Seguranças armados usam drones para vigiar e denunciar sem-terra em Belo Sun e Belo Monte

Empresas criminalizam até roças de subsistência e fazem as vezes de polícia ao redor de megaobras no interior do Pará

Por Texto: Julia Dolce | Edição: Ed Wanderley, em Agência Pública

Isolados em uma área de difícil acesso, os sem-terra do Acampamento Nova Aliança contam, diariamente, com duas visitas: o transporte escolar atrasado, que sempre busca suas crianças por último, fazendo-as perder a primeira aula, e a caminhonete envelopada da Invictus, empresa de segurança patrimonial terceirizada pela mineradora canadense Belo Sun Mining Corp, que os monitora em rondas diárias feitas por seguranças ostensivamente armados.

O acampamento fica nas proximidades da Ressaca, vila quase centenária formada por garimpeiros artesanais nas margens da Volta Grande do Xingu, no município de Senador José Porfírio (PA). Os garimpeiros são organizados em cooperativa e trabalham, na sua maioria, dentro da legalidade. A região fica entre os dois barramentos da Usina Hidrelétrica de Belo Monte (Pimental e Belo Monte), no “trecho de vazão reduzida”, de onde a maior parte da água é desviada para ser acumulada no reservatório da barragem.

O Nova Aliança foi formado em junho de 2022 para impedir que uma segunda grande obra devastasse o que sobrou da região já fortemente impactada por Belo Monte. O Projeto Volta Grande, da Belo Sun, pretende ser a maior mina de ouro a céu aberto do país. O empreendimento aceleraria em proporções industriais a extração do metal feita há décadas pelos moradores da Ressaca, e de outras pequenas vilas garimpeiras das redondezas, em um filão estimado pela empresa canadense em 108 toneladas, ou R$ 3,3 bilhões em ouro. A construção da mineradora está embargada desde 2014. No dia 13 de setembro, uma decisão judicial negou um recurso da mineradora e manteve a suspensão de suas licenças ambientais estaduais.

Os cerca de 40 acampados do Nova Aliança acusam os seguranças da terceirizada de segurança patrimonial da Belo Sun de assédio, ameaça e uma vigilância constante que alimenta o processo de reintegração de posse pedido contra a empresa e deferido em maio.

A agricultora Maria Aparecida, conhecida como Cida, mora no acampamento e afirma já ter sido abordada inúmeras vezes pelos seguranças da Invictus. “Tentam barrar a gente de ir nas lagoas pescar”, afirma. Segundo ela, a empresa seria contratada para fazer “espionagem”. Isso porque o modus operandi da tercerizada consiste em fotografar ou filmar o acampamento com câmeras e drones, além de interrogar moradores da região para registrar as lideranças do Nova Aliança.

A estratégia tem se espalhado em regiões de conflito entre povos tradicionais ou pequenos agricultores e empresas concessionárias de grandes obras hidrelétricas, minerais ou mesmo do agronegócio. Ainda na Volta Grande do Xingu, ribeirinhos impactados por Belo Monte também sofrem com a vigilância e assédio judicial por parte da segurança patrimonial da Norte Energia, concessionária da hidrelétrica. A empresa, que já foi denunciada pelo Ministério Público Federal (MPF) pela morte de 30 toneladas de peixes, chega ao ponto de denunciar a abertura de roças pelos próprios ribeirinhos como crime ambiental.

Agência Pública visitou as regiões, que, de acordo com um policial entrevistado, são desprovidas de segurança pública. A reportagem registrou denúncias que indicam que empresas de segurança patrimonial têm exercido função de polícia nesses locais, chegando a deter o poder de fogo.

A segurança especulativa da Invictus

O Projeto Volta Grande não existe ainda, sequer chegou a ter sua construção iniciada. A única estrutura existente de Belo Sun no Xingu é a segurança especulativa de seu patrimônio judicialmente questionado. Dois pequenos escritórios recebem os profissionais contratados pela Invictus.

