Medicamentos oferecem boas perspectivas para o tratamento de aids, mas interesses da Big Pharma bloqueiam distribuição equitativa e sustentável pelo SUS. Em carta de entidades ao ministério da Saúde, a solução: licenciamento compulsório
por Guilherme Arruda, em Outra Saúde
Diversas medidas tomadas no curso do enfrentamento à epidemia da aids no Brasil são reconhecidas internacionalmente como êxitos históricos – em especial as ligadas à política de medicamentos. Da Lei 9.313/96, que estipula a distribuição gratuita de remédios para pessoas portadoras do vírus HIV, ao licenciamento compulsório do efavirenz em 2007, passando pela quebra das patentes de diversas medicações em 2001, o Estado brasileiro em geral trilhou o acertado caminho de garantir a chegada dos medicamentos ao SUS a preços razoáveis, beneficiando tanto a população quanto o próprio sistema de saúde.
Porém, com o desenvolvimento acelerado das pesquisas – e a fome das grandes farmacêuticas em lucrar ao máximo com seus produtos –, o surgimento de novos medicamentos contra o HIV é constante. Junto disso, cresce para as instituições brasileiras o desafio de identificar quais deles podem ser realmente eficazes e acessíveis para uso no país. Remédios como o dolutegravir e o cabotegravir, como vem noticiando o Outra Saúde, são as principais drogas a se tornarem objeto desses debates nos últimos anos.
Visando a incorporação do dolutegravir ao SUS, um grupo de entidades enviou no mês passado uma carta ao ministério da Saúde reivindicando o licenciamento compulsório do medicamento, isto é, a suspensão do direito de exclusividade da multinacional que o desenvolveu. O documento é assinado pelo Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), pela Associação Brasileira Interdisciplinar de aids (Abia) e pela Articulação Nacional de Luta contra a Aids (ANAIDS).
Susana van der Ploeg, coordenadora do GTPI, conversou com Outra Saúde sobre o requerimento enviado ao ministério e avaliou as perspectivas de emprego do dolutegravir e do cabotegravir no Brasil para os próximos anos.
Dolutegravir: uma questão de soberania
Distribuído no Brasil desde 2017, o dolutegravir foi desenvolvido pela ViiV, uma joint venture entre as gigantes do ramo farmacêutico Pfizer e GSK. Em 2020, durante o governo Bolsonaro, o INPI concedeu sua patente à empresa sem a anuência material da Anvisa, processo que o GTPI entende como ilegal. A partir disso, a farmacêutica estrangeira tem se movimentado para impedir a fabricação de genéricos do medicamento no país, abusando de seu poder de monopólio.
A história é ainda mais intrincada porque, como membros da Abia já contaram ao Outra Saúde em janeiro, a ViiV trabalha nos bastidores para estender ainda mais a sua patente. Em um processo que corre em segredo de Justiça, a empresa busca impedir o ministério da Saúde de comprar o dolutegravir do Laboratório Farmacêutico Miguel Arraes (Lafepe), do governo do Estado de Pernambuco, que já produz o medicamento por meio de uma Parceria de Desenvolvimento Produtivo (PDP) com um laboratório nacional. É uma flagrante sabotagem ao desenvolvimento do complexo industrial da saúde, que o governo Lula 3 alega ser uma de suas prioridades.
Na missiva, o GTPI se põe à disposição para oferecer os subsídios técnicos que fundamentem um licenciamento compulsório do medicamento, por entender que a atual situação viola o direito fundamental à Saúde garantido pela Constituição. Para o grupo, são diversas as razões que poderiam fundamentar o pedido: a soberania sanitária, para que o Brasil não dependa de uma farmacêutica privada estrangeira para garantir o direito à Saúde de seus cidadãos; a coordenação de políticas públicas, para que o Estado não inviabilize a PDP que ele mesmo firmou; e mesmo a redução de preços, já que, segundo estimativa oferecida por Susana, a produção do Lafepe poderia ser comprada por R$1,00 a menos cada unidade em um universo de 180 milhões de comprimidos comprados anualmente.
