Um em cada quatro adultos sobrevive graças à Bolsa-Família e vê a democracia como miragem. Em vez de limitar concessão do benefício, governo deveria ampliá-lo – e buscar ativamente políticas de participação para quem dele depende
Por Felix Ruiz Sanches e Andre Leirner1, em Outras Palavras
A cidadania no Brasil é um fenômeno cíclico. Durante as eleições o campo politico se volta à população e procura seu voto. Fora desse período, vastas parcelas da população voltam a viver em condição subalterna de cidadania. O Brasil hoje vive um apartheid: mais de 55 milhões de pessoas vivem de transferência de renda e, fora dos períodos eleitorais, não há qualquer espaço para que exerçam sua cidadania.
Estamos falando de um em cada quatro adultos, aproximadamente, cuja possibilidade de expressão dentro do campo social está restrita ao consumo de subsistência, quando muito. São pessoas destituídas de ocupação fixa, que procuram meios de subsistência dia-a-dia, sem qualquer previsibilidade. Têm a fome como companheira recorrente e não raro deixam de comer para dar algo aos seus filhos.
Segundo Archon Fung (2003)2, numa democracia cidadãos tem oportunidade de expressar seus interesses e preferências por expedientes participativos, sejam eles eleitorais, em que elegem representantes ao governo que em retorno prestam contas aos seus eleitores, ou não eleitorais, em que cidadãos fazem o controle social de políticas e têm sua voz reconhecida por meio de expedientes participativos, como em conselhos, por exemplo.
Até 2016 alguns conselhos estavam presentes em 98% dos municípios brasileiros. Havia entre 60 e 65 mil conselhos no país: e mais conselheiros da sociedade civil do que vereadores. Essa maior diversidade e potência de mecanismos de controle social e responsabilização foram considerados, então, importantes indicativos da qualidade da democracia. Inaugurava-se uma institucionalidade social popular inédita no país. Nessa época, contudo, o numero de beneficiários de transferência de renda já totalizava quase 45 milhões de pessoas, ou seja, constituíam 1 em cada 5 pessoas adultas, aproximadamente. Em outras palavras, nessa época o apartheid apontado acima, já existia. O que aconteceu?
De lá para cá abateu-se sobre o mundo a covid. Concomitantemente testemunhamos o renascimento da extrema direita, considerada até então superada pelo Estado de direito do pós-guerra por praticamente todo pensamento politico.
O Brasil pós-pandêmico é mais pobre do que o de 2015 (PIB per capta caiu 38% no período — de 12 mil para 7,5 mil dólares), menos educado (o país caiu do 4º para o 7º decil no ranking da educação da OCDE) e mais conectado (o acesso à internet pulou de 57% para 70% da população com mais de dez anos).
A trajetória de fortalecimento democrático até então, que teve como companhia uma aurora da participação social (o que, ironicamente, não impediu o impeachment do governo que conduzia esse processo), lida hoje com uma realidade de formação de opinião publica radicalmente diferente da que se via em 2016.
O resgate da trajetória democrática enfrenta não só essa dura realidade como também o crescimento da parcela social de desvalidos, a que se denomina, formalmente, de “beneficiários da renda cidadã”. Marcio Pochman3 mostra que no período 2015-2021 a quantidade de miseráveis dobrou e a de pobres e miseráveis, juntos, cresceu 40%. Isso configura não só um retrocesso, mas uma inversão abrupta e acelerada de tendência de evolução do bem estar social.
Como diz Aldaiza Sposatti, tratar esse tema primordialmente pela sua dimensão econômico-financeira, relegando a dimensão política ao segundo plano, é abandonar a perspectiva de cidadania universal e, por consequência, a democracia. Ou melhor, é abraçar uma versão iliberal de democracia.
Interromper esse percurso de deterioração democrática, e de aprofundamento da condição de cidadania sub-normal, exige, portanto, estabelecer contato com essa população. Mas como dar representatividade a um extrato que reúne, genericamente, em uma única categoria, um em cada quatro adultos da sociedade brasileira?
Certamente é preocupante qualquer entendimento que descarte tamanha lacuna metodológica. Ao incrementar as condicionalidades de acesso ao benefício e complexificar sua distribuição, o Estado se distancia da promoção de um entendimento amplo. Ao mesmo tempo, alimenta uma concepção discriminatória e subordinativa sobre o tema, conduzida sob um debate técnico e burocratizante, cujo resultado é a corrosão de ganhos conquistados e a promoção de um debate em que a aferição de impactos reais é relegada a um segundo plano, sob manto da governabilidade. É preciso conhecer e desenhar políticas em diálogo com a realidade concreta dessas populações e universalizar o direito, não discricionalizá-lo sob medidas burocráticas de difícil aferição.
É preciso renovar o pacto com a institucionalidade social popular antes instalada e ampliá-la, de fato, para o campo popular. Uma retomada democrática que envolve reconhecer identidades cidadãs dentro dessa parcela da população, o que quer dizer reconhecer seu papel expressivo como força de trabalho e transformação social, e como tal, seus direitos civis e autodeterminação coletiva. Isso quer dizer, antes de mais nada, reconhecer quem ela é, como é composta, como se autodenomina, o que quer prioritariamente e onde reside.
Isso implica, como afirma Pedro Jacobi4, reconhecer que populações locais têm amplo conhecimento sobre suas realidades e como tal, são quem mais pode contribuir para a definição dos problemas que enfrentam e para a elaboração de respostas que precisam ser objeto de políticas públicas, pois tem conhecimento prático sobre o assunto. E essa perspectiva só é possível por meio da escuta atenta e oferta de oportunidade de protagonismo social e ampliação dos direitos de concessão do beneficio da Renda Básica por parte do Estado brasileiro.
1 Esse texto não seria possível sem a generosa contribuição e diálogo com Aldaíza Sposatti
2 Fung, Archon. “Varieties of participation in complex governance.” Public administration review 66 (2006): 66-75.
3 https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/pochmann-a-ladeira-social-no-brasil/
4 Lavalle, A. G., & Carlos, E. (2022). Desastre e Desgovernança no Rio Doce (p.13)