Quarentena da cegueira nacional. Por Marcio Pochmann

No Terapia Política

A passagem da segunda para a terceira década do século 21 atendeu a uma espécie de viagem às trevas. Força disso tem sido a quarentena da cegueira nacional que parece aprisionar o Brasil à mediocridade das superficialidades e de inconsistências dos discursos e práticas dominantes.

Pela obra-prima de José Saramago (1922-2010), Ensaio sobre a cegueira (1995), nota-se o quanto as pessoas podem se tornar cegas no mundo contemporâneo quando o colapso geral da sociedade sedimenta a atomização dos interesses próprios e a centralização dos projetos pessoais. Em 2019, ao completar o primeiro ano do governo Bolsonaro, o país consolidaria as consequências da primeira década econômica perdida do século 21.

Certamente, estas são consequências muito mais graves e piores do que as observadas durante os anos 1980, nos quais a expansão média anual do Produto Interno Bruto (PIB) foi de 1,5%. Entre os anos 2011 e 2020, por exemplo, a variação média anual do PIB foi de apenas 0,3%, cinco vezes inferior à verificada na década de 1980, reconhecida também como economicamente perdida.

Não bastasse a herança do passado recente, o Brasil retrocedeu mais com o mandato presidencial bolsonarista, especializado na destruição daquilo que ainda insistia em existir como espaço público. Essa destruição foi imposta pela operada desmontagem das políticas públicas e da própria soberania nacional. A pandemia da Covid-19 ecoaria com eloquência ainda maior o descompromisso governamental com a vida do seu povo, a essência da consistência existencial de uma nação.

Com 6,9 milhões de vidas perdidas no mundo pela pandemia viral, o Brasil contribuiu com 701 mil mortes. Apesar de deter a sétima população do mundo, o país ocupou o segundo posto na hierarquia de mortos pela Covid-19, somente abaixo dos Estados Unidos. Com menos de 3% da população mundial, o Brasil respondeu por 10,2% do total das mortes no mundo, ocasionada pela mais grave pandemia desde a Gripe Espanhola em 1918.

A diversidade de narrativas sobre o quotidiano de um povo profunda e continuadamente sofrido decorre do abalo significativo nas estruturas pela ruína da sociedade industrial, na queda na qualidade de vida, no rebaixamento nas expectativas de horizonte das pessoas e no colapso moral. Tudo isso parecendo indicar o espalhamento de uma quarentena da cegueira nacional em analogia ao romance de José Saramago.

Na segunda metade do século 19, liberais brasileiros cosmopolitas como Joaquim Nabuco (1849-1910) e outros também identificaram e se indignaram com uma espécie de cegueira nacional que tomava conta do país sob o período imperial (1822-1889). Como se estivessem em quarentena, os cegos da nação daquela época não percebiam o espalhamento do atraso brasileiro entrelaçado por relações de trabalho forçado, pela incapacidade das elites de se envergonharem da triste realidade e permitirem formar maioria política capaz de mudar o rumo do país em direção à “família de nações civilizadas”.

O confuso e apavorante atraso que toma conta da nação neste início do século 21 vai muito além do raquítico desempenho econômico e suas consequências funestas para a sociedade. A pobreza das ideias parece maior que o fosso da escassez material que compromete a essência do modo de vida geral, sobretudo do andar de baixo da população brasileira.

O atraso econômico se combina com a procrastinação das elites em tratar do que é crucial na definição dos destinos possivelmente alvissareiros da nação. O Brasil segue se perdendo entre correntes especializadas no aprisionamento do passado, com a desutilidade marginal do tempo comprometido, por exemplo, com o tamanho do Estado e a restrição do gasto público num país que tem dívida pública líquida relativamente reduzida em relação ao PIB e somente em moeda nacional.

Para os que não aceitam o calmante da quarentena da cegueira nacional que abunda no país, cabe lembrar e mencionar o debate que se trava junto à “família de nações civilizadas”. Temas quase distantes e imperceptíveis na agenda do Brasil seguem às vezes intactos como a democracia, o autoritarismo e o futuro da governança diante da inovação e transformação digital, a competição e soberania nacional em nuvem, a política com robôs auxiliares e as mudanças no equilíbrio de poder, o sentido da miragem, metaverso e realidade ampliada para a sociedade, a manipulação proposital dos genomas e seus impactos demográficos, entre muitos outros.

Em discordância com a quarentena da cegueira nacional, o blog Terapia Política se insurgiu há três anos completados agora. Ousando ser diariamente o espaço de ideias e discussão sobre ameaças ao sistema democrático e alternativas e possibilidades de construção do desenvolvimento soberano, sustentável e menos desigual, o blog segue em frente, persistindo na urgência das exigências da transformação e integração do Brasil ao horizonte da “família de nações civilizadas”.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

 

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