Para lideranças indígenas e apoiadores da causa, aprovação do marco temporal representa genocídio dos povos e territórios

No segundo dia de acampamento, em Brasília, indígenas, representantes de órgãos públicos e advogados debatem tese do marco temporal 

Cimi

No segundo dia do Acampamento da Mobilização Nacional Contra o Marco Temporal – 6 de junho, véspera da retomada do julgamento do caso de repercussão geral sobre direitos originários –, cerca de duas mil lideranças indígenas acompanharam, na tenda principal do acampamento, debates sobre questões territoriais, garantia de direitos e proposições que tramitam nos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo.

A programação contou com a realização de plenária, seminário, análise de conjuntura e um ato em apoio aos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas. O Seminário sobre Direito Territorial e Inconstitucionalidade do Marco Temporal abriu as atividades do dia.

Participaram da ocasião lideranças indígenas; assessores jurídicos de organizações que atuam junto aos povos originários; Eliana Torelly, integrante da 6ª Câmara  – Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (MPF); André Carneiro Leão, Defensor Público Federal e presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH); Joenia Wapichana, presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai); e a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL/MG).

Presente no palco da tenda principal, Cristiane Baré, assessora jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), afirmou que a tese do marco temporal, se aprovada, “vai mexer com toda a nossa vida, com os territórios de todo o Brasil”.

“O marco temporal é uma tese política que vem para barrar as questões de demarcações dos nossos territórios, uma tese trazida pela bancada ruralista, pelo agronegócio, pelos fazendeiros para tentar legalizar a entrada nos territórios indígenas, uma tese de genocídio para as populações indígenas”, disse Cristiane.

“Uma tese de genocídio para as populações indígenas”

A assessora da Coiab reforçou, ainda, a importância de “rechaçar a tese inconstitucional do marco temporal pela vida do nosso povo, do nosso território”. “O território, para nós, não é algo abstrato. Nós somos o território, nós somos as florestas, nós somos o bioma. Um não vive sem o outro. Os seres que vivem nesse território também são seres de importância. É a nossa cosmovisão. Para nós, os rios têm vida, a floresta tem vida, e são esses seres que a gente tem que proteger”, finalizou.

“Nós somos o território, nós somos as florestas, nós somos o bioma”

O Projeto de Lei (PL) 490/2007  – agora no Senado Federal sob a numeração PL 2903/2023 – também foi pautado no seminário. A proposição legislativa foi aprovada na última semana, por 283 votos a 155, pela Câmara dos Deputados. O PL tem como finalidade inviabilizar, na prática, a demarcação dos territórios indígenas por meio da aplicação do marco temporal.

Contudo, sua gravidade “vai muito além do marco temporal”, afirmou Eliana Torelly, procuradora da 6ª Câmara do MPF, que enfatizou a necessidade do movimento indígena “ficar bastante vigilante”.

Para ela, o projeto aprovado na Câmara não só limita direitos originários por meio do marco temporal, como também retira uma série de outros direitos constitucionalmente garantidos. “O PL transforma o processo de demarcação de terras indígenas em um processo muito complicado”, argumenta.

“O PL transforma o processo de demarcação de terras indígenas em um processo muito complicado”

“A aprovação desse projeto do Senado vai ser algo muito perigoso para os processos de demarcação de terras indígenas. Não é coincidência que tão próxima tenha sido a votação do PL 490 e, agora, na pauta o marco temporal no STF”, disse a procuradora.

A ameaça investida contra o povo Tapayuna, do Mato Grosso, no período da ditadura militar, foi um dos exemplos dos perigos impostos pelo marco temporal. Para Renan Sotto Mayor, Defensor Público Federal que acompanha o caso que envolve o direito territorial deste povo,“o argumento [do marco temporal] é político, não jurídico. Não faz sentido usar esse marco temporal”.

“O povo Tapayuna, do Mato Grosso, na ditadura militar, foi removido de seu território e colocado compulsoriamente no parque do Xingu. O Estado brasileiro praticou um crime, diversos indígenas morreram, houve quase um etnocídio durante a ditadura militar e o povo Tapayuna e diversos outros povos sofreram”, explicou.

“Em 1988, o povo Tapayuna não estava no território deles. Hoje tramita no Mato Grosso uma ação possessória para demarcar o território Tapayuna. Se a tese do marco temporal for aprovada, o povo Tapayuna sequer vai poder estar em seu território,um território que foi retirado pelo Estado na ditadura militar”, completou.

Análise de conjuntura

Na parte da tarde, Alessandra Korap, liderança indígena do povo Munduruku; Eloy Terena, secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas (MPI); Paulino Montejo, assessor político da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib); e Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib, analisaram as principais medidas que tratam da pauta indígena e que ameaçam seus direitos territoriais.

A Medida Provisória (MP) 1154, o PL 490/2007, a MP da Mata Atlântica e o projeto da Ferrogrão foram destacados como as ações mais preocupantes para os povos indígenas. Na ocasião, os membros da plenária lembraram da importância de manter a mobilização junto ao Senado em razão do PL 490, que aguarda análise da Casa, mas sobretudo, no STF, que julgará o fundamento jurídico da tese do marco temporal.

Para Alessandra Korap, “a briga é com os deputados, com os senadores, com os prefeitos, vereadores, porque são eles que têm a caneta e estão assinando a nossa morte. São eles que estão assinando para nós sermos expulsos do nosso território”, explica.

“São eles que têm a caneta e estão assinando a nossa morte”

O dia foi encerrado com um ato em apoio aos Ministérios do Meio Ambiente (MMA) e dos Povos Indígenas (MPI), que com a aprovação da MP 1154, tiveram suas atribuições reduzidas. A medida, aprovada na semana anterior, retirou do MPI a prerrogativa das demarcações das terras e do MMA, a gestão do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e dos recursos hídricos.

Povo Xokleng participa de marcha contra o marco temporal, em Brasília. Foto: Mita Xipaya/Coiab

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