Pais em situação de vulnerabilidade nas ruas de Boa Vista esperam há meses a liberação do filho para retornar para casa
Por Rubens Valente, Evilene Paixão, Agência Pública
BOA VISTA — A fotografia tirada há um mês mostrava uma criança yanomami franzina, com os braços finos e os cabelos ralos. Na barriga, a marca de uma sonda pela qual as enfermeiras a alimentaram e a medicaram, o que ajudou a desobstruir e curar o intestino – motivo de sua internação há mais de quatro meses no Hospital da Criança Santo Antônio, em Boa Vista (RR). Um mês depois, uma nova imagem já mostra a criança com os bracinhos gordinhos e o cabelo basto.
Tecnicamente, disse o hospital à Justiça, o pior já passou e a criança pode ir para casa, uma aldeia na Terra Indígena Yanomami próximo do rio Ajarani. Mas o futuro é ainda incerto para o pequeno Yanomami de cerca de três anos de idade, cuja história traz à tona a situação de um grupo de Yanomami que, expostos ao álcool e à violência, dorme em calçadas e sob viadutos da capital de Roraima.
A criança recebeu alta médica, mas precisa de um acompanhamento médico sistemático lá na aldeia, o que as ruas de Boa Vista não vão oferecer.
O Ministério da Saúde informou à Agência Pública que a criança “utiliza gastrostomia para se alimentar” e que “após todos os cuidados adotados pelas equipes de saúde, a Secretaria de Saúde Indígena estuda agora a melhor forma de transportar o paciente, a fim de evitar riscos à sua saúde”. A gastrostomia é um procedimento cirúrgico de instalação de uma sonda pela qual os alimentos são passados direto ao estômago. O sucesso do tratamento permite a retirada da sonda a médio prazo.
O tratamento no hospital foi prolongado, com diversas entradas e saídas do paciente, de acordo com a instituição. Temendo que, nesse período, a criança fosse entregue à adoção, o CIR (Conselho Indígena de Roraima), uma das principais organizações indígenas de Roraima, foi à Justiça para pedir que a guarda fosse garantida aos pais biológicos. “Os pais não tinham nenhuma informação de que a criança estava em processo de adoção. Quando a gente ficou sabendo, prontamente procurou agir, buscar uma solução melhor para a criança, que é colocá-la de volta à família. Buscamos a sensibilidade da Justiça, do Ministério Público, sobre a importância de não tirar a criança dos Yanomami. Esse caso é emblemático. E a gente está acompanhando para que essa criança volte para a terra indígena com toda segurança e atendimento de qualidade, inclusive na saúde”, disse o advogado indígena makuxi Ivo Aureliano, do CIR.
As organizações indígenas e de direitos humanos receberam a informação de que o menino deu entrada no hospital como “indigente”. A Secretaria Municipal de Saúde, à qual o hospital está vinculado, negou que o bebê tenha sido internado como indigente, mas confirmou que “devido a algumas situações”, não explicadas, “foi necessário relatar o caso ao Conselho Tutelar” (leia nota na íntegra ao final do texto).
O drama do bebê é acompanhado há três semanas pela Agência Pública e ocorre simultaneamente à grande emergência sanitária Yanomami que explodiu durante o governo de Jair Bolsonaro como consequência da invasão de, estima-se, 20 mil garimpeiros, e foi declarada pelo Ministério da Saúde após a posse do presidente Lula, em janeiro. De 2019 a 2022, segundo o governo, pelo menos 570 crianças morreram na terra indígena por causas evitáveis como desnutrição, diarreia e malária.
Diferentemente das crianças e adultos resgatados dentro da terra indígena a partir de janeiro, cujas imagens atraíram atenção internacional pela severa desnutrição, o menino deu entrada no hospital infantil na cidade de Boa Vista (RR). Ele vivia na capital de Roraima com seus pais desde o ano passado.
No último dia 14, a Pública localizou os pais do menino vivendo, com mais cinco adolescentes e crianças, todos parentes entre si, debaixo de um viaduto próximo à Feira do Produtor da capital roraimense. “Saudade”, disse a mãe. “De volta”, concordou o pai, balançando a cabeça, quando indagados se queriam ver o filho. A comunicação foi truncada: o jornalista não fala nem entende a língua Yanomami e os pais falam poucas palavras em português.
