Adalberto Maluf, da pasta de Meio Ambiente Urbano e Qualidade Ambiental, afirma que governo Bolsonaro paralisou ações
Por Rafael Oliveira, Agência Pública
No começo de julho, a região metropolitana de Recife (PE) ficou debaixo de chuva. O grande volume de água, muito acima da média histórica, resultou em alagamentos e deslizamentos. Em fevereiro, no litoral de São Paulo, a maior chuva já registrada no país provocou 65 mortes. Poucos anos antes, a situação era a inversa. Em 2014, São Paulo quase ficou sem água em decorrência de uma forte seca que comprometeu os reservatórios. Em comum, nenhuma das cidades tinha, e ainda não tem, a resiliência necessária para lidar com os cada vez mais frequentes eventos climáticos extremos — realidade que o governo Lula quer mudar, segundo o secretário de Meio Ambiente Urbano e Qualidade Ambiental, Adalberto Felicio Maluf Filho.
“As cidades, que são onde a maior parte da população vive, são as primeiras a ter que se preparar, a pensar em um plano de adaptação, de resiliência aos eventos extremos”, afirma Maluf. Ligada ao Ministério do Meio Ambiente, a pasta é uma das responsáveis por tentar mudar essa realidade. Ele ressalta que populações vulneráveis, como as que vivem em áreas de risco, são as mais impactadas pelos eventos extremos nas zonas urbanas. “Por isso a importância de termos planos com indicadores claros, com metas que possam ser monitoradas perante o tempo”.
Em entrevista exclusiva para a Agência Pública, Maluf destacou a importância do governo de atuar como um “polinizador”, impulsionando a transição para fontes de energia menos poluentes, a reindustrialização em bases sustentáveis e a melhoria da qualidade ambiental urbana. Na entrevista, Maluf ainda aborda os planos da secretaria para lidar com poluição urbana, resíduos sólidos, gestão de produtos químicos e ampliação de áreas verdes nas zonas urbanas. Entre as ações inéditas anunciadas pelo secretário na conversa estão a abertura de um edital de hortas urbanas e outro de rotas cicloturísticas, ligando unidades de conservação com as áreas urbanas.
Candidato a deputado federal pelo PV de São Paulo em 2022, Maluf era diretor desde 2014 da empresa chinesa BYD, do setor de energia renovável e mobilidade elétrica, onde permaneceu até ser nomeado por Marina Silva. Nesse período, também foi diretor e presidente da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE). No começo da carreira, ocupou cargos públicos na Prefeitura de São Paulo e assessorou o então secretário de Meio Ambiente do município, Eduardo Jorge (PV).
No cargo desde março, ele afirma ter assumido a pasta após “quatro anos difíceis, em que foram desfeitos todos os trabalhos”. “O antigo secretário [o cargo, que não incluía o meio ambiente urbano, era ocupado por André Luiz Felisberto França] e o antigo ministro [Ricardo Salles] decidiam tudo em gabinete. Há inúmeros projetos que não têm nem processo no sistema, que as áreas técnicas não eram envolvidas. A área técnica não podia atender telefone, responder e-mail, fazer reunião. As agendas ficaram todas paradas”, diz.
A entrevista é a quinta feita pela Pública com autoridades ambientais do governo Lula. Antes, conversamos com a secretária Nacional de Mudança do Clima, Ana Toni, com o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, com o secretário Extraordinário de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial, André Lima e com o presidente do ICMBio, Mauro Pires.
Confira abaixo a entrevista.
Qual o cenário que vocês herdaram do governo Bolsonaro em relação à gestão de meio ambiente urbano e qualidade ambiental?
Era uma situação bastante difícil, porque o antigo secretário e o antigo ministro decidiam tudo em gabinete. Inúmeros projetos que não têm nem processo no sistema, as áreas técnicas não eram envolvidas, não podiam atender ao telefone, responder e-mail, fazer reunião. As agendas ficaram todas paradas. O Brasil retrocedeu muito.
