Economia da Cultura: um diálogo com Juca Ferreira

Ela não é uma simples mercadoria. Gera renda, mas também sensibilidade e cidadania — e não deveria servir às lógicas do mercado. Isso requer políticas de Estado que vejam o potencial da cultura para o desenvolvimento no século XXI

por Rodrigo Savazoni, em Outras Palavras

Há pouco mais de um mês estive com Juca Ferreira e ele me entregou uma publicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para a qual escreveu um ensaio sobre economia da cultura. O dossiê, organizado pelos professores Mônica Medeiros Ribeiro e Fernando Mencarelli, é aberto pela transcrição de uma fala do líder indígena Ailton Krenak. A leitura de ambos os artigos, em sequência, primeiro o de Juca, depois o de Krenak, motivou-me a tecer algumas considerações sobre o tema da economia das artes e das culturas.

Juca, que está assumindo esta semana a cadeira de economia da cultura do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES), escreve de um lugar único: o de ter sido e seguir sendo um dos principais líderes das mais inventivas políticas culturais de nosso país. Depois de ser secretário executivo de Gilberto Gil por seis anos, ministro da Cultura por duas ocasiões, secretário de cultura de dois dos principais polos criativos do Brasil, São Paulo e Belo Horizonte, ele defende uma economia da cultura não economicista. Uma economia que sirva às artes e à cultura e não que se sirva delas. “Nosso desafio maior, quase que uma premissa, é compreender criticamente a dimensão econômica da cultura em suas relações com os conteúdos e processos das artes e da cultura, detectando seus impactos positivos e negativos, e como evitar que essa economia signifique a banalização e a perda dos significados e da função da arte e da cultura na vida dos seres humanos”.

Essa perspectiva não-economicista é também defendida por Krenak, um reconhecido produtor cultural e líder indígena, atualmente uma das vozes teórico-práticas mais importantes de nosso tempo. “Vale a pena a gente pensar no que disse a nossa querida professora Conceição Evaristo. Ela disse que a produção da cultura, a expressão da cultura, a capacidade de sermos mais fiéis à nossa ancestralidade, às nossas riquezas próprias, à diversidade cultural, é muito difícil dentro do capitalismo. E, talvez, impossível; porque quando integramos o sistema capitalista, nós passamos a fazer parte de uma grande linha de produção que, da mesma maneira que produz sapatos e carros, quer também entender a produção cultural”. Uma economia não economicista. Uma economia não-capitalista. Uma economia das artes e das culturas que propicie uma transição de mundos, que seja vetor de um desenvolvimento efetivamente sustentável. É disso que se trata.

Como aprendemos durante os primeiros governos de Luiz Inácio Lula da Silva, a cultura subsiste na interação entre três dimensões: a econômica, a simbólica e a cidadã. Não uma interação estanque, de campos desencontrados. Uma interação que conforma uma hélice, uma turbina propulsora quando as três dimensões estão equilibradas e girando.

Tanto na visão de Juca como na de Krenak, percebemos que a dimensão simbólica é onde tudo começa e para onde tudo deveria voltar. Os valores, os conhecimentos, as invenções que nos elevam são do domínio do simbólico. “Essa dimensão é, para a arte e para a cultura, mais ou menos o mesmo que os ecossistemas e ambientes naturais são para os seres vivos”, escreve Juca. Um sistema complexo, portanto, “amplo, diverso e pluridimensional”.

A dimensão cidadã é a que emerge do reconhecimento de que a cultura é um direito. “O acesso pleno a bens, serviços e equipamentos culturais assim como a garantia da livre manifestação do pensamento e das expressões artísticas e culturais são direitos humanos fundamentais”.

Se o simbólico é onde tudo começa e termina, a dimensão cidadã é a que garante que essa experiência de produzir e fruir seja para todos. A economia, então, nessa perspectiva, comercial ou não-comercial, é o que dinamiza esses processos e garante que ele possa se sustentar no tempo e no espaço. É meio, não fim.

“A economia da cultura se realiza em contextos culturais de sutis interações entre preservação, inovação e liberdade de criação, continuidades e rupturas, memória e criação, modos de apropriação e acesso amplo”, elabora. “Assim, nesse universo singular e dinâmico, as atividades e manifestações culturais e artísticas adquirem significados, produzem satisfação intelectual, deleite estético, ampliam a autonomia e o protagonismo de indivíduos, grupos e populações, além de gerar emprego, renda e riqueza”.

O que fazer a partir dessa premissa?

Há, no ensaio de Juca, a escolha por tratar da economia das artes e das culturas. Não de economia criativa. Ele mesmo explica o porquê dessa escolha conceitual: “o conceito de economia da cultura, ao mesmo tempo que reconhece o conjunto mais restrito das atividades das chamadas indústrias criativas e as inúmeras questões e problemas que lhe são associadas, incorpora, também, estas muitas outras áreas da dimensão simbólica deixadas de lado ou ignoradas na formulação conceitual da economia criativa”. Ele sustenta essa afirmação justamente lembrando-nos que na América Latina muitas das atividades culturais e criativas de maior relevância não estão no domínio da indústria cultural. “São fatos econômicos relevantes de outra natureza”.

Resolvida a conceituação, o ensaio de Juca lança algumas pistas para pensarmos um programa de ação para as artes e as culturas latino-americanas, considerando a virada política ocorrida no último ano e a chegada de governos progressistas no Chile, na Colômbia e no Brasil. Identifiquei em sua abordagem três problemas principais e três possíveis gestos a serem realizados.

