Proteção do meio ambiente não pode ameaçar existência dos povos tradicionais

Luta de pescadores contra uma lei criada em 2017, sem diálogo, instala dupla polêmica em Vitória

Por Fernanda Couzemenco, Século Diário

A proteção do meio ambiente não pode ameaçar a existência de povos e comunidades tradicionais. Esse é um princípio ainda muito negligenciado no Brasil e no Espírito Santo. Vide a arrastada discussão política e jurídica a respeito do Marco Temporal para demarcação de terras indígenas ou, em âmbito estadual, a criminalização dos pescadores artesanais que atuam na cidade de Vitória.

No caso nacional – que inclui repercussões nefastas também nos territórios Tupinikim e Guarani do Estado – surpreende que esse novo ataque aos povos originários ocorra em paralelo ao acirramento das mobilizações para enfrentar a crise climática e num momento em que a Ciência já acumula vasta comprovação da importância primordial da proteção dos territórios indígenas para a proteção das florestas e a contenção das mudanças climáticas e seus efeitos. Ainda assim, defensores da causa indígena são perseguidos, dentro do próprio Congresso Nacional, e mesmo assassinados, como ocorreu com Bruno e Dom na Amazônia, há um ano.

No exemplo capixaba, chama atenção o fato de que comunidade tradicional atacada em nome da proteção da fauna e da flora – pescadores tradicionais são considerados comunidade tradicional pela Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário – exerça uma das profissões mais antigas da humanidade e que é organicamente ligada ao mar e estuários, ambientes que fazem parte da identidade da cidade-ilha de Vitória.

A pesca artesanal já estava nas porções insular e continental da Capital antes dos grandes projetos portuários e industriais se instalarem no litoral da Grande Vitória e do esgoto in natura passar a ser lançado nas águas em volumes absolutamente insustentáveis.

Esgoto, importante ressaltar, resultado da negligência histórica com o saneamento básico e com outras políticas públicas necessárias para minimizar os impactos da urbanização acelerada e desorganizada que passou a inchar a cidade a partir da década de 1960, em decorrência do êxodo rural.

A expulsão dos trabalhadores do campo, por sua vez, foi provocada pelos grandes projetos poluidores ligado ao agronegócio do eucalipto e outros monocultivos, implantados por latifundiários que se estabeleceram sobre territórios de outros povos tradicionais marginalizados e violentados, como quilombolas e camponeses, e que hoje continuam detendo o poder político e econômico, defendendo seus interesses nos legislativos municipais, estaduais e federais por meio de bancadas ruralistas, que exercem lobby agressivo sobre o Executivo e o Judiciário.

Como povos e comunidades tradicionais, é direito dos pescadores artesanais, dos indígenas, dos camponeses e dos quilombolas – para citar os mais populosos no Espírito Santo – serem consultados antes da instalação de qualquer empreendimento ou obra ou da promulgação de qualquer normativa legal. A obrigatoriedade da consulta livre, prévia, informada e de boa-fé é estabelecida na mesma OIT 169, mas é outra lei não cumprida no país.

Essa jornalista não tem notícia de que os pescadores artesanais que atuam em Vitória tenham buscado seu reconhecimento oficial como comunidade tradicional, sendo difícil precisar se e como poderia ser-lhes garantido esse direito à consulta prévia nos moldes da Convenção 169.

Independentemente dessa formalidade, é no mínimo incoerente e politicamente condenável a atitude de um legislador e de um gestor público que proíba o exercício de uma profissão tradicional sem qualquer diálogo prévio com os trabalhadores prejudicados e qualquer proposta concreta de compensação pelo dano, lançando-os a uma situação de criminalidade, conforme denunciaram os pescadores por diversas vezes.

As soluções foram sendo encontradas em outros espaços, com destaque para a proposta de pesca assistida dentro da baía de Camburi elaborada pelo Comitê Estadual de Gestão Compartilhada para o Desenvolvimento Sustentável da Pesca (Compesca), antes mesmo da proibição da pesca e da criação da Área de Proteção Ambiental (APA) Baía das Tartarugas. Levada à Prefeitura de Vitória pelo Compesca, a proposta, no entanto, vem sendo solenemente ignorada.

Em seu discurso na Câmara Municipal nessa quarta-feira (14), após mais um protesto dos pescadores contra a famigerada lei, o vereador Luiz Emanuel (sem partido) – autor da lei em 2017 e, em seguida, implementador da mesma como secretário de Meio Ambiente na gestão de Luciano Rezende (Cidadania), quando também protagonizou a criação da APA Baía das Tartarugas, em 2018 – provocou os colegas a revogarem ambas as leis, alegando que atividade dos pescadores artesanais em Camburi é predatória, de forma generalizada, e que é impossível aplicar a pesca assistida, a despeito do parecer técnico do Compesca em favor de sua implementação.

No mesmo discurso, o parlamentar atacou Século Diário e esta jornalista, reclamando ter sido ameaçado de morte em plenário por pessoas que estavam nas galerias da Casa durante a sessão defendendo a pauta da pesca artesanal, e informou a abertura de Boletim de Ocorrência sobre o caso e sua disposição de dar seguimento a todos os desdobramentos possíveis da denúncia.

De fato, o registro da ameaça não foi feito na matéria criticada pelo vereador, porque a mesma foi construída a partir de relatos que não deram tamanha gravidade às palavras direcionadas a Luiz Emanuel.

Conforme relato de Karla Coser (PT) na mesma sessão, as ameaças precisam ter uma resposta por parte da Câmara por meio da adoção de equipamentos e estratégias de segurança, como câmeras de circuito interno e mesmo revista das pessoas que adentram o plenário e as galerias. Lembrou inclusive que esse pedido é feito por ela há dois anos, devidos aos sucessivos ataques que já sofreu, mas que somente agora que um homem é vitimado, a Mesa Diretora se propõe a dar encaminhamento às ações necessárias.

Diante da dupla polêmica instalada em relação aos direitos dos pescadores e às ameaças denunciadas por Luiz Emanuel, Século Diário, como jornal de referência na pauta ambiental e o único a dar voz às comunidades por décadas silenciadas no Estado, reafirma seu compromisso com a busca da verdade – pois “ninguém é indiferente ao fato” – e com a proteção do meio ambiente, sempre em conjunto com os povos que, tradicionalmente, fazem essa defesa de forma natural, a partir de seu conhecimento e modo de vida ancestrais.

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