Foram quatro anos difíceis, nos quais foram desfeitos todos os trabalhos. Na área de reciclagem, por exemplo, foi uma catástrofe. O antigo governo aumentou dez vezes a importação de resíduos de reciclados de 2019 a 2022. Isso fez com que o preço da venda de material reciclado caísse até 60%, dependendo do material. Isso impactou demais as cooperativas, que hoje estão muito deficitárias. Eles destruíram muitas políticas que vinham sendo construídas. Então é um trabalho difícil, de reconstrução, para que depois a gente possa criar uma agenda um pouco mais positiva.
Reportagem recente da Agência Pública mostrou que 17 das 27 capitais do Brasil não têm plano de enfrentamento às mudanças climáticas. Além disso, algumas têm planos, mas que não saem do papel. Qual é a importância de termos cidades resilientes, como tornar isso realidade e como colocar as populações vulneráveis no centro dessa política?
O mundo vive três grandes crises globais: a crise climática, a crise da perda da biodiversidade e a crise do aumento da poluição. As cidades, que são onde a maior parte da população vive, são as primeiras a ter que se preparar, a pensar em um plano de adaptação, de resiliência aos eventos extremos. É nas cidades que esses eventos devem ocorrer, inundações, deslizamento de terras, enchentes, ilhas de calor, problemas de doenças tropicais.
O Ministério do Meio Ambiente vem criando programas para ajudar as cidades a fazer seus planos de ação climática, a Secretaria [de Mudança] do Clima está fazendo a atualização do Plano Nacional de Adaptação. Estamos buscando um federalismo climático, para que todos os entes tenham planos de mitigação e adaptação mais estruturados. Muitas capitais começaram a fazer, mas ainda não têm todos os recursos orçamentários para implementar. São planos de longo, médio prazo, que envolvem desde a preparação das cidades, à renaturalização dos córregos, retirada de famílias de áreas de riscos… As mudanças climáticas impactam mais as famílias mais vulneráveis, que vivem nos lugares mais difíceis, por isso a importância de termos planos com indicadores claros, com metas que possam ser monitorados perante o tempo.
Hoje, as questões ambientais e climáticas têm atribuições em 19 ministérios, o que mostra a importância das políticas transversais. Não é só o MMA que cuida da questão climática, nós precisamos que o setor de transporte, de habitação, de desenvolvimento urbano, educação, saúde, todos estejam juntos para preparar as cidades. As que não se prepararem, correm um risco muito grande do aumento dramático dos eventos climáticos extremos, no aumento de mortes, de pessoas desalojadas.
Em uma entrevista de alguns anos atrás, você mencionou que o atraso na construção de infraestrutura para usar energia elétrica como fonte energética no Brasil devia-se à ausência de política pública. Pensando não só na eletrificação, mas na transição energética como um todo, de que forma a secretaria está atuando para mudar esse cenário?
A gente está trabalhando como polinizador, trazendo a nossa visão para os outros ministérios. Nós temos o Conselho Nacional de Desenvolvimento da Indústria, o Rota 2030 [programa federal de desenvolvimento do setor automotivo], que deve ter um decreto da segunda fase nos próximos meses. Não são pautas só do ministério. No primeiro dia do mandato Lula, metade dos decretos foram sobre meio ambiente. A nossa pauta hoje é interministerial, transversal e o nosso papel é subsidiar.
Você é crítico do processo de desindustrialização que o Brasil sofreu nos últimos anos, e da crença de que basta reduzir impostos para que a inovação aconteça, como era a política do ex-ministro da Economia Paulo Guedes. Por que é tão importante que o Estado seja um indutor?
Hoje é muito claro, pela literatura internacional sobre industrialização, que o Estado tem que ser um indutor. Mariana Mazzucato, autora de “O Estado Empreendedor”, e o “Missão Economia”, mostra muito bem que todos os países que realmente se industrializaram nos últimos cem anos [tiveram participação do Estado]. Ha-Joon Chang, economista sul-coreano, analisou que nos últimos 200 anos, desde a Revolução Industrial, um país só se industrializou quando tinha o governo coordenando, financiando, estimulando. Não tem como isso acontecer do nada, o setor privado sozinho não é inovador.
