Filósofo sugere: lutas minoritárias são a nova contracultura. Rearticulam a cosmopolítica e desafiam o poder espiritual da branquitude cristã, colonial e capitalista. E seriam mais radicais que o marxismo. Não têm projeto pronto — nem limites
por Moysés Pinto Neto, em Outras Palavras
O título desta intervenção é já uma provocação. Ele fala na língua do adversário.
Na última década, vimos a profusão de movimentos minoritários ganhando novas dimensões. Feminismo, movimento LGBT, movimento negro, povos indígenas e ambientalistas não começaram suas lutas ontem. São movimentos que percorrem o século XX e recebem diferentes “ondas” que aumentam suas intensidades. Desde 2013 e da emergência das plataformas digitais, parece nítido que todas essas lutas ganharam novas intensidades.
Por esse prisma, a ascensão do bolsonarismo deixa de ser um enigma total.
Podemos entendê-la como uma resposta dos grupos cultural, social e economicamente dominantes às lutas sociais deflagradas na última década. Seu formato grotesco espelha a coalizão de interesses que o sustenta: contra os indígenas, o agro e o fundamentalismo cristão; contra os negros, o poder policial punitivo e a hegemonia da branquitude; contra as mulheres, o patriarcado cristão e a masculinidade tóxica; contra a população LGBT, a perseguição e a calúnia do discurso que lhes atribui a perversão sexual. A lista, obviamente, não termina aí. Há, como diz Hill Collins, uma “interseccionalidade invertida” na convergência bolsonarista.
Não por acaso, doa a quem doer, podemos dizer que Bolsonaro tem sim, ao contrário dos tucanos que lhe antecederam, e mesmo dos militares, uma base social.
Que ela tenha sido construída com mentiras, afetos desprezíveis, utilizando de modo estratégico os algoritmos e alavancada por patrocínios obscuros, além da tradicional complacência da mídia de centro-direita cujos temas principais, por exemplo a corrupção, acabam a fortalecendo, tudo isso serve apenas para sempre termos presente a assimetria comunicativa entre direita e esquerda. Mas não desfaz a popularidade de Bolsonaro.
Por isso, surge de uns anos para cá uma resposta a esse conflito, apelidado entre os conservadores de “guerras culturais”, que vem ganhando críticos nas fileiras da centro-esquerda e da esquerda radical. Pelo menos três grupos se formaram:
- uma esquerda mais liberal e racionalista, cuja adesão formal às pautas ditas “identitárias” é afirmada, mas existe um questionamento dos métodos, da forma de diálogo, dos excessos e da perda de vínculo com um tipo de universalidade “cidadã”;
- uma esquerda radical que forma aliança entre velhas lideranças de luta marxista e um novo campo formado a partir de influencers, sobretudo youtubers, com pontos de vista declaradamente comunistas, que veem as “lutas identitárias” como um desvio do foco central: a luta de classes. Segundo essa leitura, as políticas relacionadas com as lutas minoritárias não seriam estruturais, atacando apenas com soluções cosméticas e servindo como legitimadoras do capitalismo. Por isso, chamam em geral de “pós-modernos” e “liberais” aqueles que as defendem;
- uma nova direita fantasiada de esquerda, adepta das ideias do tradicionalismo e simpática a ideias nacionalistas que flertam com o integralismo, defendendo uma espécie de combinação invertida do chamado “neoliberalismo progressista”, ou seja, um nacionalismo econômico conservador.
Há pontos em comum entre (2) e (3), como a prevalência de um certo modelo de masculinidade no seu campo militante, além de simpatias geopolíticas por regimes autoritários como China e Rússia, sobretudo pela manutenção da civilização industrial em primeiro plano e pelo confronto geopolítico com o poder americano.
Mas a pergunta é: será que a designação “identitário” dá conta do que está ocorrendo no Brasil?
De fato, durante um tempo houve a prevalência de uma certa episteme “pós-moderna” que poderia ser definida como uma combinação de afirmação da diferença (de gênero, racial, de orientação sexual, mesmo de classe) cumulada com a desconstrução dos estereótipos respectivos, mostrando a multiplicidade imanente a cada grupo social, que é irredutível aos papeis sociais subalternizados e inclusive violentados que são estruturalmente presentes no Brasil. O fato de a ênfase na dimensão violentada ter ocorrido produziu algumas respostas caracterizando como um movimento de “vítimas”. Isso, aliás, serviu de combustível para a direita reacionária absorver termos como “vitimismo” e “mimimi” como resposta a demanda pela interrupção da violência.
Além disso, na episteme pós-moderna ainda prevalecia o conceito de “representação”, mediado linguisticamente, cuja contrapartida política era a representatividade, a identidade e o lugar de fala. Na leitura da esquerda radical, é precisamente este o ponto que limita as lutas “identitárias”: ao reduzir suas demandas à representatividade, não haveria uma transformação estrutural, mas apenas uma distribuição mais equitativa dos lugares. A própria estrutura não é atacada. Racismo, misoginia, transfobia, homofobia ficam reduzidos a “preconceitos” a serem desconstruídos. Falta, sobretudo, a classe.