O processo de licenciamento da Belo Sun está embargado há anos. Em 2014, ações do MPF e da Defensoria Pública do Estado do Pará (DPE) apontaram a ausência de estudo sobre os impactos socioambientais da obra, além da não realização da consulta das populações indígenas locais. No entanto, em 2017, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) deu a licença de instalação para a obra. No ano seguinte, uma sentença da Justiça Federal de Altamira atendeu ao pedido do MPF e suspendeu as licenças ambientais estaduais para a mineradora. A decisão foi reiterada no último dia 13 de setembro, quando o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) negou um recurso da mineradora canadense e manteve a decisão da Justiça Federal, determinando que o licenciamento ambiental do projeto deverá ser federalizado e conduzido pelo Ibama, não pela Semas. A mineradora é questionada até mesmo pela Norte Energia, que alega que a região não suportaria mais um empreendimento dessa magnitude.

Em dezembro de 2021, porém, uma área de 2.428 hectares de terras da União, 1.439 deles parte do Projeto de Assentamento Ressaca, criado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 1999, foi repassada à Belo Sun pelo próprio órgão. O acordo também é objeto de ação da DPE e da Defensoria Pública da União, que apontam irregularidades no processo de concessão das terras e reiteram sua destinação à reforma agrária.

Antes da concessão da área, ainda em 2020 já se iniciavam os relatos de perseguição pela Invictus. Moradores de diferentes vilas da região começaram a ser impedidos pelos seguranças de adentrar áreas historicamente utilizadas para suas atividades de subsistência.

Armando*, garimpeiro e agricultor, é morador da Ressaca há 30 anos. Ele afirma ter presenciado a ação da Invictus em diversos momentos. “A gente entrava em áreas da floresta para  pegar açaí, caçar. Hoje não pode fazer nada disso.” Segundo Armando, a proibição impacta os moradores da região, que, após Belo Monte, sofrem com a redução dos peixes no Xingu.

Desde que o acampamento Nova Aliança foi estabelecido, com o objetivo de defender a destinação da área para a reforma agrária, as ações da Invictus passaram a se concentrar na vigilância dos sem-terra. Segundo Cida, os seguranças chegaram a entupir uma das privadas construídas por eles, afirmando que, se os sem-terra “teimassem” em construir outra, os seguranças “fariam do jeito deles”. Em outra ocasião, os agricultores afirmam ter encontrado uma cruz formada por galhos e fincada no caminho para o lago onde costumam pescar. “Uma ameaça, né?”, questiona a agricultura.

Cadastrada há 15 anos no Incra, Cida nunca conseguiu um lote no programa de reforma agrária. “Acredito que quase todas as pessoas que estão nessa resistência são cadastradas para ter um pedaço de terra para trabalhar, e nunca chamaram ninguém. De repente, o Incra dá esse belo presente para a Belo Sun”, resume. A agricultura teve seu barraco derrubado no início de abril, ação que ela atribui aos seguranças da Invictus.

Os seguranças da Invictus registram também a presença de automóveis na região. A equipe da Pública ouviu que, assim que chegasse à região com o carro alugado, atrairia a presença da empresa. De fato, a reportagem cruzou com o carro da Invictus em duas oportunidades. Os seguranças negaram entrevista.

A Invictus Segurança Patrimonial é uma empresa que atua nos estados do Pará e do Amapá. No portfólio de clientes, há supermercados como Atacadão e instituições financeiras como a Sicredi. A empresa presta serviços também para a Norte Energia, sendo responsável pela segurança da barragem Pimental. Seus sócios-fundadores, os empresários paraenses André Detoni e Douglas Emilio Comann, têm sociedade em filiais de outras empresas de segurança, como a Inviolável Monitoramento Eletrônico, e a Porter – Portaria Remota.

Segundo os moradores da Ressaca e do Acampamento Nova Aliança, a maior parte dos seguranças que trabalham para a Belo Sun são ex-policiais ou militares da reserva. O coordenador da segurança patrimonial da Belo Sun é Diego Oliveira Silva de Melo, que é autor de um boletim de ocorrência que atribui crimes ambientais aos sem-terra. A reportagem apurou que Diego teve candidatura deferida nos concursos da Polícia Civil e da Polícia Militar do Pará em 2016, mas não encontrou seu nome como servidor ativo do estado.

