A ação aponta a apropriação ilegal de terras públicas em cinco assentamentos agroextrativistas estaduais, com envolvimento de empresas e da prefeitura
por CLAUDIA ANTUNES, em Sumaúma
A Defensoria Pública do Pará entrou com uma ação civil pública contra três empresas, uma entidade privada e o município de Portel, no nordeste do estado, acusados de envolvimento num projeto de geração de créditos de carbono cuja área está parcialmente sobreposta a cinco assentamentos agroextrativistas estaduais onde vivem 1.484 famílias. A ação, protocolada em 19 de julho na Vara Agrária de Castanhal, afirma que o projeto não foi autorizado pelo governo do estado nem submetido à consulta das comunidades e equivale a uma “grilagem de terras públicas”. O documento pede que ele seja invalidado, que seus representantes sejam proibidos de entrar nos territórios afetados e que os envolvidos sejam condenados a pagar uma indenização de 5 milhões de reais por “danos morais coletivos”. O dinheiro seria empregado em programas para beneficiar as comunidades tradicionais dos Projetos Estaduais de Assentamento Agroextrativistas de Portel.
A ação, assinada pela defensora pública agrária Andreia Macedo Barreto, pede também que seja declarado nulo um decreto “ilegal e inconstitucional” assinado em novembro de 2022 pelo prefeito de Portel, Vicente de Paulo Ferreira de Oliveira, que autoriza o projeto de carbono e o considera de utilidade pública, além de prever contrapartidas para a cidade, como escolas e unidades de saúde. O decreto, por sua vez, é baseado em lei municipal aprovada em 2022 que permite que a prefeitura autorize projetos de carbono em áreas públicas, inclusive do estado. Para a Defensoria, a lei é inconstitucional. O documento afirma que “o município e seus agentes” atuaram “como parceiros” do projeto. Segundo o texto, as empresas alegaram a “suposta construção” de duas escolas municipais de ensino fundamental, mas elas “estão fora do perímetro” dos assentamentos agroextrativistas.
Em breve conversa por telefone com SUMAÚMA, o prefeito Ferreira de Oliveira, eleito pelo MDB, negou ilegalidades, alegando que não existe lei federal sobre a questão no Brasil, e disse que seu objetivo foi determinar que as empresas envolvidas no projeto de carbono fizessem “compensação social”. Ele pediu que a reportagem entrasse em contato com o procurador do município, Adilson Tenório, que informou que só se pronunciará depois de ser oficialmente notificado da ação civil pública e fazer sua “análise jurídica”.
Esta é a primeira ação que chega à Justiça depois de um estudo feito pela organização não governamental Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais que apontou irregularidades em quatro projetos de créditos de carbono em Portel. O estudo foi divulgado no fim de 2022 pela agência de notícias Intercept Brasil. No final de janeiro deste ano, depois de uma audiência pública sobre o caso realizada em Portel pelo Ministério Público do Pará, a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do estado cancelou 219 Cadastros Ambientais Rurais (CARs) e suspendeu outros 735 vinculados a contratos de carbono na cidade.
Como mostrou reportagem de SUMAÚMA, está em curso na Amazônia uma corrida de empresas pela assinatura de contratos de geração de créditos de carbono. A disputa provoca denúncias de grilagem de terras públicas e de assédio a povos indígenas e comunidades tradicionais que vivem em terras onde ficam algumas das maiores áreas conservadas da floresta amazônica. Os créditos, gerados a partir de projetos que prometem preservar a mata, são vendidos no chamado mercado voluntário – um mercado internacional que não é regulado por governos – a companhias que desejam compensar suas emissões de gases de efeito estufa.
A ação civil pública protocolada em Castanhal se refere ao projeto que leva o nome de Ribeirinho REDD+ e reivindica uma área de 199.962 hectares. REDD é a sigla de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação de florestas, um instrumento criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) que abriu a possibilidade de remuneração pela manutenção da mata ou pelo reflorestamento nos chamados “países em desenvolvimento”, como o Brasil. No mercado voluntário de carbono, os créditos gerados por projetos de REDD são em geral certificados pela empresa Verra, com sede nos Estados Unidos. O Ribeirinho REDD+ entrou com um pedido de registro na Verra em 2021, com o número 2.620, mas ainda não foi certificado. Por isso não pode vender créditos de carbono no mercado.
