A teia que tece o Esperançar com o enfrentamento em defesa do meio ambiente

Povos e comunidades tradicionais do Maranhão unificam pautas para viver a liberdade que nasce do chão

Por Cláudia Pereira, na CPT

Povos e comunidades tradicionais do Maranhão mantêm, há mais de dez anos, organizada a luta coletiva em defesa de seus direitos. Juntos, defendem pautas para proteger o meio ambiente, que, além de garantir o sustento de milhares de famílias, preservam as diversas formas de vida. A sinergia entre os povos originários, quilombolas, pescadores e camponeses na defesa dos biomas que contempla o estado do Maranhão, inspira a luta dos povos pelo país. A Teia dos Povos e das Comunidades Tradicionais, que surgiu no estado do Maranhão, é formada por um tecido de ancestralidade, lutas, terra, água, floresta, homens e mulheres que entrelaçam a trama de sabedorias, conhecimento, transformação e esperança.

A palavra Teia vem do tear, entrelaçando fios para formar o tecido. No sentido de unir, a palavra se relaciona com a unidade e comunicação, portanto a Teia dos Povos é uma articulação de comunidades, territórios e organizações. Uma reunião que debate, defende as causas dos povos que construíram elos e formaram caminhos com o objetivo da autonomia coletiva. É a luta dos povos com o conhecimento de seus direitos e conscientes dos deveres e segmentos das representações do Estado, do que cerne os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Na mesma linha, a Teia dos Povos defende e vive a soberania e a segurança alimentar, o que vai além do significado de sobrevivência, é o verdadeiro sentido da Terra Livre.

Os povos têm a ancestralidade como fundamento, que são praticados de geração em geração, em respeito à natureza e à Mãe Terra. A forma e o cuidado às ações na natureza para plantar e colher, as sementes crioulas que são respeitadas e partilhadas para garantir o alimento, a farmácia viva que cuida e cura dos corpos e o respeito à água, que é fonte da vida.

Autonomia e protagonismo das mulheres para preservar o meio ambiente

A Teia dos Povos não é apenas dias de encontro entre os povos, é uma reunião contínua que envolve homens, mulheres, jovens e crianças que partilham experiências de cultivos, alimentos, direitos, educação e preservação da arte e cultura, sem desconectar do mundo atual. Terezinha de Jesus é quebradeira de coco babaçu e vive na região oeste do estado do Maranhão que integra o Bioma da Amazônia. Terezinha faz parte do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), um movimento que reúne os estados do Pará, Piauí, Maranhão e Tocantins, e organiza as quebradeiras de coco na promoção da autonomia.

Sentada em uma rede estendida entre duas árvores frondosas, Terezinha, que desde a infância vive a cultura do coco babaçu, sabe da importância de estar inserida na Teia dos Povos. Na época, refletia a conjuntura do ano de 2022, em que o povo retomava a luta pós pandemia da Covid-19 e enfrentava retrocessos e perdas de direitos. Ela conta que criou seus filhos com o fruto da palmeira do coco babaçu, e que participar do encontro da Teia é unificar a luta das mulheres. Em sua fala, Terezinha reivindica a preservação da palmeira e pede um basta da violência contra as mulheres.

“Participar do encontro da Teia é unificar a luta das mulheres”

Ao lado de Terezinha, a jovem Rosalva Silva Gomes, de Cidelândia (MA), fia o tear de sua história de luta e defesa da palmeira do coco babaçu. Ela, que também é artesã, descreve com forte emoção o engajamento junto a outras mulheres no enfrentamento para preservar o meio ambiente e a luta de sua comunidade. Uma trajetória semelhante à de outras mulheres quebradeiras de coco da região. A luta começou desde cedo, ainda criança.

Rosalva presenciou, ainda menina, a luta da mãe para organizar e estruturar o coletivo de mulheres e, desta forma, foi aprendendo o significado de cada luta conquistada. Junto aos passos da mãe ela soube da importância da sindicalização, da associação e que a melhor forma de luta é o coletivo. Ela integra o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu há mais de dez anos. Rosalva pertence a uma região que sofre com os impactos do agronegócio e a monocultura da plantação do eucalipto. Presente em um dos encontros da Teia dos Povos do Maranhão, ela descreveu o fortalecimento dos quilombos.

