Com o agravamento da emergência climática, a Amazônia precisa de dinheiro – mas em seus próprios termos
Quem pode duvidar que a floresta amazônica vale mais viva do que morta? Que conjunto insano de valores considera mais valiosos troncos mortos, na horizontal, do que árvores vivas e verticais? Como pode fazer sentido econômico acabar com um dos estabilizadores climáticos mais importantes do mundo, que comporta imensas bombas de água e sistemas de refrigeração naturais, por causa de um dinheiro rápido, um hambúrguer ou uma gargantilha de ouro?
As respostas a essas três questões são os capitalistas, o capitalismo e a lógica do livre mercado. Acrescente ainda a antiga mentalidade da expansão colonial, o nacionalismo da era da ditadura, o neoliberalismo econômico e uma pitada do machismo bolsonarista, e você terá a receita perfeita para a destruição da floresta e a instabilidade climática.
Não é de estranhar que exista um ceticismo considerável sobre a onda de interesse nos créditos de carbono da Amazônia. Essencialmente, eles são uma tentativa de resolver o problema criado pelos mercados de capitais com – adivinhe! – outro mercado de capitais. Para os apoiadores, os créditos de carbono são uma maneira de canalizar mais dinheiro para as comunidades amazônicas a fim de proteger, manter e restaurar as florestas. Para os críticos, são um estratagema que permite que grandes poluidores de carbono em outros países continuem poluindo, ao mesmo tempo que incentivam uma nova onda de “grilagem verde” e evocam memórias das restrições coloniais aos direitos dos povos originários.
Nesta edição, a repórter especial Claudia Antunes faz um mergulho profundo no tema dos créditos de carbono, no estilo completo, preciso e equilibrado que marca suas investigações. Ela apresenta detalhes chocantes do comércio desordenado e desregulado, de seus impactos em terras públicas e comunidades indígenas e tradicionais – e também das alegações de defensores do mercado voluntário de que a atividade está elevando os padrões de vida em algumas áreas. Embora seja natural haver desconfiança contra um setor que foi promovido de forma entusiástica pelo desacreditado ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, a atividade precisa ser cuidadosamente regulada pelo governo – caso se prossiga com sua implementação – para garantir que faça mais bem do que mal.
É uma reportagem definitiva – aproveite, portanto, para mergulhar em uma das questões mais importantes da nossa época. A Amazônia precisa de dinheiro e de ciência, mas isso deve estar relacionado ao conhecimento tradicional e aos valores da floresta. É necessário educação, debate e responsabilidade. Conscientes disso, nas próximas semanas e meses garantiremos ferramentas aos nossos leitores, sob a forma de uma série de perguntas e respostas sobre conceitos fundamentais, entre eles créditos de carbono, REDD+, Fundo Amazônia e ponto de não retorno. Esperamos que os leitores possam se apropriar desses termos, muitas vezes esgrimidos em conversas internacionais sem esforços suficientes para escutar as opiniões das pessoas que vivem no local.
Tal distância pode levar à injustiça e à violência, como podemos ver em duas fortes reportagens nesta edição de SUMAÚMA. A primeira é um relato dos jornalistas Helena Palmquist e Rafael Moro Martins sobre a resposta do governo federal a um processo legal sobre o uso de armas químicas por militares brasileiros para limpar (leia-se exterminar) oito aldeias indígenas Waimiri Atroari que estavam no caminho da construção da rodovia BR-174 durante a ditadura empresarial-militar, na década de 1970. A segunda é uma atualização da tentativa em curso – no Congresso e nos tribunais – de negar aos povos originários o direito de demarcar seus territórios ancestrais. O voto do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes sobre o marco temporal pode abrir as portas para novos conflitos e remoções forçadas, segundo advogados dos indígenas.
SUMAÚMA também se orgulha de publicar um ensaio de Eduardo Neves, o mais respeitado arqueólogo da Amazônia, sobre a história da floresta e de seus povos, e das razões pelas quais sua interconexão, abundância e diversidade provocam uma resposta particularmente perversa por parte dos exploradores coloniais. O texto faz parte da cartilha do Micélio, programa de coformação de jovens da floresta com o qual esperamos nutrir uma nova geração de jornalistas de SUMAÚMA.
Por fim, a edição inclui minha perspectiva sobre o motivo pelo qual esses tópicos são tão urgentes e globalmente importantes. Nos últimos três meses, vários indicadores climáticos – como dados das temperaturas do oceano Atlântico Norte e da extensão do gelo marinho – entraram em território desconhecido, alarmando muitos cientistas veteranos devido ao duplo impacto do aquecimento global causado pelos humanos e do início de mais um fenômeno El Niño.
Os dados servem como um aviso para a Amazônia, que sofreu secas severas durante os dois últimos El Niño, em 1997-98 e 2015-16. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva se orgulha de ter reduzido o desmatamento em 30% desde que tomou posse, em 1º de janeiro, mas não pode dormir sobre esse resultado. A floresta nunca foi tão vulnerável. Com a proximidade da estação das queimadas criminosas, proteções extras são uma questão de urgência.
Mais uma vez, obrigado por ler até aqui, por apoiar SUMAÚMA e por espalhar a mensagem.
Jonathan Watts
Idealizador e diretor de relações internacionais de SUMAÚMA
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ÁREA DE QUEIMADA NO MUNICÍPIO DE APUÍ, AMAZONAS, NOVA FRONTEIRA EM ACELERAÇÃO DO DESMATAMENTO. FOTO: BRUNO KELLY/AMAZONIA REAL