Maconha medicinal: debate inadiável ao SUS

Remédios canábicos são caros no país. Importados, um frasco chega a custar R$ 2,4 mil. Saúde pública ainda não os oferece à população. Mas o debate avança em vários estados. E descriminalizar o cultivo será essencial para democratizá-los

Por Erika Farias, na EPSJV/Fiocruz

Letargia, náuseas, amnésia e depressão. Esses não são sintomas de uma doença, mas possíveis efeitos expressos na bula de um dos principais medicamentos para epilepsia vendidos no Brasil. As contraindicações são tão extensas, que cabe a pergunta: e se houvesse uma substância natural, capaz de diminuir crises, espasmos, entre outras doenças, sem tantos efeitos colaterais e que garantisse uma melhoria significativa na condição de vida de diversos pacientes? Pesquisas modernas apontam que existe. O produto em questão é oriundo da Cannabis sativa L. – erva que no país ficou popularmente conhecida como “maconha”.  No equilíbrio entre o estigma adquirido ao longo das últimas décadas e os resultados cada vez mais promissores, o vegetal tem garantido bem-estar e a retomada da qualidade de vida de muitos brasileiros, ainda que – até o momento – com acesso pouco democrático a boa parte da população.

A Cannabis tem centenas de moléculas que são de interesse terapêutico. Ricardo Reis, biólogo do Laboratório de Neuroquímica do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IBCCF/UFRJ), que pesquisa Cannabis juntamente com as pesquisadores Luzia Sampaio e Andrey Aguiar, explica que as principais moléculas com potencial terapêutico – e também as mais estudadas e aplicadas na medicina – são os fitocanabinoides, dentre esses, o tetrahidrocanabinol (THC), que é o princípio psicoativo e que “dá barato”, e o canabidiol (CBD). O CBD tem muitos efeitos terapêuticos, como anticonvulsivante, ansiolítico, antioxidante e anti-inflamatório, enquanto o THC se destaca pelo seu efeito analgésico, indutor do apetite e antinausea. “Os benefícios terapêuticos desses compostos já foram observados tanto em modelos animais quanto em ensaios clínicos, demonstrando-se bastante seguros e eficazes. Para além desses dois fitocanabinoides, inúmeras outras moléculas têm recebido destaque nos últimos anos”, afirma. Já o cânhamo, cultivado majoritariamente para uso industrial ou medicinal, caracteriza-se por baixo teor de THC e alto teor de CBD. “Em termos comerciais, pode ser empregado em inúmeros itens, na indústria têxtil, em roupas, em plásticos biodegradáveis, em biocombustível, alimentos e ração animal”, explica o biólogo.

Segundo o neurocientista, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE/Fiocruz), Sidarta Ribeiro, as indicações mais bem fundamentadas cientificamente da Cannabis medicinal são para epilepsia, dor neuropática, para o tratamento paliativo na oncoterapia, ou seja, para lidar com os efeitos adversos de quimioterapia ou radioterapia, e ainda em efeitos antitumorais para determinados tipos de câncer. “Também vêm aflorando, com mais e mais evidências, indicações para autismo, Parkinson, Alzheimer, Síndrome de Tourette, Doença de Crohn, entre outros”, explica. De acordo com Sidarta, um dos principais benefícios é o fato da substância não produzir overdose e levar a um grau de dependência bastante reduzido. “Ela tem poucos efeitos adversos, os grupos de risco existem, mas são conhecidos e não são a maior parte da população. Então, na verdade, é um remédio muito antigo, que não está aí por acaso. Está aí porque por muitas e muitas gerações de ancestrais nossos cultivaram variedades que são muito específicas”, conta.

Essa variedade é refletida na amplitude de razões pelas quais os pacientes buscam o tratamento, explica Ricardo Reis. “Idosos se queixam frequentemente de dores crônicas, distúrbios do sono e questões associadas direta e indiretamente com quadros de demência, como a ataxia [dificuldade ou incapacidade de manter a coordenação motora]. Por outro lado, pacientes jovens buscam a terapia canabinoide principalmente para controle de quadros de ansiedade e quadros inflamatórios, como doenças intestinais e distúrbios de pele. Existe ainda o grupo de pacientes pediátricos, cujos pais buscam a terapia canabinoide para manejo de quadros de epilepsia refratária e sintomas associados ao autismo”, diz.