A Apple, a Boeing, a Airbus, qualquer empresa que você pensar, tiveram o governo por trás como indutor de desenvolvimento. O que a gente está fazendo é isso, articulando quais são as vocações brasileiras, quais são as áreas que o Brasil tem competência, know-how e tecnologia para se industrializar. Estamos fazendo esse mapeamento, na cadeia dos minérios estratégicos, na cadeia das renováveis, das indústrias de transformação. O nosso papel hoje é ser um apoiador dessas políticas nos outros ministérios.
De que forma a redução da pobreza e a promoção de melhores condições de habitação urbana se relacionam com o meio ambiente urbano e a melhora da qualidade ambiental?
A ministra Marina Silva pediu para que todas as políticas ambientalistas do governo sejam indutoras da redução da desigualdade e da pobreza. Para nós, a geração de empregos de qualidade, na nova indústria, é muito importante. Por isso, o ministério hoje tem um trabalho na indústria verde. Estamos atuando com o ministro Fernando Haddad [da Fazenda] na criação de uma Política Nacional de Economia Verde e Bioeconomia.
Além do foco em preparar as cidades contra os eventos extremos, que impactam os mais vulneráveis, também queremos usar os espaços urbanos para requalificação da área verde, que gera qualidade de vida, que melhora a preparação da cidade e ao mesmo tempo permite a criação de hortas urbanas, projetos de agrofloresta.
Estamos trabalhando para lançar um grande edital esse ano sobre hortas urbanas, no sentido de ajudar cidades e associações de bairro. Vamos ter hortas dentro das escolas, nas cozinhas solidárias, hortas terapêuticas. Essas hortas podem ajudar a reduzir, mitigar um pouco o impacto da fome nas grandes cidades. Hoje, são 33 milhões de brasileiros com insegurança alimentar grave. A ministra Marina vem trabalhando muito para formar uma política nacional que gere emprego. Nós temos a possibilidade de gerar mais de um milhão de empregos só na energia solar fotovoltaica até 2030.
O desmatamento é, no Brasil, o fator que mais contribui com o avanço das mudanças climáticas, mas as zonas urbanas também têm o seu papel nas emissões brasileiras. Quais são os caminhos possíveis para termos cidades mais sustentáveis e menos poluentes?
Nós estamos trabalhando muito com zoneamento ambiental, para ajudar [as prefeituras] a fazerem cidades mais compactas, que priorizem transporte não motorizado, a redução de poluentes, com mais uso do transporte público, com eletrificação do transporte, ampliação do biocombustível. Também estamos trabalhando no desenvolvimento urbano sustentável, na aproximação das políticas de habitação e desenvolvimento.
Também estamos trabalhando com o Projeto ANDUS [iniciativa de cooperação técnica entre os governos brasileiro e alemão], para termos um programa de desenvolvimento urbano sustentável. É um programa nacional que estava aqui no ministério, e o [Ricardo] Salles não quis mais. Na época, ele chegou até a mandar uma carta para a cooperação alemã, para tirar o projeto daqui. A gente resgatou [a parceria] e relançamos o programa.
Para que a gente efetive a transição energética, será necessária uma quantidade vultosa de minérios, que muitas vezes envolvem impactos socioambientais em sua extração. Estamos prontos para lidar com isso? Como aumentar a extração de minério sem gerar impactos ambientais e em comunidades como as indígenas?
É importante uma ação mais integrada do ponto de vista das empresas, dos governos, para que essa revolução seja feita em bases sustentáveis.
