votação pelo Congresso da chamada Ajuda Emergencial, depois transformada em Auxílio Brasil pelo energúmeno que nos presidia, até 20 milhões de famílias receberam valores destinados a permitir, teoricamente, que se alimentassem corretamente. Não cabe aqui discutir se estes auxílios eram suficientes para o fim proposto (e não eram), mas constatar que uma parcela significativa das massas populares recebeu recursos de auxílio. Mesmo considerando que nem tudo tenha sido gasto em alimentos, e algumas pesquisas apontam para “desvios de finalidade” de até 50%, este auxílio representou um aumento significativo na demanda de alimentos.
Minha hipótese de trabalho, não verificada por pesquisas concludentes, é que os beneficiários compraram os alimentos mais baratos como norma, e não os mais necessários para uma alimentação correta. Isto significa que a demanda de alimentos ultraprocessados foi relativamente mais forte do que a dos alimentos em natura ou apenas beneficiados. Tudo isto leva a minimizar o impacto de demanda sobre o consumo alimentar básico, até hoje definido pela cesta alimentar que o Dieese acompanha e que foi consagrada na lei do salário mínimo. Minimizar sim, mas impacto certamente houve. Nestes três anos de pandemia, os preços dos alimentos subiram muito acima da inflação medida pelo IPCA, sobretudo em 2020 e 2022, com um ano mais moderado em 2021. São números impressionantes: nos três anos citados os alimentos, em média geral, subiram 12,14%, 11,71% e 11,64%, contra um IPCA (o índice geral da inflação para toda atividade econômica) de 4,52%, 10,06% e 5,79%. Estes números indicam que a inflação dos alimentos se colocou em um patamar alto constante, sendo que no primeiro e último anos ela esteve levemente acima ou abaixo do dobro da alta geral dos preços. No outro ano, houve uma explosão geral de preços que praticamente igualou os dois índices.
Nos últimos 20 anos (lembrando que não havia auxílios governamentais com o peso dos tempos da pandemia), a inflação de alimentos ficou abaixo da inflação geral em seis anos. Entre 2003 e 2006, os anos do primeiro governo do presidente Lula, a alta de preços dos alimentos entrou em um descenso consistente, de 7,48% até 1,23% ao ano, acompanhada da queda também contínua e consistente do IPCA, de 9,30% até 3,4%. No segundo governo de Lula, a inflação dos alimentos deu um salto para o patamar que estamos galgando nestes últimos 3 anos, 10,79%, 11,11% e 10,39% nos anos de 2007, 2008 e 2010. Esta subida se explica pela crise de 2008, precedida pela escalada dos preços do petróleo em 2007. Nestes anos, o IPCA também subiu, mas menos, 4,46%, 5,9% e 5,91%. No ano de 2009, a alta de preços dos alimentos arrefeceu, mantendo-se nos 3,18%, abaixo do IPCA de 4,31.
Depois deste período a inflação dos alimentos esteve sempre acima do IPCA, em vários anos com valores até três vezes maiores. Houve um ano excepcional, 2017, em que a inflação de alimentos foi negativa, 1,87%, para uma inflação geral de 2,95%. Este foi o ano da grande depressão da economia brasileira provocado pelas medidas econômicas tomadas pelo governo Temer e isto derrubou pesadamente a demanda em geral e a alimentar em particular. Não deixou boas lembranças, apesar destes números aparentemente favoráveis.
A trajetória da inflação de alimentos precede, quase sempre, a da inflação geral. Isto se explica pelo fato de que a primeira é o mais importante componente da segunda, seguida pelo custo dos transportes. Mas o descolamento que se dá em termos do tamanho das duas inflações é notável e tem que ser entendido.
Antes do mercado responder à oferta/demanda de alimentos, definindo os preços que serão praticados, há um ponto de partida que são os custos de produção, processamento e colocação no mercado dos produtos alimentares, sendo que os custos da produção primária são a parte mais significativa desta operação. É preciso também levar em conta as margens de lucro dos agentes econômicos.