Pesquisa

No dia 19 de abril, o Programa Institucional de Políticas de Drogas, Direitos Humanos e Saúde Mental da Fiocruz lançou uma nota técnica sobre as evidências científicas encontradas a respeito de tratamentos terapêuticos baseados em Cannabis e seus derivados, com o objetivo de contribuir com “subsídios da literatura científica para as instituições responsáveis por diferentes aspectos relacionados à regulamentação, pesquisa, produção, padronização, distribuição e uso da Cannabis e seus componentes para fins terapêuticos, assim como para toda a sociedade”. A coordenadora do programa e também presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Ana Paula Guljor, explicou, em entrevista à Poli, que é fundamental ampliar o debate com a sociedade sobre a questão da regulamentação da Cannabis medicinal, que já se posterga há quase uma década. Segundo a pesquisadora, a nota da Fiocruz destaca pontos fundamentais do estudo sobre o vegetal.

“Nos últimos anos, vem sendo cada vez maior o número de prescritores da Cannabis medicinal na comunidade médica. Da mesma forma, vem se obtendo conhecimentos sobre seu uso em diversas patologias. Nós sabemos que o sistema endocanabinoide ainda precisa ser melhor estudado para se analisar o resultado de pesquisas que estão em curso, mas que ainda não conseguiram um modelo randomizado aqui no Brasil, pela dificuldade do acesso ao substrato para as pesquisas”, afirma.

Um dos grandes desafios hoje é a dificuldade, seja de receber auxílio de fomento em pesquisas, seja de aprovar estudos em torno da ciência canabinoide. Ricardo Reis conta que, atualmente, os principais desafios estão na complexidade de construção de ensaios clínicos utilizando modelos clássicos e mais robustos com produtos de Cannabis. “De modo geral, a ciência e a medicina canabinoide apresentam evidências científicas, tanto de eficácia quanto de segurança, mas, de fato, podem ser obtidos dados mais robustos de pesquisa clínica, da mesma maneira como são realizadas as validações de um novo medicamento, por exemplo. A medicina canabinoide ainda tem potencial de crescimento e o uso dos fitocanabinoides, assim como canabinoides sintéticos, é promissor em diversas patologias e quadros metabólicos”, relata o pesquisador da UFRJ.

A coordenadora do Programa da Fiocruz complementa: “Quando falamos da Cannabis medicinal, precisamos discutir sobre a produção, a regulamentação do seu uso, sua distribuição, incorporação na rede do Sistema Único de Saúde [SUS] e, nesse sentido, a nota técnica da Fiocruz vem para contribuir com o diálogo social e também com a comunidade científica como um todo”.

Regulamentação

Foi apenas no fim de 2020 que a Comissão de Drogas Narcóticas das Nações Unidas (CND/ONU) retirou a Cannabis e suas resinas e derivados da lista de drogas consideradas mais perigosas, estando agora classificada como menor potencial danoso. A decisão, que atendeu à recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), foi aprovada por 27 votos contra 25, sendo o Brasil um dos países que votaram contrários à mudança.

A nova definição da ONU não alterou o poder dos países decidirem suas próprias leis sobre a substância. A legislação brasileira, por exemplo, prevê, por meio da Portaria 344/98, da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, do Ministério da Saúde (SVS/MS), o controle da planta e das substâncias derivadas da Cannabis. De acordo com essa determinação, o CBD é considerado uma substância controlada, enquanto o THC é uma substância proscrita, ou seja, proibida, assim como o próprio vegetal. Atualmente, a aquisição de medicamentos pode se dar pela importação de produtos, pela compra nas farmácias, pelas associações canábicas e por meio de um autocultivo, garantido através de um habeas corpus.

Segundo Emilio Figueiredo, advogado que atua com foco na regulação da Cannabis e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia e do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT/Ineac), o acesso aos produtos nacionais pela via das farmácias, se dá de acordo com a Resolução 327/2019 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que prevê a autorização sanitária para os produtos de Cannabis. Já o procedimento de autorização para a importação do produto pelo próprio paciente, está previsto na Resolução 660/2022. A Anvisa, em resposta à Poli, explica que a RDC 327/2019 tem este formato porque, mesmo havendo trabalhos promissores no sentido da confirmação da eficácia e segurança dos produtos derivados da Cannabis, a comprovação científica ainda não se confirmou para a grande maioria dos produtos, em variadas indicações de uso. “O objetivo da criação dessa nova categoria, baseada na regulamentação internacional, é permitir, temporariamente, a autorização de produtos fabricados por empresas autorizadas a produzir medicamentos, com certificado de Boas Práticas de Fabricação de medicamentos, com todos os requisitos de qualidade aplicáveis aos medicamentos, mas não com a obrigatoriedade de apresentar estudos completos de segurança e eficácia”, afirma a Agência. “Essas medidas representam a possibilidade da prescrição médica do uso do canabidiol como ferramenta terapêutica. Também representam uma fissura na proibição da Cannabis, já que, pela primeira vez, um dos componentes da planta deixou de ser proibido”, complementa Emilio.