Em sua página de apresentação na Verra, os proponentes do Ribeirinho REDD+ dizem que pagaram para que 1.252 famílias de comunidades tradicionais obtivessem os certificados de posse da área do projeto. É uma referência ao Cadastro Ambiental Rural (CAR), um registro eletrônico autodeclaratório que é obrigatório para todos os imóveis rurais e precisa ser validado pelas autoridades. Em assentamentos agroextrativistas como os de Portel, porém, os CARs são coletivos, e não individuais. De acordo com a defensora pública Andreia Barreto, o Ribeirinho REDD+ foi baseado em 191 Cadastros Ambientais Rurais ilegais, dos quais 190 já foram cancelados e um está suspenso.
A ação afirma que os CARs irregulares estavam registrados no CNPJ da Associação dos Ribeirinhos e Moradores – uma entidade de direito privado que, ao contrário do que o nome sugere, não representa, segundo a ação civil pública, as comunidades dos cinco assentamentos agroextrativistas afetados: Deus É Fiel, Joana Peres II – Dorothy Stang, Joana Peres II – Rio Pacajá, Rio Piarim e Jacaré Puru. Na ação, a Associação dos Ribeirinhos e o Sindicato dos Produtores Rurais de Portel são descritos como proponentes do projeto de carbono, enquanto as empresas Amigos dos Ribeirinhos Assessoria Ambiental Eireli e Brazil Agfor LLC são identificadas como as implementadoras do projeto. As duas têm como sócio e administrador o empresário americano Michael Greene.
A defensora Andreia Barreto disse que, nos procedimentos de apuração dos fatos que resultaram na ação civil pública, a defesa de Greene afirmou que ele não tem envolvimento no Ribeirinho REDD+ por não aparecer como proponente no pedido de registro do projeto feito na Verra. “Mas nós identificamos que ele tem participação, seja como pessoa física, seja como pessoa jurídica”, afirmou ela. A empresa Amigos dos Ribeirinhos também é citada no decreto de utilidade pública assinado pelo prefeito de Portel, assim como a Associação dos Ribeirinhos e Moradores.
SUMAÚMA tentou entrar em contato por telefone com a Associação dos Ribeirinhos e Moradores e com o Sindicato dos Produtores Rurais de Portel, ambos com endereços na cidade paraense, mas não conseguiu. Também enviou mensagens por e-mail e por telefone para a Brazil Agfor, porém não teve confirmação de que elas haviam sido recebidas.
Segundo a ação, apesar de o projeto Ribeirinho REDD+ estar sendo investigado desde 2022, os representantes das empresas e entidades envolvidas continuam entrando nos assentamentos estaduais para “realização de inventário florestal, monitoramento e cadastramentos”. O documento afirma ainda que houve “despejo forçado das comunidades” e que “há ameaça da posse e atividade agrária exercida pelas famílias beneficiárias dos assentamentos”.
A defensora Andreia Barreto também conduz procedimentos sobre os proponentes dos outros três projetos em Portel citados no estudo do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais. Esses projetos se chamam RMDLT Portel Pará REDD, REDD+ Pacajaí e REDD Rio Anapu-Pacajá. Ao contrário do Ribeirinho REDD+, os três já conseguiram o registro na Verra. Um relatório elaborado pela Defensoria Pública paraense identificou 38 empresas que registraram imóveis nas áreas dos três projetos, das quais 13 têm Michael Greene “como sócio administrador ou representante legal dos sócios pessoas jurídicas”. Das 38 empresas, 14 aparecem como “inaptas por omissão de declarações” ou “suspensas por inconsistência cadastral” na Receita Federal. Das 50 matrículas de imóveis feitas por essas empresas, 37 já foram canceladas nos cartórios de Portel e da vizinha Breves, segundo a Defensoria Pública do Pará.
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ASSENTAMENTO AGROEXTRATIVISTA À BEIRA DO RIO PIARIM, NO PARÁ. FOTO: DEFENSORIA PÚBLICA DO PARÁ