Empresas cúmplices da ditadura: “É preciso fazer das informações um ato de justiça”

Trabalho da Caaf/Unifesp coordenado por Edson Teles revela como empresas violaram direitos no regime de exceção

Por Thiago Domenici, Agência Pública

Empresas como Petrobras, Fiat, Companhia Docas de Santos, Itaipu, Josapar, Paranapanema, Cobrasma, Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Aracruz e Folha de S.Paulo podem estar ligadas a algum tipo de violação de direitos durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985).

Pelo menos é o que indicam os resultados do projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”, que, coordenado por Edson Teles e com participação de 55 pesquisadores de universidades brasileiras, se tornará público em breve e no qual a Agência Pública se debruçou para publicar uma série de reportagens que se inicia hoje.

Teles, que é professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e lidera o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), explica nesta entrevista exclusiva que o amplo trabalho é fruto de uma parceria com o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP).

O trabalho foi iniciado a partir de um processo vitorioso em 2020, num acordo extrajudicial envolvendo outra empresa, a Volkswagen, que firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com pagamento de cerca de R$ 36 milhões destinados à reparação individual das vítimas e seus familiares na ditadura — com parte dos recursos destinada a projetos de memória e reparação, caso do projeto de pesquisa citado acima.

Segundo Teles, mesmo com o TAC da Volkswagen, nunca existiu nenhuma condenação, nem de empresa nem de empresário por participação na ditadura no Brasil. “Acionar o direito à verdade, à memória e, no caso da pesquisa, também à justiça, mostra que não basta a gente ter acesso à memória e à verdade e não fazer disso um ato de reparação”, diz Teles, ele mesmo e sua família vítimas da ditadura militar. A seguir, os principais trechos da conversa.

Você é o coordenador de um projeto cujo objetivo é apontar a responsabilização de empresas por violações de direitos durante a ditadura. Queria que você explicasse o que é o projeto, quem está envolvido e o que se pretende.

Esse projeto surge a partir de uma demanda ampla, uma demanda histórica. Na Comissão Nacional da Verdade [CNV] se levantou o problema inicialmente da relação empresarial-militar na ditadura. Mas por uma série de questões, como tempo curto e falta de estrutura da CNV, esse tema não foi desenvolvido amplamente. Então, se criou uma demanda.

Em 2020, essa demanda foi ampliada com o Termo de Ajustamento de Conduta [TAC] da Volkswagen com o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Estado de São Paulo e o Ministério Público do Trabalho. Havia uma série de denúncias de violações contra a Volkswagen, que tinham uma quantidade razoável de comprovação material e testemunhos de que tinha ocorrido violência dentro da fábrica da empresa, além da participação da Volks na polícia política da ditadura, no Dops [Departamento de Ordem Política e Social] perseguição de trabalhadores.

Desde cedo, os trabalhadores da Volkswagen se organizaram numa associação de vítimas que procuraram o Ministério Público Federal. Diante de denúncias recebidas, o MPF financiou uma pesquisa só sobre a Volkswagen. Nesse meio tempo, esse pesquisador teve acesso a um outro pesquisador que estava procurando violações de direito da Volkswagen da Alemanha, onde fica a sede, e esse pesquisador encontrou o arquivo sobre a relação da empresa com a ditadura no Brasil.

Então, esse caso fez com que aquilo que tinha sido previamente apurado na CNV se materializasse. E foi o estopim que disparou todas as conversas que foram gerar esse acordo do Ministério Público com a Caa/Unifesp para a pesquisa atual de novas empresas investigadas.

Depois da Volkswagen é que veio a ideia de investigar mais empresas?

Isso. Houve a ideia a partir do valor acordado pelo TAC Volkswagen de que uma porcentagem fosse direcionada a atividades de memória sobre as violações de direitos na ditadura. E o Caaf/Unifesp já vinha realizando um trabalho de levantamento forense de violação de direitos durante a ditadura, especialmente a partir do caso da vala de Perus, em São Paulo, de onde foram retirados, em 1990, 1049 sacos com ossos humanos.

A gente recebeu um montante a partir desse TAC, destinado a desenvolver um laboratório genético para identificação humana de pessoas desaparecidas por violações de direitos e a realizar a pesquisa de dez outras empresas, mais ou menos nos moldes da pesquisa que gerou o TAC Volkswagen.

A Lei da Anistia não abarca empresas, então vocês criaram um caminho possível de reparação desde que existam condições para que essas empresas sejam responsabilizadas pelo que fizeram. É isso?