Segurança não pode restringir acesso e uso da floresta

Desde 2013, uma Ação Civil Pública proposta pela DPE proíbe placas que haviam sido instaladas pela Belo Sun para impedir a caça, pesca e garimpagem em áreas de uso comum, como o rio e a floresta.

A partir de 2021, após denúncias dos moradores locais, a DPE compreendeu que a utilização da segurança Invictus constituía descumprimento dessa liminar. Segundo a defensora pública Bia Albuquerque, da 1ª Defensoria Pública Agrária de Altamira, a Justiça determinou que a terceirizada só poderia fazer a segurança patrimonial dos prédios da empresa, “não podendo fazer rondas em áreas comuns”.

A defensora informou que não recebeu mais denúncias desde 2021 e que acredita que a ação surtiu efeito na proteção dessa parte da população. “Não recebemos mais relatos da situação, então compreendemos que a atuação está se restringindo aos prédios sede da empresa”, afirmou.

No entanto, segundo Amilson Abreu Cardozo, uma das lideranças do Acampamento Nova Aliança, os seguranças desrespeitam a decisão. “O despacho do juiz estabelece que eles nem poderiam entrar na Vila da Ressaca”, afirma.

Segundo relatos ouvidos pela reportagem, a realidade é bem diferente. Os seguranças não apenas rondam, mas frequentam a vila. Os relatos de ameaças são numerosos e há casos de quem tenha deixado o local por temer pela própria vida ou de familiares. Além disso, o retrato da violência segue praticamente invisível, já que não há a presença de agentes públicos de segurança na região, o que dificulta até mesmo a formalização de denúncias ou pedidos formais de proteção. Para os sem-terra e ribeirinhos, resistir no local significa, também, contar com a sorte.

Reintegração de posse e conflitos entre moradores

Ao longo dos anos, os moradores das vilas garimpeiras passaram a ser cooptados pela Belo Sun, por meio da promessa de indenizações e empregos. Desde então, a Ressaca vive uma cisão entre os moradores favoráveis e contrários ao empreendimento, o que aumenta a insegurança na região. Hoje, apenas alguns moradores da Ressaca apoiam o acampamento sem-terra. Duas lideranças históricas dos garimpeiros da Ressaca, que ajudaram a criar o Novo Aliança, tiveram que deixar a região após sofrerem ameaças.

Na vila de cerca de mil moradores, o clima é hostil contra os acampados. Segundo os moradores, mercearias se recusam a vender para eles, a escola local discrimina os alunos acampados e, como presenciado pela reportagem, os funcionários da coleta de lixo gritam “fora sem-terra” quando passam pelo acampamento.

Seu Padeco, que vive há 30 anos na Ressaca, lembra que a vila era um “local de união” antes da presença da Belo Sun. “Era um lugar bom, todo mundo unido. Agora é só desamizade, jogaram um contra o outro”, afirma. Segundo Padeco, a empresa infiltrou funcionários na Associação dos Moradores da Vila da Ressaca e na Cooperativa Mista dos Garimpeiros, prometendo “mundos de empregos” caso o projeto saísse do papel. Além disso, diz que o monitoramento diário da Invictus afeta também os moradores da vila. “Todos os dias eles percorrem isso aqui tudo, o que mais se vê são os seguranças conversando com os moradores nas currutelas”, afirmou. A reportagem fez múltiplas tentativas de contato com a associação e a cooperativa, por telefone, mas não foi atendida ou teve as ligações retornadas.

A Belo Sun abriu um processo de reintegração de posse contra os acampados e seus apoiadores na Ressaca, em junho de 2022, o que foi deferido pelo juiz Ênio Maia da Silva, da vara comum de Senador José Porfírio, em 5 de maio. A decisão prevê que o despejo ocorra apenas após o cumprimento de condicionantes como o acionamento da Fundação Nacional do Índio (Funai), uma vez que entre os acampantes existem indígenas, e a intervenção da Comissão de Conflitos Fundiários do 7º Centro Judiciário de Solução de Conflitos com o objetivo da busca de uma solução consensual.

