Conheça porto nos EUA que foi palco de operação contra Salles por madeira ilegal

Porto de Savannah, na Georgia, conecta empresa britânica ao deputado Ricardo Salles, réu em ação sobre contrabando de madeira da Amazônia; entre janeiro e julho, terminal recebeu mil toneladas provenientes de exportadoras paraenses com multas milionárias do Ibama

Por Bruno Stankevicius Bassi*, em De Olho nos Ruralistas

Em janeiro de 2020, fiscais do Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos (FWS) detiveram no porto de Savannah, na Georgia, três contêineres contendo 153.597 metros cúbicos de laminados de ipê e jatobá — duas madeiras nobres da Amazônia — sob suspeita de irregularidades nos documentos de origem florestal. Com origem no porto de Vila do Conde, no Pará, as cargas pertenciam à Tradelink Madeiras Ltda., a subsidiária brasileira do grupo britânico Tradelink Wood Products.

Nas semanas seguintes à apreensão, os agentes da FWS perceberam uma proximidade incomum entre representantes da empresa e membros da superintendência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no Pará, que interveio diretamente para acelerar a liberação da carga. A Polícia Federal entrou no caso e abriu um processo de investigação que levou à Operação Akuanduba, deflagrada em abril de 2021, tendo como alvo principal Ricardo Salles, então ministro do Meio Ambiente, e Eduardo Bim, ex-presidente do Ibama. Os dois se tornaram oficialmente nesta segunda-feira (28) réus por corrupção passiva, crimes contra a flora e organização criminosa em esquema de “lavagem” de madeira. O processo corre na 4ª Vara Federal Criminal do Pará.

Nem a demissão de Salles — hoje deputado federal — nem a derrota de Jair Bolsonaro (PL) nas urnas frearam o fluxo de madeiras nativas da Amazônia rumo aos Estados Unidos.

Um levantamento inédito do De Olho nos Ruralistas mostra que, entre janeiro e julho de 2023, catorze empresas exportadoras autuadas pelo Ibama — incluindo a própria Tradelink — exportaram, juntas, 4.640,62 toneladas de madeira ao país norte-americano, a despeito do compromisso firmado em abril de 2022 pelo presidente Joe Biden em ampliar o controle ao comércio madeireiro oriundo de áreas de desmatamento recente.

Ao longo de três meses, nossa equipe analisou 791 autuações ambientais enquadradas no Artigo 47 do Decreto nº 6.514/2008, relativo ao comércio ou transporte de madeira sem licença ou com documentação irregular. As multas foram aplicadas pela superintendência regional do Ibama no Pará entre janeiro e julho de 2023. Juntas, as infrações somam R$ 18,2 milhões — cerca de 2% de todas as autuações ambientais no estado.

As exportadoras de madeira compõem um filão importante das autuações: 28% das multas aplicadas na categoria de compra e venda de madeira irregular são de empresas filiadas à Associação das Indústrias Exportadoras de Madeiras do Estado do Pará (Aimex), principal grupo de representação e lobby do setor. Juntas, as infrações alcançam R$ 5,14 milhões.

As informações foram, então, cruzadas com os dados de importação dos Estados Unidos, obtidos por meio da plataforma ImportGenius e do  Departamento do Censo dos Estados Unidos. O observatório identificou 176 operações originadas no porto de Vila do Conde, em Barcarena (PA).

Das 4.640,62 toneladas exportadas por empresas autuadas, 982 foram nacionalizadas no terminal de Savannah, na Georgia. O porto que deu origem à operação contra Ricardo Salles recebeu 41 desembarques de madeira e lidera, até o momento, as importações de chapas e perfis de árvores nativas brasileiras. Em âmbito nacional, Savannah ocupa apenas o 10º lugar entre os principais atracadouros dos Estados Unidos.

Embora o comércio madeireiro seja rastreado pelo Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais (Sinaflor), do Ibama, um estudo da Rede Simex publicado no ano passado mostrou que 41% da exploração madeireira ocorrida entre agosto de 2020 e julho de 2021 na Amazônia teve origem ilegal. No Pará, principal exportador de madeira nativa do país, 23.390 hectares foram extraídos sem autorização, afetando terras indígenas e unidades de conservação.