Acredito que essa é a estratégia do caso brasileiro. Por que não empresários e empresas? Para não cair no problema da Lei da Anistia. A Lei da Anistia é direcionada a indivíduos. E, ainda que seja uma interpretação que a gente critique, ela tem sido utilizada pelo sistema de justiça nesse sentido. Agora, o caso das empresas não tem anistia e, quando se junta a ideia de graves violações de direitos humanos, se torna imprescritível.

A ideia, desde sempre, não era ser só uma pesquisa acadêmica?

Acordamos que não seria uma pesquisa acadêmica exclusivamente, mas uma pesquisa que tinha por objetivo reunir elementos, indícios e provas para que o MP pudesse abrir ações judiciais, inquéritos ou procedimentos administrativos contra essas empresas. Vale lembrar que não fomos nós que decidimos os dez casos, foi o Ministério Público que elaborou essa lista a partir de indícios que já tinham chegado a eles por denúncias. E o objetivo não é simplesmente contar a história, né? O objetivo do projeto é também reunir provas com documentos e testemunhos. A gente já tinha a experiência da Volkswagen e sabia que esses elementos poderiam levar os casos à Justiça.

E foi feito um edital para esse trabalho, tudo está público?

Sim. Esse acordo do Ministério Público Federal deu à gente, Caaf/Unifesp, a coordenação do projeto, a elaboração de metodologia, e foi feita a contratação de dez pesquisadores principais por edital, um pesquisador principal para cada uma das empresas. E cada um desses pesquisadores é de uma instituição de ensino superior, de uma universidade brasileira, quase a totalidade de universidades públicas. Cada um desses pesquisadores recebeu financiamento e contratou nas suas universidades bolsistas que trabalharam em suas equipes — cerca de 55 pesquisadores para os dez casos.

Existe um conjunto probatório suficiente para se criar ações judiciais contra essas dez empresas e caminhos possíveis para se chegar, por exemplo, a TACs?

O principal ator para fazer esse encaminhamento é o Ministério Público Federal. Claro que a gente gostaria que fosse além dos TACs, mas isso depende de uma série de fatores. Segundo a nossa Constituição, qualquer um dos atores pode pegar esses relatórios finais e abrir uma ação contra a empresa. Uma associação de vítimas, por exemplo, pode tomar essa medida. Nós não temos o completo entendimento de onde é o limite: se existem elementos para uma ação ou não, mas, certamente, em parte das empresas nós temos as comprovações de violações de direitos no relatório. Em outras empresas, nós temos fortes indícios. E em uma ou outra a gente tem algum indício.

A questão do TAC é uma questão de escolha estratégica. Não é ausência de comprovação. Obviamente que o TAC sairia antes do que uma sentença final na justiça.

Vai se tornar público, em breve, os relatórios finais referente à pesquisa de cada uma das dez empresas. Gostaria que você explicasse do que são compostos esses relatórios finais. O que eles terão em comum? 

Todos os relatórios têm uma estrutura similar. Todos eles apresentam um histórico da relação da empresa com a ditadura e, a depender dessa relação, se ressaltam ou benefícios econômicos ou participação em processos repressivos. Uma segunda parte é a descrição das violações cometidas, que são feitas não com base em um levantamento penal, e sim com base em um enquadramento de direitos humanos a partir do direito internacional sobre o que são violações.

Uma parte deste item violações são os danos cometidos: que dano se gerou a partir dessas violações; você pode ter, por exemplo, o ataque a uma população indígena e entender qual é esse dano não só naquele momento, mas como isso perdurou ou não com o efeito dessa violação. Uma parte mais sigilosa são as vítimas, a listagem das vítimas e dos possíveis responsáveis, né? Essa parte não estará no item público da divulgação do relatório e servirá ao MPF para as ações.

E, por fim, o trabalho estrutural, um dos objetivos que a gente colocou já desde o início é montar uma metodologia. Como é que a gente faz a apuração de violações de direitos por parte de um ente que não é um indivíduo, não é o Estado. Esse ente privado num cenário em que acesso a arquivos é bem difícil, em que testemunhas muitas vezes estão numa situação precária ou temerária de dar o seu testemunho. Em que o Estado não tem o interesse direto, às vezes não tem interesse algum para que isso seja apurado. Então, o desenvolvimento de uma metodologia foi um item também à parte, porque a gente acredita, primeiro, que há outras empresas a serem investigadas em relação ao período da ditadura e, depois, infelizmente, algo que a gente identificou é que parte dessas violações continua a ocorrer hoje em dia. Não é algo que terminou com o fim da ditadura.

Você poderia explicar um pouco mais esse esse último ponto?