Não vou discutir em detalhe o conjunto dos fatores de produção da nossa agropecuária. O mais importante a notar é que os custos de adubação representam atualmente 30% de todos os custos da produção primária nos sistemas de produção convencional. É, de longe, o item mais pesado na conta. Estes custos não apenas estão muito altos, como tendem a crescer de forma sistemática nos próximos anos. A FAO avalia que os preços agrícolas entraram em uma espiral de alta sem perspectiva de mudança significativa e que os preços dos fertilizantes têm um papel nesta tendência.
O alto preço dos fertilizantes se explica por duas razões. A primeira é o fato de que eles dependem da disponibilidade de minerais de fósforo e potássio e o custo de identificação de novas jazidas, exploração e processamento, bem como dos níveis de reservas e custo de extração, processamento e distribuição de petróleo e gás. Em todos estes produtos estamos assistindo a um processo cada vez mais acelerado de esgotamento das reservas e aumento dos custos de identificação de novas jazidas e das maiores dificuldades e custos na sua exploração. O “típico” da produção de fósforo, por exemplo, já teria ocorrido em 1989, segundo alguns analistas. Segundo outros, ele ocorrerá em menos de uma década. O potássio tem reservas mais amplas, mas o pico da produção deve ocorrer até meados do século. Já as reservas de petróleo e de gás ou bem alcançaram seu limite ou este está chegando rapidamente, dependendo de estudos conflitantes.
Por outro lado, o mercado de fertilizantes é altamente oligopolizado e isto permite que quatro ou cinco empresas definam os preços de acordo com os interesses de seus acionistas. Este conjunto de fatores (disponibilidade de matérias primas, custo de exploração e controle de mercado) indicam que os preços dos fertilizantes vão pressionar de forma contínua os preços dos alimentos e dos produtos agropecuários no presente e no futuro.
O Brasil depende em 80% das importações de fertilizantes para manter a sua produção agropecuária convencional. Esta é a razão pela qual os preços deste insumo tenham subido tanto desde o início da guerra da Ucrânia. Importamos boa parte do potássio utilizado da Rússia e de Belarus, que juntos representam 33% da produção mundial. 53% dessa produção vem do Canadá, o que dá uma ideia do nível de concentração da oferta global.
Além dos problemas de acesso a estes produtos devido às sanções impostas aos russos e seus aliados e aos preços mais elevados que o mercado definiu desde o início da guerra, somamos ainda às nossas dificuldades a alta taxa de câmbio, 30 a 40% acima de um “normal” teórico.
Poderíamos repetir esta demonstração para outros insumos como as sementes, cujos preços, também oligopolizados, subiram muito acima da inflação.
Com os custos da produção agropecuária subindo sem limites, a nossa produção nacional tem um patamar elevado que deve se manter, na média, bem acima da inflação, ajudando a pressioná-la continuamente.
Para resumir, temos no Brasil uma inflação com múltiplos fatores pressionando pela expansão, sendo que os mais importantes estão nos custos, apesar de uma parte significativa estar relacionada com o aumento de demanda provocado pelos programas de auxílio aos mais pobres.
Muitos analistas tendem a desconsiderar a pressão dos custos, indicando que o grosso da nossa produção de grãos e de carnes continua encontrando mercados com preços capazes de remunerar os produtores. Isto tem a ver com a nossa integração nos mercados internacionais de commodities, aquecidos pelo aumento da demanda de países como a China. Isto resolve o problema dos lucros do agronegócio, mas representa um problema extra para o nosso mercado interno. Com a nossa economia agropecuária fortemente indexada nos preços das commodities, a espiral de aumento de preços dos alimentos a nível nacional é de difícil controle. Boa parte das dificuldades de oferta de alimentos no Brasil tem a ver com o fato de que é mais lucrativo para os produtores entrar neste circuito exportador do que produzir para um mercado interno que é dependente da capacidade de pagamento de uma população pauperizada ou dos valores das ajudas governamentais. O feijão não tem cotação em Chicago, mas o produtor nacional não deixa de comparar os preços alcançados pelos produtores de soja e de milho e isto influenciou muitos deles, nos últimos 30 anos, a optar pelas cadeias exportadoras.