Atualmente, 25 produtos de Cannabis são aprovados pela Anvisa. “A autorização pela Anvisa depende da solicitação das empresas e cumprimento dos requisitos sanitários necessários. Dessa forma, o número atual de produtos autorizados reflete o interesse do setor privado diante do mercado brasileiro. Os produtos são vendidos em farmácias e drogarias a partir da prescrição médica, com apresentação de receita do tipo B ou tipo A, a depender da concentração de THC no produto”, explica a Agência.

O que a Anvisa menciona sobre a concentração de THC se refere à norma reguladora que estabelece que nas formulações com concentração de THC de até 0,2%, o produto deverá ser prescrito por meio de receituário tipo B, com numeração fornecida pela Vigilância Sanitária local e renovação de receita em até 60 dias. “Já os produtos com concentrações de THC superiores a 0,2% só poderão ser prescritos a pacientes terminais ou que tenham esgotado as alternativas terapêuticas de tratamento”, explica a Agência. Nesse caso, o receituário para prescrição será do tipo A, com validade de 30 dias, fornecido pela Vigilância Sanitária local, padrão semelhante ao da morfina.

Já sobre a liberação do canabidiol, Sidarta Ribeiro entende que houve demora. “O CBD não produz efeitos psicoativos, ao contrário, é uma substância muito calmante, ansiolítica, que permite concentração do pensamento e facilita o sono sem causar torpor [letargia ou prostração] quando na dose adequada, ou seja, uma substância muito benigna. O fato de o CBD ser tão útil no caso das epilepsias causou uma mudança muito grande na opinião pública, tanto nos Estados Unidos, primeiramente, quanto no Brasil depois. E foi esse movimento que levou a essa mudança da visão da Anvisa”, conta o médico.

Em 2022, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma nova normativa, a resolução CFM 2.324, oito anos após a última. O novo documento autorizou a prescrição do canabidiol como terapêutica médica para o tratamento de epilepsias na infância e adolescência – ficando vedado seu uso em adultos. Ele também proibia a prescrição da Cannabis in natura para uso medicinal, bem como quaisquer outros derivados, que não o canabidiol. Diante de protestos e críticas de entidades que argumentam a comprovação científica da Cannabis para diversas doenças, o órgão suspendeu temporariamente a resolução. O neurocientista Sidarta Ribeiro foi um dos que havia questionado a determinação. “O CFM não veda, de fato, a prescrição de outros derivados, porque na farmácia há mais de seis anos existe remédio à base de CBD e THC, inclusive, mais THC que CBD. Existe um spray que combina os dois e que está disponível há cerca de seis anos. Então, na verdade, a discussão é a seguinte: a terapêutica canábica está legalizada e funcionando no Brasil há pelo menos seis anos, só que para aqueles materialmente mais ricos, que podem pagar cerca de R$ 2.400 por um frasco de 30ml”. Segundo o médico, é necessário reconhecer e regulamentar o uso do óleo da planta de amplo espectro, da planta inteira, ou seja, in natura. “A questão do autocultivo é muito importante para esse tipo de terapêutica”, diz.

A determinação do CFM, ainda que atualmente suspensa, impacta os usuários por se tratar do órgão que regulamenta os médicos, afirma Margarete Brito, fundadora e diretora da Apepi (Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis medicinal). “Ficou o recado de que eles são contra algumas coisas. Essa narrativa e esse preconceito que o CFM tem, tendem a diminuir o número de pacientes que poderiam ser beneficiados. Porque o paciente, muitas vezes, quando chega no médico e fala sobre isso, o médico tem algum preconceito e já diz: ‘não, para você não serve’”, relata.