A bateria de lítio e cobalto é aquela que nós temos nos celulares, tablets, computadores, e também era muito usada em carros elétricos, por exemplo. Ela tinha problemas muito grandes, inicialmente se usava muito cobalto, que vinha na sua grande maioria do Congo, uma região com grandes problemas sociais e ambientais. Mas o mundo avançou muito na diversificação das fontes. Hoje, a maior parte das baterias usadas nos veículos elétricos, é de lítio fosfato de ferro, que é um minério com impactos um pouco mais fáceis de serem controlados, ou de níquel manganês. Aos poucos, o setor privado, com o apoio dos governos e da academia, vem diversificando para fugir desses minérios que são um pouco mais problemáticos.
Que outras agendas estão no radar da Secretaria de Meio Ambiente Urbano e Qualidade Ambiental?
A gente tem uma agenda de resíduos sólidos e de inclusão socioprodutiva dos catadores. Nós somos responsáveis nacionais pelos sistemas de logística reversa e estamos trabalhando para encontrar formas de remuneração efetiva dos catadores. Estamos também finalizando a regulamentação do programa de pagamentos por serviços ambientais, que coloca as cooperativas e os catadores como um serviço ambiental.
Outra pauta é a qualidade ambiental. Hoje, 17 estados não têm sistema de monitoramento automatizado do ar, dez das cidades com mais de um milhão de habitantes também não tem. A poluição urbana mata cerca de 50 mil brasileiros por ano, são mortes evitáveis. A gente quer entregar um sistema nacional de monitoramento da qualidade do ar.
Também estamos trabalhando para implementar um sistema nacional de monitoramento da qualidade da água, uma integração de todos os sistemas dos estados. Hoje, 40% do esgoto das indústrias vai direto para o rio. A área técnica nos colocou essa necessidade, era um projeto antigo, mas a antiga administração acabou não avançando.
Estamos fazendo a implementação dos acordos internacionais sobre gestão de produtos químicos no Brasil. Há uma lista enorme de produtos que o Brasil deveria estar reduzindo e regulando. Estamos recriando a Comissão Nacional de Segurança Química, que foi acabada pelo antigo governo quando eles acabaram com todos os conselhos. A gente também vai recriar o Programa de Prevenção e Resposta Rápida às Emergências Ambientais com Produtos Químicos Perigosos (P2R2), outra agenda que o antigo governo tinha abandonado.
Estamos trabalhando na Cúpula da Amazônia [que irá ocorrer em agosto, em Belém], para ter um capítulo específico sobre cidades amazônicas. No PPCDAm [Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal], pela primeira vez a gente colocou as cidades dentro do plano. Tem lá uma proposta de uma rede de monitoramento da qualidade do ar e da água das cidades amazônicas, para que essas populações possam ter uma qualidade de vida melhor. Hoje, praticamente 100% do esgoto na região amazônica é jogado in natura, quase todas as cidades tem lixões. O governo anterior criou um programa chamado “Lixão Zero 2024”, mas durante a gestão só aumentou o número de lixões. A região Norte é a mais problemática de todas.
Estamos caminhando para entregar o Sistema Nacional de Áreas Verdes Urbanas [Sinavu]. A nossa meta é ajudar os municípios, em especial as regiões metropolitanas, a criar corredores metropolitanos de biodiversidade.
Também estamos trabalhando com o tema da mobilidade sustentável, ajudando os municípios a se planejarem, com ciclovias, melhorias do transporte público. Esse ano ainda a gente deve lançar o primeiro edital sobre rotas cicloturísticas, que vai ligar grandes áreas de unidades de conservação, passando pelo ambiente urbano, por ciclovias urbanas.
A gente também está lançando um curso à distância de gestão de áreas verdes urbanas com os municípios. Fizemos um curso EAD de qualidade do ar com seis mil participantes. Existe uma demanda muito grande dos municípios pela liderança do Ministério, que ficou muito apagado [na última gestão]. Acreditamos que, dando a visão, promovendo cursos, concedendo recursos pros editais das hortas, compostagem, agrofloresta, ajudamos os municípios a se estruturar.
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Foto: Sandro Pereira