A GEORGIA QUE VIVE EM NOSSAS MENTES: DO PINHEIRO AO IPÊ

Imortalizada na voz de Ray Charles, a música “Georgia on my mind” evoca as paisagens naturais do Sudeste dos Estados Unidos para expressar um sentimento quase universal: a saudade da terra natal. Transformada em hino oficial do estado em 1979, a canção fala, em um de seus versos, sobre os bosques de pinheiros, um dos principais (e mais ameaçados) ecossistemas da região.

Além de seu valor simbólico, o pinheiro serviu de base para o fortalecimento da indústria madeireira da Georgia. O estado possui a maior área de florestas plantadas dos Estados Unidos e abriga algumas das maiores fabricantes e distribuidoras de produtos madeireiros do mundo. Segundo a Associação Florestal da Georgia, em 2020 o setor movimentou, sozinho, US$ 39,1 bilhões — um crescimento de 7% em relação ao último levantamento, de 2018, mesmo diante da pandemia de Covid-19. O valor corresponde ao PIB total do Pará, o décimo maior do Brasil.

Esse crescimento da indústria madeireira fez cada vez mais empresas do setor procurarem na Amazônia paraense matérias-primas alternativas ao tradicional pinheiro da Georgia, hoje ameaçado de extinção.

Dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC) mostram que o Pará respondeu, em 2022, por 13,9% das exportações brasileiras de perfis e laminados de madeira para os Estados Unidos. Ao todo, 32,8 mil toneladas — em sua maioria, de espécies nativas como o ipê (Handroanthus) — saíram do estado amazônico em direção ao mercado estadunidense. Segundo o Departamento do Censo dos Estados Unidos, pelo menos 7,5 mil toneladas foram nacionalizadas via porto de Savannah. Isto é, 23% do volume total.

Esse fluxo comercial foi diretamente beneficiado pela flexibilização nas regras para o comércio de produtos florestais imposta pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que permitiu a liberação de cargas suspeitas de irregularidades detidas no porto de Vila do Conde. Entre 2021 e 2022, enquanto outros estados sofriam os efeitos da pandemia, as exportações de madeira serrada do Pará para os Estados Unidos deram um salto de 48,6%.

TRADELINK CONCENTRA OPERAÇÕES NO PORTO DE SAVANNAH

Apesar de liderar as importações de madeira nativa de empresas autuadas pelo Ibama entre janeiro e julho de 2023, o porto de Savannah concentra poucos atores. Das 41 operações identificadas no levantamento, 29 foram enviadas pela mesma empresa: a Tradelink Madeiras Ltda, braço paraense do império madeireiro fundado por Leon Robert Welch em 1989. Com sede em Londres, o grupo possui sete escritórios de vendas, espalhados por Estados Unidos, Canadá, China, França, Portugal e África do Sul, responsáveis por comercializar a madeira produzida na Amazônia.

A partir de sua planta em Ananindeua (PA), a empresa enviou 752 toneladas de madeira para Savannah, consignados à filial estadunidense Tradelink Wood Products, com sede em Greensboro, na Carolina do Norte. O porto da Georgia é, pelo menos desde 2016, a principal base logística do grupo britânico e, em 2023, responde por metade do volume de cargas enviadas pela empresa aos Estados Unidos. Uma das principais clientes é a Lowe’s, segunda maior cadeia varejista de materiais de construção do país.

Além das operações diretas, a Tradelink Wood Products recebeu contêineres de outras duas empresas brasileiras: a Amazônia Florestal Ltda, autuada em R$ 186,5 mil, e a Laminados de Madeira do Pará Ltda, que acumula R$ 775,9 mil em multas. A descrição das faturas comerciais aponta o foco em madeiras nobres como jatobá (Hymenaea courbaril l.), cumaru (Dipteryx odorata) e muiracatiara (Astronium lecoinducke).

No Brasil, a Tradelink recebeu 24 autuações ambientais, que somam R$ 762,1 mil, colocando-a em terceiro lugar entre as exportadoras de madeira amazônica mais multadas em 2023. O histórico de infrações da empresa é ainda mais amplo.

Com base em dados do Ibama, a Polícia Federal aferiu que, até 2021, a empresa possuía pelo menos R$ 7 milhões em débitos resultantes de multas ambientais por falta de controle de sua cadeia de fornecimento.