A coordenadora do GTPI aponta que, sem o licenciamento compulsório, será difícil dar sustentabilidade à política de distribuição do dolutegravir em um país onde já cerca de 460 mil pessoas o utilizam com regularidade. Porém, o ministério da Saúde segue sem responder à carta, mesmo um mês depois de tê-la recebido e confirmado o recebimento. “Por qual motivo, a gente não sabe”, diz a advogada.
Enquanto no Brasil a querela entre o interesse público e o lucro segue sem definição, no último mês a Colômbia resolveu dar um passo à frente. O governo do presidente Gustavo Petro, que luta para efetivar sua promessa de criar um sistema de saúde similar ao SUS para os colombianos, publicou no dia 2/6 uma resolução que dá início aos estudos para o licenciamento compulsório do dolutegravir.
“O documento [do governo colombiano] declara que o medicamento é de interesse público, esse é o mesmo argumento que usamos aqui no Brasil”, explicou Susana. É possível – e desejável – que o avanço dos trâmites na Colômbia estimule maior energia no processo brasileiro.
Cabotegravir: uma questão de cálculo
De desenvolvimento ainda mais recente, o cabotegravir se destacou por ser considerado uma das terapias de profilaxia pré-exposição, ou PrEP, mais eficazes na prevenção do HIV. De aplicação injetável, seus efeitos duram por meses. Por contraste, o Truvada – PrEP mais comum no Brasil hoje –, é um comprimido que precisa ser tomado todos os dias.
O registro do cabotegravir no Brasil foi aprovado pela Anvisa no último dia 5 de junho. Para ser incorporado ao SUS, ele ainda precisará passar pelo crivo do CONITEC, que analisa o custo, a viabilidade e o benefício desse medicamento aqui no Brasil.
A despeito de sua eficácia, Susana avalia que “para garantir a exequibilidade da incorporação, é preciso um preço mais justo para esse tratamento no Brasil”. A experiência estadunidense oferece um parâmetro de comparação: “o custo anual desse medicamento para tratar um único paciente nos Estados Unidos é de 22 mil dólares. Esse preço é impraticável no Brasil, seria impossível de ser incorporado. Assim ele não poderá ser distribuído para todos aqueles que queiram se prevenir do HIV”, opina.
Para completar, a ViiV, que também produz o cabotegravir, tomou uma outra atitude insólita. Depois de ter testado o medicamento aqui, a empresa decidiu não incluir o Brasil na lista de 90 países em que decidiu licenciá-lo voluntariamente. Repete-se um velho padrão colonialista. Nações como a nossa servem para conferir a eficácia das drogas, mas não para receber seus benefícios. Em parte, isso acontece porque “o Brasil traz uma perspectiva de mercado excelente para a indústria farmacêutica”, aponta Susana.
Na hipótese de um licenciamento compulsório da droga, o cenário se alteraria completamente. Em primeiro lugar, claro, porque seu custo seria drasticamente reduzido. Mas também porque sua efetividade seria um grande trunfo para ampliar a adesão ao tratamento, e consequentemente proteger mais pessoas – é mais fácil garantir que os interessados na PrEP recebam uma injeção a cada dois meses do que assegurar que tomem um comprimido todos os dias por um longo período.
Um cenário complexo, mas com boas perspectivas
A posição das autoridades, hoje, é dúbia quanto ao licenciamento compulsório dos medicamentos. Mas com a pressão de movimentos e entidades científicas por uma ação decidida por parte do governo, pode estar no horizonte um cenário em que os medicamentos eficazes contra o HIV cheguem ao Brasil garantindo não apenas saúde, como também desenvolvimento e soberania nacional. “A licença compulsória é uma medida legal, justa e eficaz para garantir o acesso à saúde, qualidade de vida, justiça social”, argumenta Susana.
“A gente tem uma equipe fabulosa dentro do ministério da Saúde, especialmente dentro do Departamento de HIV. O que a gente espera, como básico, é o compromisso do Estado brasileiro em garantir o acesso – e ele tem que ser garantido visando também a sustentabilidade do SUS”, concluiu a coordenadora do GTPI.