Ao menos 30 medidas administrativas foram tomadas para avançar com demarcações até o início de maio; maioria das terras e demandas, contudo, segue com pendências
A política de “demarcação zero” implementada pelo governo de Jair Bolsonaro, que prometeu e cumpriu não demarcar nenhum centímetro de Terra Indígena (TI) parece ter, finalmente, chegado ao seu fim. A paralisia nos processos de demarcação que se arrastou ao longo dos quatro anos da última gestão se encerra com as recentes ações tomadas pelo governo Lula, que de fevereiro até início de maio tem retomado o andamento nos processos administrativos que efetuam a regularização fundiária das TIs. O passivo e os desafios, contudo, ainda são enormes.
A retomada das demarcações foi uma das promessas do presidente aos povos indígenas, quando ainda candidato ao seu terceiro mandato. Em um levantamento feito pela reportagem, do começo do ano até o início desse mês, o governo apresentou avanços nos processos administrativos de pelo menos 30 TIs.
A retomada das demarcações foi uma das promessas do presidente aos povos indígenas
O ato mais simbólico foi realizado no encerramento do 19º Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, no dia 28 de abril, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou a homologação de seis terras indígenas – as primeiras em seis anos.
Ao longo deste período, a Fundação Nacional de Povos Indígenas (Funai) criou cinco novos Grupos de Trabalho (GT) de identificação e delimitação de áreas indígenas. Os GTs são responsáveis pelos estudos multidisciplinares que resultam, ao final, no relatório que comprovará a tradicionalidade da ocupação e definirá a extensão de cada TI.
A Funai criou cinco novos Grupos de Trabalho de identificação e delimitação
Na última gestão do principal órgão indigenista do país, tal providência só se realizou sob determinação judicial. Segundo matéria publicada pela Agência Pública, dos 18 GTs criados no governo de Jair Bolsonaro, 17 só foram abertos porque ordenados pelo Judiciário.
Além dos novos GTs, foram reconstituídos e/ou alterados outros 14. A medida da atual presidenta da Funai, Joenia Wapichana – a primeira mulher indígena a presidir o órgão – foi tomada em razão das muitas medidas anti-indígenas realizadas pela Funai do governo Bolsonaro.
Além dos novos GTs, foram reconstituídos e/ou alterados outros 14
Em algumas ocasiões, Joenia tem lembrado que “muitos pareceres foram contra os povos indígenas”, o que tem exigido de sua equipe um olhar cuidadoso e uma revisão apurada de todos os processos de demarcação feitos durante a última gestão do órgão indigenista. A maior parte das alterações dos GTs tem a ver com a inclusão ou a substituição de algum membro do grupo.
Durante uma das fases mais tenebrosas e anti-indígenas da Funai, quando presidida por Marcelo Augusto Xavier da Silva entre os anos de 2019 e 2022, muitos GTs foram constituídos por profissionais sem experiência ou qualificação técnica para coordenar ou realizar os estudos.
“Muitos pareceres foram contra os povos indígenas”
Nesses casos, integrantes dos GTs foram substituídos por “antropólogos de confiança” do então gestor que, como sabido, era alinhado a interesses ruralistas. Em outros casos, ele chegou a desfazer grupos técnicos tendo como argumento a falta de confiança, e não de competência, em seus integrantes. Xavier atuou em 2017 como assessor de deputados da bancada ruralista na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada para criminalizar organizações da sociedade civil e servidores da Funai e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Homologações
Durante o encerramento do 19º ATL, que reuniu mais de seis mil indígenas na capital federal, o presidente Lula assinou a homologação de seis TIs. Dentre elas estão a TI Uneiuxi (AM), do povo Maku Nadëb; TI Kariri-Xokó (AL), do povo de mesmo nome; TI Tremembé de Barra do Mundaú (CE), do povo Tremembé; TI Arara do Rio Amônia (AC), do povo Arara; e TI Avá-Canoeiro (GO), do povo Avá-Canoeiro.
A iniciativa é aguardada desde o período de transição do governo que, na época, listou 14 TIs que estariam prontas para homologação, isto é, sem nenhum impedimento jurídico ou administrativo para a demarcação. No entanto, oito terras ficaram de fora do primeiro conjunto de homologações, segundo a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, em decorrência da desatualização de documentos que integravam os processos.
Oito terras ficaram de fora do primeiro conjunto de homologações
No ATL, o presidente Lula disse que cumprirá com as promessas feitas durante a campanha. “Nós vamos legalizar as terras indígenas. É um processo demorado. A nossa querida ministra sabe do processo, tem que passar por muitas mãos e a gente vai ter que trabalhar muito para que a gente possa demarcar o maior número possível de terras indígenas”, argumentou o presidente.
“Não deixem de brigar, não deixem de se organizar, não tenho problema nenhum em ser cobrado. Onde me encontrarem cobrem, porque o governo existe para atender os interesses do povo e não apenas atender os interesses de uma pequena elite brasileira que tem tudo”, discursou no evento, considerado a maior mobilização indígena do país.
“Nós vamos legalizar as terras indígenas. É um processo demorado”
A cobrança solicitada pelo presidente Lula está em curso e deve ser feita não só pelos povos que ficaram de fora da lista oficial, mas pelos povos das mais de 70 TIs que, segundo o relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2021, ainda aguardam homologação.
O povo XuKuru Kariri, situado no município de Palmeira dos Índios, no estado do Alagoas, foi um dos grupos indígenas que teve a homologação de seu território excluída da lista oficial. Para uma das lideranças desse povo, que não será identificada nessa reportagem em razão da situação de conflito na qual se encontra seu território, a assinatura da homologação de sua terra não ocorreu “por um processo de articulação política das famílias oligarquias da região”, explicou.