Segundo a Repórter Brasil, a Tradelink Madeiras já comprou produtos da Bonardi da Amazônia, madeireira flagrada em 2012 com nove pessoas em situação de trabalho escravo. O grupo alegou que visitara a serraria quatro meses antes e não encontrou irregularidades. Um relatório de 2015 do Greenpeace conta que a Tradelink foi uma das empresas que compraram produtos da Madeireira Santo Antônio, que por sua vez tinha 95% de abastecimento da Agropecuária Santa Ifigênia, suspeita de esquentar madeira ilegal a partir de documentação oficial obtida de forma fraudulenta.

O relatório final da Operação Akuanduba revelou a faceta política da empresa. Conforme descrito pela Folha, em 2021, autoridades aduaneiras da Bélgica e Dinamarca relataram a integrantes da FWS dos Estados Unidos terem recebido ligações da Tradelink por meio de ramais telefônicos pertencentes à superintendência do Ibama no Pará. Ainda segundo servidores da FWS, que cooperaram com a PF na investigação, um representante da empresa afirmou, durante uma reunião, ser responsável pela indicação do superintendente Walter Mendes Magalhães Junior. Ex-policial militar, Magalhães atuou diretamente para liberar 110 metros cúbicos de jatobá e ipê serrados pertencentes à Tradelink.

Em um ofício emitido à época, o superintendente afirmou não se tratar de um privilégio ao grupo britânico, mas que ajudaria “quaisquer empresas que estiverem em contexto semelhante, não se restringindo à empresa em questão”.

FORNECEDORES DA SABRA INTERNATIONAL SOMAM R$ 230 MIL EM MULTAS

Com sede em Miami, Flórida, a Sabra International Inc é uma das principais traders de madeira dos Estados Unidos. Entre janeiro e julho de 2023, a empresa movimentou 701 toneladas originadas no porto de Vila do Conde e transbordadas no porto de Pecém, no Ceará, onde atua junto à brasileira EGL Export, do empresário Eliel Lima — que, em seu Linkedin, se define como “executivo de negócios” da Sabra. Desse total, 162 toneladas ingressaram pelo Porto de Savannah.

A principal parceira da Sabra no Brasil é a Madeireira Ideal, de quem importou 82 toneladas de decks de ipê-roxo (Handroanthus impertiginosum). Com base em Barcarena, a empresa foi autuada em 05 de abril, somando R$ 20,7 mil por transporte irregular de madeira. Na sequência, aparecem a Garibaldi Indústria e Comércio de Madeiras, com 38 toneladas comercializadas e R$ 19,2 mil em multas aplicadas em 2023, e a Exmam Exportadora, com 17 toneladas e autuações que somam R$ 91,3 mil. As três são integrantes da Aimex.

Apesar de representar uma fatia menor nos negócios da Sabra, a fornecedora Coexpa Comércio e Exportação de Produtos da Amazônia tem o maior histórico de infrações ambientais. Uma investigação da Revista Piauí, de 2022, identificou a participação da empresa na cadeia de comercialização de um lote de ipê-amarelo extraído ilegalmente da Floresta Nacional de Jamanxim e exportado para a J. Gibson Mcllvain Company, que opera no porto de Baltimore, em Maryland.

Entre janeiro e julho de 2023, a Coexpa somou dez infrações, totalizando R$ 99,2 mil. Ao todo, a empresa exportou 558 toneladas para os Estados Unidos, sendo dois terços para a J. Gibson. Segundo a revista Piauí, o proprietário da Coexpa, Bruno Atayde Leão, é réu em duas ações penais na Justiça paraense.

A Sabra, por sua vez, é citada desde 2003 como compradora de madeira ilegal: um relatório do Greenpeace, daquele ano, revelou que a importadora de Miami realizou negócios com a Madenorte S/A, apontada como responsável pela grilagem de 72 mil hectares na Amazônia paraense.

AUTUAÇÕES DO IBAMA VOLTAM A CRESCER NO GOVERNO LULA

Conforme aponta o levantamento realizado pelo De Olho nos Ruralistas, a retomada das políticas ambientais pelo novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva não conteve completamente o comércio irregular de madeira. Sob a gestão da ministra Marina Silva, o Ibama retomou as atividades de fiscalização, paralisadas durante o governo Bolsonaro: entre janeiro e julho de 2023, as autuações ambientais cresceram 147% em relação à média dos quatro anos anteriores. As apreensões de bens de infratores aumentaram em 107%.