Como setores do Estado, junto com as empresas, trataram de destruir os direitos trabalhistas, por exemplo. Isso é algo que se repete. A gente viu, nos últimos quatro, seis anos no Brasil, um ataque a direitos trabalhistas. Um outro setor que a gente viu muito essa continuidade é no ataque ao meio ambiente e às populações tradicionais. Pega uma mineradora, uma empresa do agronegócio, a disputa pela terra gerou violações a direitos a essas populações e, por consequência, ao meio ambiente.

Os pesquisadores procuraram essas empresas? Quais foram as dificuldades?

Bom, a dificuldade foi extrema, mas o discurso sobre ela é atenuado. O que eu quero dizer? Quando você chega na empresa privada, eles falam: “Nós não temos mais arquivos sobre esse período. Então nós não vamos abrir porque não temos”. De antemão, isso já é dito, então corta-se qualquer acesso, no caso das empresas privadas.

No caso das empresas estatais, tem uma situação mais grave. Em geral, essas empresas passaram os arquivos para arquivos públicos. Só que, quando você se dirige aos arquivos públicos, esses documentos ou não estão organizados, e isso se torna um empecilho para o acesso aos documentos, ou eles sumiram. Então, não se sabe onde foram cedidos, para qual arquivo público. Não foi incomum a gente chegar em arquivo público e encontrar documentos dentro de caixas não catalogadas, não classificadas, e isso gera uma uma grande dificuldade. Algo que nós temos certeza hoje sobre o período da ditadura, que se falava muito anos atrás que os arquivos da ditadura foram abertos, é que é uma grande farsa.

A gente percebe muito claramente que eles estão inacessíveis ao público. Só que, no caso das estatais, não é por negação, porque foram destruídos, mas porque eles foram colocados num limbo da desorganização completa. Então você não consegue localizar e nem identificá-los. E há também o caso das ex-estatais que foram privatizadas.

Aí há uma reiterada negativa dessas empresas, porque elas usam como justificativa o fato de que não são mais aquela empresa e não têm mais domínio nem obrigação sobre o que fizeram.

Já ouvi algumas vezes a expressão “ditadura-empresarial-militar”. As circunstâncias dessa colaboração das empresas têm viés econômico, têm viés ideológico?

O principal motivo foi econômico. O segundo maior motivo foi o político, antes do ideológico. Os trabalhadores, até o golpe de 1964, tinham uma forte organização social, e, mesmo após 64 e até 68, você ainda vê grandes greves acontecendo no país. Essa organização político-sindical era um problema para essas empresas obterem seus benefícios econômicos, seus lucros, suas expansões. Elas tinham que dar conta desse direito trabalhista e dessa organização sindical. A ditadura colaborou com as empresas na destruição da organização dos trabalhadores. Agora, tem uma parte menor, que é a ideológica, na chamada guerra contra o comunismo.

De que forma esse direito à memória e à verdade que o Brasil tanto busca e pouco encontrou em relação às empresas é importante? 

É fundamental. Acionar o direito à verdade, à memória e, no caso da nossa pesquisa, também à justiça, mostra que não basta a gente ter acesso à memória e à verdade e não fazer disso um ato de reparação. O acesso a essas histórias é fundamental pra gente entender o que nós somos enquanto país, enquanto sociedade, o que nós somos enquanto estado de direito, na medida em que, na transição da ditadura para a democracia, isso não foi abordado e essas relações permaneceram. Agora, insisto, só vai ter efeito se a gente juntar o direito à memória e à verdade com o direito à justiça. É preciso fazer dessas informações um ato de justiça. Mas a minha expectativa é bem positiva. Além da minha experiência pessoal, nossa experiência coletiva é quase zero ato de justiça em relação à ditadura, né?

Além da Volkswagen e das dez empresas que vão ter seus relatórios publicados, há outras empresas que serão investigadas?

A gente tem um segundo convênio com o Ministério Público Federal que abriu mais três pesquisas sobre outras três empresas. A Belgo-Mineira [hoje ArcelorMittal] e Mannesmann [hoje Vallourec], metalúrgicas lá de Minas, e a Embraer, que é da aviação do Vale do Paraíba. Além das três empresas, nós também abrimos quatro outras pesquisas que nós chamamos de transversais. Então, é uma pesquisa sobre o ataque a povos indígenas, outra sobre o ataque à questão de gênero, uma terceira sobre a questão racial em empresas e uma quarta sobre como a Justiça do Trabalho reagiu às denúncias de violação dos direitos. A gente tem esses quatro transversais e mais três empresas. O trabalho termina no primeiro semestre do ano que vem.

Imagem: Amanda Miranda/Agência Pública

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