Problemas

  1. A economia da cultura se encontra em certo grau de monopolização, pois as indústrias culturais dos países do centro do capitalismo captam quase toda a riqueza e também concentram a produção simbólica, numa nova etapa do imperialismo cultural globalizado. O que fica ainda mais potente quando pensamos na economia da cultura digital, distribuída pela internet.
  2. Na América Latina, predomina a falta de clareza acerca da importância da cultura para o desenvolvimento e para nossa inserção soberana no cenário global.
  3. A visão neoliberal, excessivamente ideológica e anacrônica, vigora desde o final do século passado entre setores culturais, desconsiderando o importante papel do Estado no processo de desenvolvimento.

Gestos

  1. Cooperação: constituir um mercado comum latino-americano, quiçá, ibero-americano, com a participação dos países africanos de língua portuguesa. Esse mercado deve oferecer mecanismos claros de coprodução.
  2. Formulação: construção de uma política de Estado voltada para o desenvolvimento cultural e das artes, com investimentos, aparatos, recursos institucionais e marcos regulatórios compatíveis com os desafios contemporâneos. O papel do Estado deve ser o de “indutor, fomentador e regulador” dos processos estratégicos.
  3. Visão: estruturar uma nova concepção de economia das artes e das culturas baseada na diversidade cultural, identificando seus pontos de intersecção com a chamada economia do conhecimento ou “economia das ideias”. Colocar a cultura no centro de um novo projeto de desenvolvimento, adequado ao século XXI.

Em nome da dádiva e do comum

Peço então licença para entrar na roda trazendo uma reflexão baseada em um autor estadunidense chamado Lewis Hyde. Antes, cito novamente um trecho escrito por Juca, que me remeteu a esse escritor de que tanto gosto. Logo no início de seu ensaio, o ex-ministro defende que a economia da cultura “tem que estabelecer, desde seu planejamento, uma relação equilibrada entre o valor de troca e a intenção de lucro com o que podemos chamar de valor de uso, a finalidade da arte e da cultura, para evitar impactos devastadores sobre toda a dimensão simbólica da sociedade e para preservar as funções da arte e da cultura e seus significados na vida dos seres humanos”.

Em A Dádiva – Como o Espírito Criador Transforma o Mundo, Hyde organiza a ideia de que uma economia da cultura só pode existir se considerar os produtos da arte como um outro tipo de mercadoria. Ou seja, é feita para ser trocada num outro tipo de arranjo produtivo que não aquele estabelecido pela economia de mercado. Não a forma-mercadoria, mas a dádiva, o dom. Como um outro sistema econômico. “Não digo que uma obra de arte não possa ser vendida ou comprada; o que afirmo é que seu componente de pura doação não se enquadra no conceito de mercado”.

Então, seguindo as pistas de Juca, Krenak e Hyde, como estruturar uma política econômica para um sistema não-comercial? Ou, melhor, para um sistema que não possa ser medido exclusivamente por sua potência de compra e venda?

A cultura e a arte existem dentro de uma dinâmica de troca de doações. Ainda que para Hyde seja possível conciliar duas esferas aparentemente antagônicas, a da arte e da economia de mercado, é preciso atenção para como fazer isso. É preciso dar atenção à fronteira. Justamente, portanto, aos mecanismos que permitem operar os limites entre um e outro universo, garantindo a proteção do que precisa ser preservado, e, ao mesmo tempo, a circulação dessa produção. Um dos grandes desafios de nosso tempo é o da (re)construção de comunidades sadias. E já ficou provado que o excesso de comercialização, a usura, destrói nosso mundo. A riqueza gerada nas transações da economia de mercado devem não apenas abastecer individualmente os criadores, mas também o conjunto da criação, o manancial criativo que sustenta nossas comunidades: o comum.

Hyde nos lembra que há três formas históricas que garantem a sobrevivência econômica dos criadores: (A) assumir uma outra ocupação; (B) encontrar quem os patrocine; ou (C) vender diretamente ou por meio de um representante as suas criações (direitos autorais, royalties, bilheterias).

Entre aqueles que defendem a diversidade cultural e a democracia, só é aceitável formular soluções que busquem transformar a riqueza de mercado em riqueza de doação. Ou seja, garantir que a cultura proteja os existentes e promova novas existências. Essa reflexão me leva a pensar em alguns pontos que poderiam ser objetos de uma política cultural para a economia das artes e das culturas.

  1. Para todos os artistas e criadores que sobrevivem de ocupações que não as da cultura, é chegada a hora de formular uma renda básica universal a eles destinada. A Irlanda e cidades dos Estados Unidos como São Francisco e Nova York estão fazendo experimentos nesse sentido no contexto pós-covid. Há controvérsias sobre isso. Mas acredito que o experimento seja válido.
  2. É preciso uma reformulação completa das formas de mecenato, com atenção para o papel do Estado, mas também com diálogo amplo com o investimento cultural privado e as ações de filantropia. Há um universo próspero a explorar aqui. Há uma oportunidade gigantesca de dar-se um salto com as leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc. E também na possibilidade de articulação de fundos privados aliados de uma política generosa.
  3. É preciso revisar todo o universo dos direitos autorais, royalties e programas de apoio para espetáculos, no sentido de compreender o alcance dos valores gerados por essa economia, bem como proteger criadores e cidadãos da usura. Aqui há um universo gigantesco de luta contra a exploração e precarização. Também de regulação. Além de ser uma das principais disputas geopolíticas do nosso tempo.
  4. Por fim, uma política para a economia das artes e das culturas contemporânea deve se debruçar sobre modos de fazer, se organizar, se associar, cooperar e colaborar que auxiliem o campo cultural a dar um passo além. Boas práticas e soluções se espalham pelo Brasil e pelo mundo. É preciso reconhecê-los, evidenciá-las, estimulá-las e replicá-las, por meio de sistematização, partilha e formação em torno desses conhecimentos.

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