Desde 2013, Margarete Brito tem lutado para favorecer o acesso de diversas famílias ao tratamento com Cannabis medicinal. Mãe de Sofia, que começou a ter convulsões com apenas 45 dias, Margarete foi a primeira mãe a trazer para o país um medicamento à base de Cannabis, ainda sem autorização judicial. “Eu já fazia parte de um coletivo de mães com outras crianças que tinham epilepsia, então, fui informando essas mães dessa alternativa que existia em outros países”, conta. Segundo ela, o começo desse processo, por volta de 2013, foi ainda mais complicado. “Nessa época era muito caro, custava 500 dólares, mais ou menos, uma seringa que você não sabia nem direito de onde vinha.

“A gente não tinha como dosar, como saber nada e como ainda não era regulamentado, era muito difícil trazer, pois o produto ficava retido na Anvisa”, relembra Margarete. Foi a partir de matérias em diversos veículos de comunicação do país, que noticiavam a dificuldade de mães em terem acesso a medicamentos à base de Cannabis para seus filhos, que as mudanças começaram a acontecer. Sobre o preconceito com o uso da substância para fins medicinais por parte da sociedade, ela é enfática: “Eu percebo que quando a pessoa está precisando muito, ela deixa o preconceito de lado e experimenta. O preconceito muda de acordo com a necessidade”, afirma Margarete.

Cultivo

Além da compra nas farmácias, há o acesso via cultivo doméstico pelo paciente, mas este precisa ser amparado por um salvo-conduto, uma medida judicial via habeas corpus para afastar qualquer interpretação de “clandestinidade” sobre o cultivo para fins terapêuticos, e ainda, sobre o fornecimento feito por associações de pacientes que cultivam e preparam o remédio com autorização judicial. O advogado Emilio Figueiredo explica que, no Brasil, existem pelo menos dois grandes cultivos de Cannabis que funcionam com autorização judicial, ambos realizados por associações de pacientes que demandaram o direito de cultivar, preparar o remédio e distribuir entre seus associados. A fiscalização por lei ficaria a cargo da Polícia Federal, mas acaba acontecendo mais pela Polícia Civil e Militar. “Para plantar em casa também é necessário que se tenha acompanhamento médico no tratamento da Cannabis e que se domine o cultivo da planta”, explica Emilio. A coordenadora do Programa da Fiocruz, Ana Paula, reforça. “É fundamental que se saiba que hoje no país existem diversas entidades e associações que já fazem a sua produção por meio de liminares judiciais e que, cada vez mais, vêm potencializando a sua capacidade de avaliação da qualidade dos produtos produzidos em parcerias com universidades. Alguns centros de pesquisas de referência têm conseguido essa possibilidade da produção para realizar suas pesquisas”, diz. A pesquisadora justifica sua opinião: “Hoje, sabemos que esse acesso para quem pode arcar com os custos altos da importação já está dado. Ao mesmo tempo, sabemos que, cada vez mais, essas pesquisas apontam para o quantitativo de pessoas que seriam beneficiadas com os efeitos terapêuticos da Cannabis medicinal”, pontua.

Sidarta Ribeiro reforça que é importante não apenas que os medicamentos canabinoides estejam disponíveis, mas que produtos à base de Cannabis, de vários tipos diferentes estejam disponíveis. “Sou a favor do autocultivo, da produção caseira de óleo, com devido suporte técnico de universidades, institutos, associações de pacientes ou outras organizações que possam ajudar a dosar e a fazer controle de qualidade”, afirma Sidarta. Já Emilio fala que o resultado dessas proibições é a exposição dos pacientes que fazem uso in natura da Cannabis a um risco de criminalização e danos ao tratamento realizado. “O caminho seria o reconhecimento das flores de Cannabis como uma terapêutica, bem como da inalação como via de administração pela prática clínica”, diz.

Segundo pesquisas realizadas pela Kaya Mind, uma empresa brasileira que trabalha com inteligência de mercado para o setor da Cannabis, em 2021, eram 50 mil pessoas no Brasil em tratamento com a planta. Mas, segundo o relatório, com uma regulação mais ampla, poderiam ser 6,9 milhões de pessoas. Para os especialistas, a indústria farmacêutica prejudica a ampliação de uso da Cannabis medicinal ao monetizar e tomar conta do mercado. “Não há compreensão sobre o papel importante que as associações de pacientes, que a Cannabis no SUS e que o autocultivo podem representar para a massa de pessoas que não tem um tostão para gastar nisso, mas que têm uma saúde que merece todo o respeito e que precisa de uma terapêutica canábica acessível”, afirma Sidarta.