“O continuar não se dá fora do fazer, e para continuar o fazer, precisamos ver fazendo. Precisamos fazer juntos neste espaço coletivo e diverso”, afirma Rosalva, que ressalta que as mulheres quebradeiras vivem para além do ser, “é o bem viver na essência”. Ela diz, ainda, sobre a importância da palmeira do coco babaçu para o meio ambiente e a relação dos povos tradicionais com a planta que é pura vida, por esta razão as quebradeiras de coco a chamam de “mãe de leite”, ou seja, a palmeira é parte da vida de milhares de mulheres que vivem na região de transição amazônica e cerrado brasileiro.

“As mulheres quebradeiras vivem para além do ser, é o bem viver na essência”

Com lenço colorido na cabeça, ela sorri com os olhos, na camiseta branca a frase estampada chama atenção: “+ Quebradeiras + Palmeiras = Floresta em pé”. Maria do Rosário Ferreira é pertencente ao território quilombola de Sesmarias do Jardim, localizada na região norte do estado do Maranhão. O rosto que expressa sempre a alegria é também um rosto que luta pela garantia de direitos à terra e pelo espaço das mulheres na participação social e política. Rosário conta que há dez anos caminha na luta de forma organizada, junto às mulheres quebradeiras de coco babaçu.

“Nós mulheres, por muitos anos trabalhamos na roça, quebramos coco, cuidamos da casa, dos filhos, mas não sabíamos que éramos as protagonistas desta luta. Hoje sabemos que a força e a luta são das mulheres e somos nós mulheres que enfrentamos os conflitos”, desabafa Maria do Rosário.

“Hoje sabemos que a força e a luta são das mulheres e somos nós mulheres que enfrentamos os conflitos”

Rosário pertence ao movimento das quebradeiras de coco do estado do Maranhão e conta que a luta na busca do protagonismo e autonomia foi um processo difícil, sobretudo no enfrentamento ao patriarcado. Atualmente, as mulheres conquistaram espaço, mas ainda tem muito para ser conquistado.

Para ela, o auto reconhecimento como quilombolas e mulheres de luta, é importante para enfrentar a violência contra as mulheres e os conflitos nos territórios. Entre os enfrentamentos, Rosário cita o racismo e o latifúndio. Atualmente, o embate é pela titulação e regularização fundiária da comunidade que possui mais de 170 famílias. A comunidade Sesmarias do Jardim está na mesma situação de outras comunidades quilombolas do estado do Maranhão. A demora pela morosidade dos órgãos; Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e o Instituto de Colonização e Terras do Maranhão (ITERMA). Ambos são responsáveis também pelos encaminhamentos dos processos de acesso às terras dos povos e comunidades tradicionais do estado.

As comunidades tradicionais do Maranhão são as que mais têm sofrido violações nos últimos anos, sobretudo os povos indígenas. O estado está em 4º lugar no ranking de assassinatos de lideranças indígenas, como aponta o levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), apresentado no primeiro semestre de 2023. Os enfrentamentos às diversas violências nas comunidades quilombolas são diárias, como conta Rosário, que considera que a pior delas é o desmatamento ao meio ambiente.

Processo de descolonização e sentimento de pertença 

A participação dos jovens nos movimentos dos povos e comunidades tradicionais é de compromisso com as causas, algo natural que nasce da inserção de cada realidade dos povos. É comum nos processos de formação e partilhas a presença de crianças, adolescentes e jovens acompanhando e participando junto aos familiares nas ações. No contexto desta realidade, o jovem Ranieri Roseira é um dos exemplos.

Ranieri é um dos articuladores da Teia dos Povos e agente da Comissão da Pastoral Terra (CPT – MA), pertence ao território das comunidades tradicionais do sul do estado do Maranhão. Com um turbante na cabeça, colares de miçangas no pescoço e nas mãos a arte da criação de uma mandala de fios coloridos e sementes, produzida por ele,  está sempre alegre. Raniere é dinâmico e atento. Sua ancestralidade indígena e quilombola é a força do jovem, que vive a caminhada da teia. Raniere diz que os processos de construção da Teia dos Povos são de descolonização, não basta ser um povo organizado, é necessário tecer a consciência de suas origens de Povos e Comunidades Tradicionais.

“Teia é pertencimento, sentimento e a alegria também é nosso combustível para a luta”

Raniere resume o significado da Teia dos Povos que vivem o Esperançar, embora o latifúndio e o próprio Estado permaneçam cometendo perseguições e barbáries. O jovem quilombola desperta para reflexão do Bem Viver dos Povos e Comunidades Tradicionais. Muito além da luta pela conquista do direito à terra, os povos sempre souberam do pertencimento e cuidados a casa comum, a terra.