Em junho, Lula retomou o mecanismo de conversão de multas em serviços ambientais, suspenso por Salles em 2019 para implementar um novo sistema de “conciliação” que, na prática, impediu o Estado brasileiro de recolher R$ 29 bilhões oriundos de crimes contra o ambiente.

A resposta do setor madeireiro foi rápida: representados pela Aimex, os exportadores de madeira do Pará protocolaram em março um mandado de segurança coletivo pedindo a suspensão de 3 mil processos administrativos impetrados pelo Ibama por falta de autorização de exportação (Autex) em operações realizadas entre 2018 e 2019. Na ação, a Aimex alegava que a apresentação do documento não poderia ser exigida porque um despacho do próprio Ibama, de 2020, considerou que a instituição do Sinaflor, em 2014, removia a exigência da Autex, vigente desde 2011. O pedido de liminar foi negado pelo juiz federal da 9ª Vara, José Airton de Aguiar Portela.

A Aimex é atualmente presidida pelo empresário Leandro Raul Rymsza, que já ocupou o cargo interinamente entre abril e novembro de 2021, período em que se deu a Operação Akuanduba. Um dos trechos da investigação mostra que no ano anterior, em 06 de fevereiro de 2020, ele se reuniu com o ex-presidente do Ibama, Eduardo Bim, dias antes da publicação do despacho que suspendia a exigência da Autex. Também participaram do encontro o então presidente da Aimex, Carlos Roberto Pupo, e diretores da Tradelink Madeiras, Juan Perzan, e da CRAS Agroindústria, Aldyr Foekel — todos beneficiários diretos da liberação.

Rymsza é um dos sócios da Laminados de Madeiras do Pará (Lamapa), segunda colocada entre as empresas que mais receberam multas do Ibama por comércio irregular de madeira em 2023, segundo levantamento deste observatório.

A empresa recebeu, entre janeiro e julho, 26 autuações, que somam R$ 775,9 mil. Na principal infração, lavrada em 21 de março, a Lamapa foi multada em R$ 92,3 mil por “vender 275,478 m³ de madeira serrada, sendo 66,280 m³ Cites [Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Silvestres Ameaçadas de Extinção] ou ameaçada de extinção e 209,198 m³ não Cites ou não ameaçada de extinção, sem a licença válida outorgada pelo órgão ambiental competente, visto que não houve expedição adicional de Autorização para exportação pelo Ibama”.

No mesmo período, a Lamapa exportou 50 toneladas de laminados de roxinho (Peltogyne maranhensis), madeira valorizada para a construção de móveis e pisos por sua coloração arroxeada. Os dois carregamentos, recebidos em 20 de fevereiro e 13 de junho, foram destinados à Tradelink Wood Products Ltd, braço estadunidense do grupo britânico. As cargas saíram dos portos de Manzanillo, no Panamá, e Bustamente, na Jamaica, respectivamente. A análise das faturas comerciais, no entanto, mostram que o local de origem foi o porto de Vila do Conde, no Pará.

Filho de Romualdo Rymsza — um dos fundadores da Lamapa e de sua empresa-mãe, o grupo paranaense Laminort —, Leandro ingressou na política em 2022, ao concorrer ao cargo de 2º suplente do ex-senador Flexa Ribeiro, que tentou retornar ao Congresso após perder a reeleição em 2018. Ex-presidente da Federação das Indústrias do Estado do Pará (Fiepa), Ribeiro é um dos principais lobistas do setor madeireiro junto aos governos estadual e federal e um crítico contumaz das operações do Ibama. Durante seu mandato, homenageou empresários vinculados à Aimex, como o ex-deputado Elias Salame da Silva, falecido em 2009 e que aparece na lista de 4.600 mega desmatadores compilada pelo observatório na série De Olho nos Desmatadores.

* Esta reportagem foi produzida com apoio da Earth Journalism Network, no edital Conservando Juntos

Bruno Stankevicius Bassi é repórter e coordenador de projetos do . |

Imagem principal (Divulgação/Polícia Federal): lote de madeira retida pela PF em armazém portuário

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