Margarete Brito chama a atenção para a necessidade de se regulamentar o cultivo. “Pela regulamentação de hoje, a única forma de você fornecer medicamento via SUS são de produtos que a matéria prima vem lá de fora. Ou seja, você paga em dólar, não gera emprego no Brasil e não tem uma diversidade de produtos. Aqui na Apepi, por exemplo, atendemos seis mil famílias e geramos 60 empregos diretos. Todo recurso financeiro que entra, é gasto dentro do Brasil, ou seja, movimenta a economia nacional”, destaca Margarete.

Anda segundo a pesquisa realizada pela Kaya Mind, utilizando como parâmetro o número de produtos importados para fins medicinais pela Anvisa, de janeiro de 2019 a junho de 2021, o estudo calculou que o mercado atingiu entre R$ 21,9 milhões e R$ 49,9 milhões em 2020, e que, comparando com 2019, houve um crescimento expressivo. Ainda de acordo com o levantamento, a partir de uma regulamentação do cultivo nacional permitido, a projeção seria uma movimentação econômica de R$ 9,5 bilhões no quarto ano após essa mudança na lei.

Todo este imbróglio a respeito da falta de permissão para cultivo em solo brasileiro acaba prejudicando fortemente as pesquisas, visto que as informações obtidas são oriundas de países diferentes. Para Ana Paula, todos sabem que entidades e associações teriam potencial para uma produção nacional da Cannabis e, com isso, garantiriam o acesso a toda a sociedade. “O Brasil tem entidades com avanços significativos nesses estudos para a produção nacional, o que poderia ampliar de uma forma efetiva o acesso da população, principalmente da população mais pobre. Mas temos que pensar que existe toda uma relação da regulamentação com interesses que estão visando o lucro a partir de uma importação”, ressalta.

Em resposta à Poli, a Anvisa afirma que não é contrária ao cultivo de Cannabis. “O que a Agência avaliou no momento de aprovação da regulamentação atual foi que a deliberação sobre o cultivo para fins comerciais estava fora da alçada legal da agência”, explica, complementando que, recentemente, autorizou o plantio de Cannabis para fins científicos em projeto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Principais decisões judiciais no Brasil

Atualmente, há diversas iniciativas tramitando no Congresso Nacional que dispõem sobre a comercialização da Cannabis com fins medicinais. Entre elas, o PL 399/2015, que altera o art. 2º da Lei 11.343, de 2006, para viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta Cannabis Sativa em sua formulação. Outro PL, o 5295/2019, dispõe sobre a Cannabis medicinal e o cânhamo industrial e dá outras providências. Já o PL 89/2023, institui a Política Nacional de Fornecimento Gratuito de Medicamentos Formulados de Derivado Vegetal à Base de Canabidiol, em associação com outras substâncias canabinoides, incluindo o tetrahidrocanabinol, nas unidades de saúde públicas e privadas conveniadas ao SUS.

Em âmbito estadual, os entes federativos também têm se movimentado. Em abril, o governo de Sergipe sancionou a Lei nº 9.178/2023, que institui a Política Estadual de Cannabis para fins terapêuticos, medicinais, veterinários e científicos. Em janeiro de 2023, o estado de São Paulo  instituiu, por meio da Lei 17.618/2023, a política estadual de fornecimento gratuito de medicamentos formulados de derivado vegetal à base de canabidiol, em associação com outras substâncias canabinoides, incluindo o tetrahidrocanabidiol, nas unidades de saúde pública estaduais e privadas conveniadas ao SUS.

Em matéria da Agência Senado, publicada em 24 de fevereiro deste ano, o autor do PL 399, o senador Paulo Paim (PT-RS) comentou sobre o avanço da legislação no país. “Salvador, Porto Alegre, Mogi das Cruzes, Ribeirão Pires, São Paulo, Goiânia, entre outras, e estados como São Paulo, Alagoas, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Nortes, DF e Piauí, vêm avançando nessa direção por meio da discussão ou mesmo aprovação de programas ou políticas para incluir tais medicamentos entre os assegurados pelo SUS”, diz. Há também movimentações em municípios como em Búzios e Niterói, no Rio de Janeiro, entre outros.