Há semanas as organizações indígenas acompanham o caso da criança e dizem que os pais só continuaram nas ruas porque aguardavam a saída do menino do hospital. Mas ele só poderia sair se recebesse a garantia de um atendimento correto para seus problemas de saúde, a ser providenciado pelo DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami, vinculado ao Ministério da Saúde.
O pai pediu algo para comer, disse que o grupo só se alimentava de farinha de mandioca há mais de um dia. Como prova, mostrou um saco de farinha pela metade, de fato o único alimento dos indígenas naquela tarde. O pai tinha no rosto a marca de uma pancada, aparentemente recente. Ele disse que caiu da rede. O grupo dorme em redes, já gastas ou rasgadas – pediram novas –, amarradas entre árvores na calçada. Naquele mesmo ponto, uma mulher indígena foi assassinada com um tiro na cabeça no final de dezembro passado. O pai do bebê lembrou do caso, mas disse que não chegou a conhecer a indígena nem o motivo do crime.
Francisco Ferreira da Silva, que trabalha como carregador de fardos na Feira do Produtor, disse que no comércio não muito longe dali os indígenas conseguem comprar álcool livremente, apesar de a venda ser proibida aos indígenas. Ele se disse contrariado com o fato. “Todo brasileiro sabe que é proibido vender bebida para índio. Mas se chegou com dinheiro lá, não quer nem saber quem é, quer é vender.”
Segundo Silva, os indígenas aparecem de tempos em tempos para dormir no local, há mais de cinco anos, e, quando a Funai manda uma equipe para retirá-los da rua e colocá-los numa casa de apoio, se recusam ou vão a contragosto, retornando logo depois. Há um mês voltaram para a calçada, segundo o carregador.
“Eu acho que eles são do Catrimani. Dá uns 260 km. Eles chegam andando. Andando, é proibido dar carona para eles. Se bem que, aqui em Roraima, proibição não vale nada [ri]. Eles bebem, brigam um contra o outro. Eles ficam catando coisas de vidro [para vender], algumas pessoas que passam dão marmita”, disse Silva. “Agora vamos ver se o Lula dá um jeito.”
Obra da ditadura levou à desestruturação do grupo que hoje vive nas ruas
Um relatório entregue por organizações não governamentais ao Poder Judiciário no processo que discutia a guarda da criança informou que o grupo às vezes se alimentava na sede do CIR, mas não aceitava dormir em instalações de apoio aos indígenas, como a Casai (Casa de Saúde Indígena).
A razão, segundo indigenistas, é cultural, e um reflexo de ações da ditadura militar (1964-1985). O grupo indígena ao qual o menino pertence é dos Yanomami conhecidos como Yawari (pronuncia-se “Djauári”) da região do Catrimani. Até o início dos anos 1970, eles viviam uma vida estável semelhante à de seus parentes, hoje estimados em 31 mil, das outras partes da Terra Indígena Yanomami antes da primeira grande invasão garimpeira, no final dos anos 1980.
A ditadura, porém, construiu uma rodovia, a Perimetral Norte, que atingiu os Yawari profundamente em sua saúde, integridade e cultura. A obra levou a uma aproximação vertiginosa, a partir do final de 1973, entre os indígenas e os não indígenas, espalhando doenças e álcool. Dezenas e dezenas de Yanomami morreram durante a construção da rodovia que terminou inacabada alguns anos depois. O trecho concluído, porém, que conectou a região de Catrimani à rodovia federal BR-174, foi o suficiente para levar a desgraça aos Yawari.
Indigenistas hoje estimam em 80 indígenas vivendo naquele ponto da terra Yanomami. Um estudo feito em 1989 pelo Departamento de Antropologia da UnB (Universidade de Brasília) identificou 83 indígenas – hoje haveria, portanto, praticamente o mesmo número de há 30 anos.
Dário Yanomami, da HAY (Hutukara Associação Yanomami), filho do líder indígena Davi Kopenawa, disse que os Yawari são um dos dez grupos distintos da mesma família Yanomami que vivem no território demarcado no início dos anos 1990. São eles, segundo a liderança, que hoje vivem em calçadas de Boa Vista.