Neste quadro acima descrito, aumentar a taxa de juros para esfriar a demanda não resolve nada, mas baixá-la também não. Ou, pelo menos, não basta para resolver o problema alimentar no Brasil.
Para enfrentar o problema dos preços crescentes dos alimentos no país, que incidem na alta constante da inflação em geral, temos que adotar uma série de políticas visando o aumento da produção interna, buscando a diminuição dos custos de produção. Os agroeconomistas clássicos apontam como solução o aumento da eficiência no uso dos fatores produtivos. Um desses fatores é o preço da terra e isto leva o agronegócio a buscar a desregulamentação do seu acesso, com aumento das áreas cultivadas através do desmatamento. A terra é um fator produtivo barato no Brasil, em comparação com países como os EUA, os da União Europeia, a Argentina e a Austrália. Mas facilitar o acesso às terras indígenas ou reservas naturais tem outras implicações sociais e ambientais graves. Além disso, trata-se de uma solução de curto prazo, já que estas novas terras cultiváveis se encontram em ecossistemas com solos frágeis e de baixo potencial produtivo. O segundo fator é o aumento da produtividade agrícola. O uso mais racional dos insumos industriais na produção agropecuária esbarra na necessidade de fortes investimentos tecnológicos, tais como os que implica a chamada agricultura de precisão. De toda maneira, mesmo esta maior eficiência no uso de insumos não nos deixa livres das pressões do aumento contínuo do seu custo.
O que temos que fazer implica em mudanças radicais no nosso sistema de produção agropecuária. Desde logo, temos que diminuir o uso de fertilizantes químicos, agrotóxicos e sementes de empresas, além de diminuir o uso de combustíveis fósseis na produção. Racionalizar este uso é um primeiro passo, mas certamente insuficiente.
Retirar os subsídios ao uso dos insumos é uma medida necessária para incentivar a racionalização do seu uso, embora tenha um efeito imediato de aumento de custos. Outro passo importante seria a substituição dos fertilizantes importados por outros de produção nacional. Como não temos jazidas significativas de fósforo e de potássio, a solução seria a reciclagem do lodo de esgoto e do lixo orgânico. Temos condições de atingir a autossuficiência em fertilizantes, mas isto vai exigir um investimento nacional na implantação de usinas de compostagem. Tecnicamente isto não é um problema pois as soluções são bem conhecidas e já foram aplicadas de forma localizada. Trata-se de uma escolha de política pública, designando recursos de investimento adequados para uma rápida expansão, em colaboração com governos estaduais e municipais e estimulando empreendimentos privados. O efeito colateral positivo seria diminuir o impacto ambiental de lixões e de despejo de esgotos in natura em rios, lagos e mar.
Esta solução pode melhorar a performance do nosso agronegócio, mas não resolve o problema de fundo. É toda a lógica do agronegócio que está em questão. Definir políticas que estimulem sistemas agroecológicos é uma exigência para o nosso futuro. Mas como estas políticas não tem efeito de curto prazo em escala suficiente para brecar a pressão da alta dos preços dos alimentos, vai ser preciso enfrentar a demanda aquecida destes produtos estimulada pela ajuda governamental.
Para ser coerente com a proposta de ajuda aos mais pobres, o governo Lula vai ter que traçar uma política de importação de alimentos essenciais até que a produção nacional responda a estímulos de expansão. E estes alimentos terão que ser, muito provavelmente, subsidiados, pois os preços internacionais estão tão aquecidos como os nacionais. Para não erodir o valor da ajuda provocada pela alta dos alimentos o governo vai ter que estudar uma política que torne os valores dos alimentos básicos importados adequados aos valores da ajuda.
A questão das metas de inflação, da política fiscal e controle do déficit público serão objeto de outro artigo, que também discutirá o tema da autonomia do Banco Central.
São muitas mudanças radicais e não estou vendo o governo ou a sociedade discutindo esta problemática pelo ângulo colocado neste artigo. Mas não custa dar um voto de confiança no novo governo e esperar para ver.
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Foto: Fabiana Reinholz/Brasil de Fato