A Teia dos povos e Comunidades Tradicionais é uma luta política e vive o processo contínuo de manter suas riquezas culturais, espirituais e sobretudo a defesa e sentido da realidade de que o ser humano é parte do meio ambiente. É a simbiose que se fortalece. A terra, as florestas, as águas e todos os seres vivos não estão dissociados dos corpos dos povos tradicionais. Raniere enfatiza que, antes da luta política dos povos, o processo de descolonização é necessário e constante para o auto reconhecimento.

Povos originários tece a teia pelo direito à terra

“Nós, indígenas, estamos dizendo não ao marco temporal, essa é a nossa luta do momento”. Expressa Oscar Cotap Akroá Gamella, do território do Taquaritiua (MA), que complementa: “nós sempre estivemos aqui, se alguns de nós não está na terra é porque fomos expulsos pelos portugueses”. Cotap conta que a luta dos Povos Akraó-Gamella nos últimos anos tem sido o enfrentamento contra as violações socioambientais, inclusive do Estado com projetos de lei (PLs) sob autoria de deputados estaduais que resultou em ordens de despejos.

“Nós sempre estivemos aqui, se alguns de nós não está na terra é porque fomos expulsos pelos portugueses”

Os ataques dos grileiros também foram intensificados, mas os povos mantêm os processos de articulação e defesa do território com autonomia e sempre fortalecidos com os processos organizativos, a exemplo da Teia dos Povos. Catop diz que o povo sempre lutou pela educação, políticas públicas, demarcação das terras indígenas e pela preservação do meio ambiente. As pautas dos povos indígenas não diferem das pautas dos povos quilombolas, ribeirinhos e pescadores. Cada povo com suas especificidades, mas com uma pauta em comum, a defesa de todas as formas de vida.

“Nós, povos Akroá Gamella, brigamos por tudo. As políticas públicas só acontecerão quando tivermos o nosso território demarcado”, afirma Catop, que reforça a importância da demarcação das terras indígenas.

A soberania alimentar como garantia de direitos

A soberania alimentar na Teia dos Povos é vivenciada na prática, ao termo que foi definido no Fórum Mundial em 2001, em Cuba, sobre o direito à alimentação de qualidade. Os povos tradicionais defendem o direito ao acesso de alimentos saudáveis diariamente e de forma sustentável. Nos grandes encontros da Teia, a exemplo do 13º encontro realizado em 2022, praticamente 100% da alimentação servida foi produzida e preparada pelas comunidades tradicionais, sem interferência de alimentos processados ou com agrotóxicos. Um exemplo colocado em prática de autossuficiência, sustentabilidade e autonomia das comunidades.

Rosa Santos, pertencente ao quilombo Mucambo, que fica na região norte do estado do Maranhão, defende a agroecologia nas comunidades. Ela, que também é quebradeira de coco, conta que desde os primeiros encontros da Teia a alimentação é pauta importante, não somente para a garantia do alimento para o evento, mas para garantir a autonomia e a segurança alimentar das comunidades. Com essas ações é colocada em prática a economia solidária nos territórios. No cenário atual em que o Brasil voltou ao mapa da fome, e a Campanha da Fraternidade da Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB), que pautou a temática da fome neste ano de 2023, percebe-se que a Teia dos Povos e Comunidades dos Povos vivencia e esclarece a relação do meio ambiente e o direito à alimentação saudável.

“Quando se trouxe a pauta sobre a soberania alimentar, percebemos a transversalidade do tema que abordou saúde, gênero e a autonomia dos povos”, diz Rosa Santos.

“Percebemos a transversalidade do tema que abordou saúde, gênero e a autonomia dos povos”

Luta pela demarcação e defesa dos territórios

Dados do Caderno de Conflitos no Campo Brasil 2022, publicado no dia 17 de abril pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), apontam que o estado do Maranhão ocupa a terceira posição no país com maior índice de conflitos por terra. Em 2022, foram registrados mais de cem casos e sete mortes. Os primeiros meses  de 2023 foram marcados pela violência e conflitos de terras nos territórios tradicionais. Comunidades quilombolas, territórios indígenas e camponeses enfrentam diariamente as ameaças de empresas do agronegócio que avança com plantio de soja e eucaliptos.

Não bastasse o avanço da monocultura, violência, acusações falsas de degradação ambiental e a cooptação dos moradores das comunidades, os povos tradicionais enfrentam o Estado e as grandes empresas com seus projetos “sustentáveis” que, de modo sustentável, tem somente a palavra dita e escrita. O grande latifúndio ameaça as comunidades tradicionais e avança a cada dia destruindo parte do bioma da Amazônia sem licença ambiental. Os donos da soja, os grandes empresários são também representantes legislativos do estado do Maranhão.