“Na década de 1970, quando a invasão da Perimetral Norte entrou, [vieram] alcoolismo, prostituição. Eles são os nossos parentes. São mais difíceis de entender porque o consumo de alcoolismo já [é alto]. Isso foi uma dependência. Entrou muita doença. Teve muito trabalho, conseguimos retirar os fazendeiros [invasores] daquele local. Quando acabou isso, os nossos parentes acostumavam com uma fazenda, ganhavam cachaça. […] Vários problemas. Depois eles entraram em Boa Vista. Isso é um trabalho muito difícil.”
Dário disse que eram cerca de 60 os Yawari, mas agora “estão reduzindo, estão acabando”. “Houve atropelamento, assassino entre eles […]. Já aconteceram vários atropelamentos [motivados] de alcoolismo, de bebidas. Isso aconteceu bastante. Essa é uma situação muito difícil.”
Dário disse que as famílias do Ajarani costumam vir a Boa Vista para resolver problemas burocráticos ou receber benefícios sociais que o Estado não entrega nas aldeias. “Também nossos parentes são cadastrados no sistema de benefício social, Bolsa Família, aposentadoria. Isso a Funai cadastrou, é obrigação do governo, e não tem transporte, não tem acompanhamento [da aldeia para a cidade]. Isso gerou todos esses problemas. Algumas [famílias] vêm [para a cidade] em busca de saúde, de educação, e de auxílio. São três problemas e isso é responsabilidade do Estado.”
O advogado indígena macuxi Ivo Aureliano, do CIR (Conselho Indígena de Roraima), confirmou que os Yawari “vêm a pé da região do Ajarani, mais de 200 km a pé”. O advogado defendeu a necessidade de os hospitais de Boa Vista terem “pessoal qualificado para atender os Yanomami” e que seria necessário o cumprimento de um protocolo específico a fim de evitar casos como o do menino cuja guarda os Yanomami tiveram que alertar à Justiça.
A indigenista da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) Elayne Rodrigues Maciel, coordenadora da frente de proteção etnoambiental do órgão na terra Yanomami, disse que as famílias Yawari, quando têm um parente internado em hospitais, por razões culturais e históricas evitam se comunicar com outros indígenas, o que também gerou um ruído de comunicação com o hospital. Como se os pais tivessem abandonado a criança, o que nunca ocorreu, disse a indigenista.
“Os Yawari são conhecidos por serem guerreiros. Aí eles entram em conflito com as comunidades ao redor e vão migrando. Os que estão em Boa Vista têm conflitos na calha do rio Ajarani e na calha do rio Catrimani. Eles não querem voltar para o território. Eles não têm onde ficar no território, por conta de conflitos internos. Os Yawari é aquela etnia que não gosta de ter contatos com outros grupos, inclusive com não indígenas. Os pais ficarem no hospital, na ala indígena, com aquela quantidade de pessoas, para os pais é um incômodo. Eles entendem que a criança está sendo cuidada. Eles estão aguardando a criança receber alta, eles não vão arredar o pé de Boa Vista enquanto não receberem essa criança para levar para a comunidade. Eles não a abandonaram. Mas pelo fato de não ter acompanhante, o hospital acionou o Conselho Tutelar, não entendeu essa questão cultural dos Yawari. Nenhum Yawari fica no hospital acompanhando a criança.”
Nesta segunda-feira (27), as organizações que acompanham o caso do menino receberam a informação de que o governo federal iria providenciar a remoção, por avião, do bebê e de sua família para a região do Ajarani. A viagem estava prevista para ocorrer na terça-feira (28). Porém, de manhã veio a informação de que o Distrito Sanitário Indígena ainda não tem as condições necessárias para acompanhar o estado de saúde do menino na aldeia. Por isso ele permaneceu no hospital.
Em nota à Pública, a SMSA (Secretaria Municipal de Saúde) disse que é “inverídica” a afirmação de que o Hospital da Criança Santo Antônio considerou o paciente “como indigente”. “A criança deu entrada no hospital por várias vezes, acompanhada pela mãe e/ou por funcionários do DSEI-Y, encaminhada pela CASAI-Y e que, devido a algumas situações, foi necessário relatar o caso ao Conselho Tutelar. A SMSA esclarece ainda que o Hospital da Criança Santo Antônio tem um Fluxo e Rotina de atendimento a toda a população infantil entre 29 dias a 12 anos, 11 meses e 29 dias, que obedece entre outras vertentes, as dos Princípios e Diretrizes do SUS (Universalidade, Equidade e Integralidade), onde todos são tratados da mesma forma independente de raça.”