Pornografia e miséria. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

Apesar de ter dormido bastante, Helena acordou cansada. Para ela, o descanso só existe quando dorme cedo, pouco importa o quanto durma. Dormiu tarde na noite anterior, sacramentando um sábado pasmacento. Estava um calor insuportável do lado de fora, o que mal a animava sair do frio do ar-condicionado do quarto. Quase que instintivamente, tateou pelo celular na mesa de cabeceira. Quase sem bateria. Esquecera de o colocar para carregar antes de dormir. Zapeou a esmo entre imagens e vídeos, torrando os últimos joules de bateria. 

Viu sem olhar de fato as mensagens de bom dia, daquelas ingênuas com paisagens manipuladas em Photoshop. Atualizou-se sobre os vários grupos de que participa. Em dois deles, discussão sobre assuntos que lhe eram absolutamente desinteressantes. Conhecendo os que brigavam, sabia que o assunto era desinteressante também para eles. Brigavam pela vaidade ferida em algum momento. Egos irritados no comando de dedões frenéticos a digitar longos textos repletos de erros de português. Rinha de galos virtual, com público oscilante entre o “vai lá” e o “deixa disso”. 

Noutro, diálogos completamente sem sentido. Truncados. Cheios de gírias que até fariam sentido se fosse possível saber do que, a que ou a quem se referiam. Será que alguém entende mesmo isso? Havia também memes e links de piadas colhidas aqui e acolá, repassadas como quem compartilha graça. Animaram um pouco. Mas só um pouco. Havia de todo tipo de humor. O escárnio da desgraça alheia. O cômico da ignorância. O espetáculo da resposta truculenta dada a uma pessoa chata. Tudo risível, mas também sofrível pela desgraça, ignorância e truculência. Retrato de uma sociedade em que se ri mais das pessoas do que com as pessoas. 

Deu-se conta da boca pastosa de sede. E o café? Tomaria? Dilema. Deixar ou não a cama. Tinha fome, mas não tanta. Tinha sede, mas não tanta. Alimentar-se daria trabalho. Precisaria levantar-se, ir até a cozinha e fazer algo. Ou ir até a padaria. “Não, sair não. De jeito nenhum! Hoje não!”, esconjurou. A sede seria mais fácil de resolver. O copo estava a poucos passos, em cima da escrivaninha. Mas ainda assim eram passos. Ponderou entre a sede e a preguiça. Venceu a preguiça. Beberia depois. Comeria depois. Depois. Bem depois. Depois de conseguir ânimo. Resolveu buscá-lo na TV. 

Notícias matinais. Mais bem escritas e apresentadas que nos grupos de WhatsApp. Não menos deprimentes. Artista de performance pornô aconselhava sua fã a não levar a sério sua professora, com quem discutira por causa dela. Debochou do quanto ganhava a professora se comparado ao que ela ganhava. Lição do dia: pornografia vale mais que conhecimento. 

Mudou de canal. Programa da família brasileira. Reality show. Um lutador e um artista importunaram ao vivo uma moça. Passaram a mão, forçaram a barra. Assediaram, no sentido mais literal de assediar, cercar, forçar, capturar. Coisa normal ao ponto de fazer ao vivo. Com orgulho. Na mente deles, e de boa parte do público, mulher deve ser assediada. Romance não é acordo, mas conquista, invasão, violação, penetração. Amor pornô. 

Sentiu-se ainda mais exausta. Com a noite dormida para além da hora de dormir. Com a vaidade deste mundo vão em que até a alegria parece tristeza. Com o mar de gente que na impossibilidade de viver uma vida plena de sentido, beleza ou amor, entrega-se artisticamente a espetáculos violentos e pornográficos. Miseráveis. Sozinhos. Perdidos… E o calor. Este calor infernal!… 

Virou-se para o lado. Diminuiu a temperatura do ar-condicionado. Cobriu-se como que em um casulo à espera do sono que lhe transformará em borboleta. 

Ilustração: Mihai Cauli  / Terapia Política

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