O povo XuKuru Kariri foi um dos grupos indígenas que teve a homologação de seu território excluída da lista oficial
“A terra Xukuru Kariri não foi anunciada, apesar de não sofrer nenhum impedimento jurídico. O único problema é a interferência política das famílias oligárquicas que historicamente se contrapõem [ao povo] dentro e fora do território alagoano, que se uniram contra a demarcação do território XuKuru Kariri”, explica a liderança.
Para o secretário executivo do Conselho indigenista Missionário (Cimi), Antônio Eduardo Cerqueira, apesar da homologação das seis terras indígenas estar aquém das reivindicações dos povos indígenas, a ação foi compreendida como “um bom início”. “As homologações têm uma simbologia muito grande, porque mudam completamente a relação do governo com os povos indígenas, ou seja, o governo se abre para o diálogo e isso é que é o mais importante”, considera o secretário.
“O único problema é a interferência política das famílias oligárquicas que historicamente se contrapõem [ao povo]”
Apesar dos avanços, ele alerta para importância de se dar continuidade aos processos de regularização das terras indígenas, pois “há um represamento das demarcações”. “É necessário que o governo agilize o mais rápido possível essas demarcações e dê continuidade também ao procedimento de regularização dessas terras”, avalia.
O secretário lembra que apesar de haver vários GTs criados, há ainda mais de 40 terras indígenas que aguardam a expedição da portaria declaratória, medida que hoje está sob competência do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), antes uma atribuição do Ministério da Justiça.
“Há todo um processo que precisa ser reativado e o governo com esse ato [das homologações] dá sinais de que vai adiante”, avalia.
Relatórios e portarias de restrição
Ainda dentro do pacote de anúncios do governo feitos nos últimos meses, houve também, por parte da Funai, a publicação de dois relatórios circunstanciados de identificação e delimitação (RCID) das TIs Sawre Ba’pim, do povo Muduruku, e Krenak de Sete Salões, do povo Krenak, bem como a renovação de duas portarias de restrição das TIs Jacareúba/Katawixi e Piripkura.
A TI Sawre Ba’pim, localizada no curso médio do rio Tapajós, no município de Itaituba (PA), foi delimitada com 150,3 mil hectares. O território atende a uma antiga reivindicação do povo Munduruku na região, constantemente ameaçada por grandes projetos de infraestrura, como usinas hidrelétricas, ferrovias e portos.
O território atende a uma antiga reivindicação do povo Munduruku na região, constantemente ameaçada por grandes projetos de infraestrura
Em Minas Gerais, a TI Krenak de Sete Salões foi identificada e delimitada com 16,6 mil hectares na região do Rio Doce. A publicação do relatório, também assinado pela presidente da Funai, Joenia Wapichana, atende uma decisão judicial obtida pelo Ministério Público Federal (MPF) no âmbito de uma ação de reparação por danos causados ao povo Krenak pela Ditadura Militar.
As duas novas portarias de restrição de ingresso em áreas ocupadas por indígenas em isolamento voluntário foram publicadas pela Funai no dia 10 de março e trazem uma novidade importante: elas não possuem um prazo de validade restrito, como vinha acontecendo até então.
As duas novas portarias de restrição não possuem um prazo de validade restrito, como vinha acontecendo até então
Sob o governo Bolsonaro, portarias de restrição venceram e deixaram de ser renovadas, deixando povos em isolamento voluntário totalmente desprotegidos, ou tiveram sua validade protelada por curtos períodos.
“Essas portarias trazem uma novidade boa e óbvia”, avalia Francisco Guenter Loebens, da Equipe de Apoio aos Povos Indígenas Livres (Eapil) do Cimi. “Elas valem até a homologação da demarcação da terra indígena. Ou seja, as portarias são válidas até que estas terras indígenas estejam protegidas pela demarcação”.
“As portarias são válidas até que estas terras indígenas estejam protegidas pela demarcação”
A portaria da TI Jacareúba/Katawixi, no Amazonas, estava vencida desde dezembro de 2021, e a TI Piripkura, em Mato Grosso, teve duas renovações pontuais, de apenas seis meses, em março e setembro de 2022. Essa política foi definida pela Eapil, na época, como uma “aposta no extermínio dos povos indígenas isolados para premiar os invasores de suas terras”.
No caso da TI Piripkura, a renovação da portaria de restrição foi acompanhada também pela abertura do GT de identificação e delimitação da área – medida que também atende a uma decisão em ação judicial do MPF.
Outras providências
O anúncio sobre a autorização para abertura do concurso da Funai feito, na última terça-feira (02), pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) também se soma à política de destravamento dos processos de demarcação do atual governo. A realização do concurso destinará mais de 500 vagas à reestruturação da entidade, que desde 2016 não realiza processo seletivo para ampliação e renovação de seus quadros técnicos.
De acordo com a matéria publicada pela Agência Pública, a Funai conta, desde 2012, com apenas 12 servidores na Coordenação-Geral de Delimitação e Identificação (CGID), setor responsável por realizar os estudos e análises dos processos de identificação e delimitação de terras reivindicadas e por responder as contestações aos processos demarcatórios.
A Funai conta, desde 2012, com apenas 12 servidores na Coordenação-Geral de Delimitação e Identificação
O número de servidores se mostra parco diante das 143 terras indígenas que, segundo o relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2021, ainda esperam ser identificadas. Isto é, encontram-se no planejamento de identificação e delimitação da Funai, com GTs já constituídos, mas parados. A insuficiência de recursos financeiros e humanos da instituição é um dos motivos da paralisia, que pode ser amenizada com a incorporação de novos servidores.
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Terceiro dia de atividade do 19º Acampamento Terra Livre (ATL) realizado entre os dias 24 e 28 de abril de 2023. Foto: Verônica Holanda/Cimi