Brilhante Ustra e o câncer da ditadura. Por Philipp Lichterbeck

O fato de o Brasil ainda não ter lidado juridicamente com a ditadura militar permite que as metástases do autoritarismo ainda se espalhem pelo país

em DW

O Brasil gosta de se ver como uma nação tolerante e harmoniosa, como um caldeirão de culturas sul-americano, onde as pessoas mais diversas – sejam negras ou brancas, pobres ou ricas – convivem pacificamente. Essa autoimagem sempre foi mais mito que realidade, ainda que muitos brasileiros gostassem de acreditar nela.

O mito sempre serviu para as elites manterem o status quo em vigor desde os tempos coloniais, tendo ajudado a pintar a transformação social como uma ameaça. A classe média brasileira foi persuadida de que a luta por uma sociedade mais justa não levaria a uma convivência mais pacífica, mas ao tumulto. A classe política, composta em sua maioria por representantes dos interesses da classe alta, contribuiu para essa narrativa, assim como a mídia e o Judiciário. Em nome da harmonia e da paz, seria supostamente melhor não tocar em temas sensíveis.

Essa necessidade explica em parte o fato de o país até hoje não ter lidado juridicamente com os crimes da ditadura militar. Enquanto em países como Argentina e Chile, paralelamente assolados por ditaduras militares, ocorreram vários grandes processos contra membros do regime, e generais proeminentes foram até mesmo condenados à prisão perpétua, o assunto é tabu no Brasil. Prefere-se mantê-lo debaixo do tapete, para onde tem sido discretamente varrido.

Impunidade para militares

Em 1979, os militares decidiram por uma anistia geral para os crimes cometidos durante o regime. Concederam perdão aos perseguidos políticos, mas também asseguraram a impunidade para si mesmos. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou a validade da Lei da Anistia, e pedidos por sua revogação são frequentemente descritos como “revanchismo”. Um verdadeiro movimento social para abolir a lei nunca existiu.

No entanto, houve exceções, como os processos contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Entre 1970 e 1974, ele comandou o Doi-Codi, um dos maiores centros de repressão da ditadura militar. Sob Ustra, ocorreram ali ao menos 502 casos de tortura e mais de 40 assassinatos. O coronel era conhecido por seu sadismo, sendo acusado de obrigar crianças a testemunhar a tortura de seus pais, por exemplo.

É importante observar que os processos contra Ustra, que morreu em 2015, se devem ao empenho de familiares de vítimas. Sem eles, nada teria acontecido.

Em 2008, Ustra foi condenado em São Paulo pelo sequestro e tortura de Maria Amélia Teles, seu marido César e sua irmã Crimeia. Entretanto, a sentença foi apenas de cunho declaratório, ou seja, teve o propósito de que o militar fosse somente reconhecido como responsável. Ustra recorreu com base na Lei da Anistia, mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a decisão em 2014, declarando que a anistia se refere apenas a crimes, e não pode se estender a questões de natureza civil.

O caso Merlino

Em 2012, em outro processo, Ustra foi condenado a pagar R$ 50 mil à irmã e R$ 50 mil à ex-mulher do jornalista Luiz Eduardo Merlino, que foi torturado até a morte em 1971. Merlino tinha 23 anos na época. No processo, a defesa de Ustra negou a autoria das torturas e recorreu da condenação.

Em 2018, o veredicto no caso Merlino foi anulado em segunda instância. Os três juízes decidiram que o processo havia prescrito. Ao ler a decisão, tem-se a impressão de que eles estavam sob a influência do bolsonarismo. Um deles chama Ustra de “suposto torturador”, outro escreve sobre a “chamada ditadura militar” e, ignorando relatos, afirma não haver testemunhas que indiquem que Ustra participou da tortura.

Além disso, os juízes desconsideraram documentos da Comissão Nacional da Verdade que confirmaram a responsabilidade de Ustra pela morte de Merlino. Criada em 2011, a comissão mais uma vez revelou seu principal problema: o fato de suas conclusões não terem consequências legais.

Abrir velhas feridas

A versão brasileira da revisão histórica funciona da seguinte maneira: um pouco de verdade, mas, por favor, sem consequências, porque poderiam incomodar os militares. A influência ininterrupta dos militares brasileiros é desproporcional aos benefícios sociais e aos privilégios anacrônicos desfrutados pelos membros dessa pomposa instituição. Para justificar a impunidade dos militares, diz-se que velhas feridas não devem ser abertas.

Na verdade, o contrário é válido. A falta de enfrentamento do câncer da ditadura fez com que suas metástases estivessem presentes em todos os cantos do Brasil e estabelecessem suas úlceras: no aparato de segurança, no Legislativo, em uma sociedade cada vez mais armada e agressiva, na presidência de Jair Bolsonaro.

Agora familiares esperam que o STJ declare ilegal a anulação da sentença no caso Merlino. A decisão deveria ter sido anunciada nesta terça-feira (20/06), mas foi adiada. A condenação de Ustra e o pagamento das indenizações por meio de seu espólio, já que ele morreu em 2015, fariam do Brasil um pouco mais moderno e justo. Finalmente o Brasil seria um país que leva a sério as convenções internacionais assinadas por ele mesmo e que classificam a tortura como um “crime contra a humanidade” que não prescreve nem é coberto por leis de anistia.

Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria  Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

Brilhante Ustra comandou o Doi-Codi entre 1970 e 1974 (Foto: Agência Brasil/W. Dias)

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