Pesquisas apontam que 80% da floresta amazônica do estado do Maranhão já foi destruída. Talvez nem precise necessariamente de dados dos órgãos pesquisadores ambientais, basta ouvir os povos que gritam todos os anos denunciando as diversas violações ambientais. A Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão lutam pela demarcação e defesa de seus territórios e, sobretudo, pela preservação das formas de vida, lutam para manter a floresta em pé. Os povos são resistência e guardiões da floresta.

No primeiro semestre de 2023, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 490/2007, projeto que trata do marco temporal e a demarcação das terras indígenas. A proposição tramita, agora, no Senado Federal sob a numeração PL 2903/2023 – o projeto, além de afrontar a Constituição, é uma grande ameaça ambiental. A Teia dos Povos sabe que, para além dos termos “agro” e projetos “sustentáveis”, que esses fatores são associados aos poderes econômico e político que ignoram a diversidade, o grito dos povos e o verdadeiro sentido da vida.

“O projeto, além de afrontar a Constituição, é uma grande ameaça ambiental”

“Eles querem nos enculturar, não é um processo fácil fazer com que nos reconheçam como pertencentes do território, que nos respeitem como verdadeiros cuidadores da terra”. Afirma Maria Edivane Souza de Oriximiná– (PA). O que Maria afirma também é a confirmação das ameaças e violências que mulheres e homens vivenciam e denunciam a omissão do Estado. Há tempo que Maria do Rosário, da comunidade quilombola Sesmarias do Jardim, luta junto a dezenas de comunidades do Maranhão pela regularização dos territórios. Eles denunciam, alertam e só pedem o que é de direito para todos os povos: Terra Livre, floresta em pé e vida para todos.

“O que nós queremos é um território livre, regularizado, um território que tenha vida para todos os povos”,

manifesta a quebradeira de coco e quilombola, Maria do  Rosário.

A mensagem da teia dos povos

O antropólogo e sociólogo Igor Sousa, acompanha as comunidades tradicionais e o movimento das quebradeiras de coco babaçu do Maranhão e analisa as associações nos debates que envolvem o direito aos territórios e as discussões em torno do gênero e do meio ambiente. Igor compreende que os movimentos da Teia dos Povos propõem para além do ato de coragem: indicam possibilidades na construção de um mundo melhor.

A prática do bem viver já é uma realidade das comunidades tradicionais, embora sejam perseguidos e tenham seus direitos negados, mas a relação dos povos com a natureza e o sagrado é parte do existir e permanecer na terra.  “A teia é uma experimentação política de organização de visibilizar as práticas comunitárias e de povos e comunidades tradicionais, que não à toa, sofrem violência porque elas oferecem possibilidades de um mundo possível que vem desse lugar de vida”, afirma Igor.

“A teia é uma experimentação política de organização de visibilizar as práticas comunitárias e de povos e comunidades tradicionais”

A teia dos povos vive a prática da liberdade em razão de suas pautas que nascem do chão e são de caráter de urgência. Nesse sentido, tecer as pautas de forma unificada é a forma para enfrentar as diversas violações que os povos e comunidades sofrem diariamente. Ao mesmo tempo, a Teia ensina os povos da cidade que as pautas são comuns e que a busca pelo território e vida digna é uma luta de todos que sofrem os desmontes de direitos, agressões do capital que avançam contra os mais pobres em todo o mundo.

Na força das retomadas tecemos a nossa união

A reportagem especial é ressonância do encontro realizado em setembro de 2022.  Povos do campo, das águas, das florestas e das cidades teceram lutas para fortalecer as resistências na defesa da vida e dos territórios. Centenas de pessoas acolhidas pelas comunidades quilombolas de Santa Helena (MA) refletiram o tema “Na força das retomadas tecemos a nossa união”.

O momento de reencontro pós-período crítico da pandemia da Covid-19, proporcionou vivências únicas e partilhas que comungam com a proposta do bem viver dos povos. Do alimento fornecido aos participantes à roda de tambor no centro do terreiro, foi debatido sobre descolonização, igualdade de gênero, segurança alimentar e a violência no campo. Discussões pertinentes, práticas de libertação que ajudam a pensar sobre o conceito de terra livre.

Encontro da Teia dos Povos e das Comunidades Tradicionais do Maranhão. Foto: Fábio Costa/Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

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