A direita reacionária, por sua vez, quer afirmar sua “liberdade de expressão”: a combinação entre interrupção da violência (física ou simbólica) e a representatividade produzem a “ditadura do politicamente correto”.
Ainda há uma crítica ainda mais sofisticada ao ponto que percebe um essencialismo entre essas lutas na escolha pela identidade, congelando papeis e estereótipos, incentivando o ressentimento e eliminando as ambivalências. É a turma de devir, da mestiçagem, do híbrido.
Entendo que todos esses diagnósticos estão profundamente errados.
A coalisão bolsonarista não deixou dúvida do seu caráter profundamente colonial. A questão central do Brasil é um poder colonial que atua por meio da máxima extração, com a exploração de recursos energéticos diversos (como a terra, os rios, o trabalho), e pela indiferença às vidas “sem valor”. Por isso o Ministro Silvio Almeida, no seu discurso de posse, afirmou em relação a diversos segmentos marginalizados da população: “vocês existem”. O problema da exploração não é apenas um problema na repartição final do produto do trabalho, que aliena o trabalhador da sua obra e se apropria de fração maior por deter os meios de produção, mas a manutenção da lógica da escravidão – de que o Outro (negro, indígena, pobre, etc.) simplesmente não existe enquanto ser humano e, portanto, não é sequer um sujeito a ser explorado.
É sob esse prisma que é possível entender o genocídio e o etnocídio que caem sobre as populações afrodiaspórica e indígena.
Ou seja, além de o domínio se caracterizar pela economia política por meio de uma superexploração escravista, há ainda um poder espiritual que quer se afirmar. Esse domínio é a branquitude cristã, colonial e capitalista.
Quando se estabelecem as lutas minoritárias, é esse poder espiritual que é atacado. Sua hegemonia é dilacerada em multiplicidades. A naturalização do gênero, que é a contrapartida do poder patriarcal, é questionada a partir da auto-estilização queer e da crítica feminista. O grande bloco monoteísta, cuja divindade é o Deus-Capital-Branco, se multiplica nos politeísmos aterrados, nas confluências afro e indígenas, na afirmação da diferença no modo de existir e se relacionar com a natureza e a sobrenatureza.
Ou seja, se em algum momento houve a prevalência do “neoliberalismo progressista” entre os movimentos sociais, hoje isso é coisa do passado. O que eles propõem são novas filosofias capazes de nos re-situar em novos quadrantes cósmicos. E, nesse sentido, o próprio léxico radical da emancipação e do progresso é relativizado. Temos novas filosofias do encantamento, das confluências, novos arranjos que rearticulam as próprias categorias modernas que serviram de base para o marxismo.
É nesse sentido que devolvo a crítica ao marxismo: essas lutas são mais radicais, mais estruturais, que o próprio marxismo. Elas não prescindem da crítica ao capitalismo, ao contrário. Não veem nenhum mérito nele, sequer o tão comemorado “desenraizamento” que figura como etapa inicial para a formação de uma socialmente realmente livre, a do comunismo, quando a pressão econômica (da “necessidade”) será superada. Na verdade, essas lutas colocam em dúvida a antropologia filosófica de base do marxismo (e comum ao liberalismo), baseada no humanismo de origem grego-judaico-cristã-moderno, em nome de novas concepções cosmológicas que abrangem, inclusive, novos agentes como a própria Terra/Gaia/Pachamama, os espíritos, os animais, os vegetais, os minerais. Essa rearticulação cosmopolítica é muito mais radical que qualquer introjeção do discurso ambientalista no marxismo, mesmo na forma de ecossocialismo.
Isso quer dizer que esses movimentos não têm limites, ambiguidades, ou que têm um projeto pronto? Parece que não. É um processo de reabertura das virtualidades que foram sufocadas pelo poder colonial, mantidas apenas na forma de resistências, mas que podem ser reinventadas, reapropriadas, transformadas, escaladas, enfim, que podem sofrer todo tipo de mutação oriundas de uma libertação das suas potencialidades reprimidas.
Evidentemente, o projeto monolítico do progresso industrial e da grande classe média é medíocre diante dessa ambição. Onde ele acusa os “identitários” de trabalhar a favor do capital, revela apenas sua própria incapacidade de visualizar para além de si próprio.
Se as contraculturas dos anos 1960 foram uma experimentação contra a sociedade industrial, como dizia Marcuse, e redundaram em muitas transformações, mas também em muitas práticas individualistas e quiçá foram apropriadas também pelo neoliberalismo, isso não significa que não estejamos diante de uma nova geração contracultural. Desta vez, a contracultura se confunde com a própria ontologia: não é mais apenas o verso da “natureza”, entendido como algo externo – inóspito ou romantizado – mas como uma nova polis para o cosmos que abrange aquilo que o Modernidade ignorou.
É nos “identitários” que está a resposta. Não porque sejam “identitários” ou, muito menos, liberais. Mas justamente o oposto: é neles que está a mais radical proposta de transformação, uma transformação cósmica que atinge nossos modos de existência e o próprio conceito de política.
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Imagem: Getty Image