Sobre as atuais legislações, Emílio afirma: “Uma vez regulamentadas, essas leis criarão caminhos para que os pacientes tenham acesso ao tratamento com Cannabis via sistema de saúde, de modo a diminuir a judicialização”. Em consonância com o advogado, o neurocientista Sidarta Ribeiro diz que é importante que as leis que trazem a Cannabis medicinal para o SUS não se limitem a importar o produto, mas que também regulamentem a produção nacional. “Eu espero que, quando essas leis ‘pegarem’, porque no Brasil a lei tem que ‘pegar’, não seja para o SUS importar óleo de CBD caro do exterior, mas sim para que se produza no Brasil, para que tenha custo baixo, alta qualidade e amplo espectro”, ressalta.

Nessa direção, uma decisão recente, inédita no Brasil, ampliou os horizontes. Em março de 2023, a Justiça Federal de Sergipe autorizou uma associação canábica, a Associação Brasileira de Apoio ao Cultivo e Pesquisa de Cannabis Medicinal (Salvar), a realizar o cultivo, manipulação, preparo, produção, armazenamento, transporte, dispensa e pesquisa da Cannabis sativa, conforme prescrição médica. Foi a primeira vez que um tribunal brasileiro permitiu o plantio e comercialização de flores, extratos e comestíveis de Cannabis em território nacional. Nos últimos anos, cerca de seis outras associações nacionais obtiveram autorização para a produção e comercialização de óleos medicinais à base de canabidiol, mas outras derivações da Cannabis são restritas à importação.

Caminhos

De acordo com Sidarta, é fundamental fazer a tramitação completa do PL 399/2015, que regulamenta o funcionamento das empresas e das associações de pacientes, não permitindo que essas sejam deixadas pelo meio do caminho em prol apenas das empresas, garantindo que as associações sejam contempladas e sem exigências que as inviabilizem. “Isso tem que ser feito. Chegar, aprovar em plenário, levar à sanção presidencial e depois lutar para melhorar o acesso através do SUS, isso é o que está acontecendo em vários lugares”, afirma. Ainda segundo ele, o importante é que a população tenha acesso a todas as alternativas possíveis de se cuidar. “Quer importar? Importa. Quer produzir no Brasil? Produz. Quer comprar de uma grande empresa? Compra. Quer fazer em casa? Pode também. Não quer plantar? Então vai no SUS. O SUS tem, sem precisar importar a preço de ouro, uma série de óleos que podem ser feitos no Brasil de maneira muito segura e de alta qualidade. Isso vai, inclusive, enriquecer normalmente a economia do país. Precisamos entender que esse é um movimento que já aconteceu em diversos países e estamos ficando para trás. Temos que acompanhar o desenvolvimento científico, biomédico e também os avanços na política pública sobre drogas”, conclui.

O tratamento terapêutico com a Cannabis é antigo. Segundo estudo publicado em 2019, pela revista americana Science Advances, há registros de utilização da Cannabis com fins medicinais por volta de 2.700 a.C. Já em 1464, há um dos primeiros relatos de caso do seu uso para tratamento de epilepsia, enquanto em 1839, foi publicado um artigo em jornal médico que abordava as propriedades anticonvulsionantes da Cannabis medicinal.  Foi só no início da década de 1900 que começou a ser disseminada a ideia de que o consumo da substância era ruim. De acordo com o site do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), “preocupados com o alto índice de consumo de ópio na época e as consequências desse consumo para a saúde, diversos países se reuniram pela primeira vez para discutir o problema das drogas na Comissão do Ópio de Xangai, em 1909”. A discussão ainda esbarrava em conflitos sociais, já que, consumida popularmente por minorias excluídas da sociedade na época, a Cannabis passou a ser discriminada pelas elites sociais. Um médico brasileiro, chamado Pernambuco Filho, teve grande participação na condenação da maconha. Segundo ele, no Congresso do Ópio, da Liga das Nações, em 1934, em Genebra, “a maconha era mais perigosa que o ópio”. Já em 1964, o Brasil se tornou signatário da Convenção Internacional de Nova York, que dispunha de mecanismos de controle e combate às drogas, e a erva foi incluída no contexto.  Apenas em 2020 a ONU retirou a Cannabis da lista de narcóticos perigosos, seguindo uma recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Apesar dos inúmeros avanços em pesquisas científicas que corroboram o discurso contrário, a planta permanece marginalizada até os dias de hoje.

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