Com o passar dos meses, o processo foi recheado com outras denúncias contra os sem-terra, embasadas por vídeos enviados pelas “equipes de vigilância” da Belo Sun. Os autos denunciam os sem-terra por crime ambiental, citando uma queimada “possivelmente realizada pelos réus”, e apresenta fotos de crianças brincando próximo a algumas toras queimadas como prova de “utilização de mão de obra infantil” para produção de carvão vegetal.

Os acampados negam. “Nossa luta não é só pelo acampamento em si, nós defendemos a existência do rio, da floresta e dos garimpeiros artesanais das comunidades tradicionais”, afirma Amilson Cardozo. Amilson é defensor dos direitos humanos e integra o Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) por ameaças recebidas de um fazendeiro em outro conflito do qual foi parte.

Ele afirma que a atuação da Invictus lembra a atuação de empresas de segurança patrimonial que têm atuado para grandes fazendeiros no sul e sudeste do Pará, em situação de conflitos com pequenos agricultores. “Isso acontece em boa parte do estado, mas em outros municípios o CNPJ da empresa de segurança é o próprio sindicato rural ou a associação pecuarista”, destaca.

Na prática, floresta tem “dono” e vigilantes fazem as vezes de policiais

A cerca de 30 km da Vila da Ressaca, a montante do rio Xingu, a situação se repete. Ribeirinhos que vivem tradicionalmente na região, e tiveram seu modo de vida impactado por Belo Monte, estão sob a vigilância constante da segurança patrimonial da Norte Energia, no trecho comprado pela empresa para inundação pela hidrelétrica. Muitos nem sequer foram indenizados.

As ilhas onde a maior parte das famílias vivia, e de onde foram expulsas, foram afundadas. Delas, só sobram os paliteiros, agrupamentos de paus podres que costumavam ser árvores e cuja decomposição gera desequilíbrio químico no rio, matando peixes e rasgando as redes dos pescadores. Os paliteiros são a materialidade da flexibilização do processo de licenciamento de Belo Monte, uma vez que o procedimento correto para a inundação causada por barragens prevê a supressão vegetal integral das árvores, para evitar maiores danos aos rios.

Mesmo com tamanha devastação, os ribeirinhos fizeram questão de voltar para as margens do Xingu. A Norte Energia já realizou o reassentamento de 121 famílias ribeirinhas. Outras voltaram à região por conta própria, após anos vivendo nos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs), residenciais construídos pela empresa na periferia de Altamira.

Hoje, porém, os ribeirinhos reassentados em seu antigo território são proibidos de cultivar roças, sendo monitorados pelos drones da Norte Energia. A justificativa da empresa é a proteção da Área de Preservação Permanente (APP), estabelecida pela empresa como condicionante para a operação de Belo Monte. Os ribeirinhos reclamaram da atuação da segurança patrimonial da Norte Energia em uma reunião com a empresa em janeiro deste ano.

A reportagem visitou a casa de Maria Otília Severo dos Santos, reassentada há sete anos na região do Paratizinho. Ela foi multada em R$ 1.200 por abrir duas pequenas clareiras, de 0,35 e 0,65 hectare, próximas a sua casa, para plantar consórcios de mandioca, açaí, bacaba e cacau. “Chegaram de voadeira, botaram o drone lá atrás e falaram que eu tinha que pagar. Como? Não tenho isso nem pra mim”, questiona.

O registro da ocorrência foi feito em outubro de 2022 pela Norte Energia e enviado à Secretaria de Meio Ambiente de Vitória do Xingu (Sema), que, originalmente, lavrou um Auto de Infração no valor de R$ 10.297, posteriormente negociado e parcelado.

O próprio registro da Norte Energia reitera que “em nenhuma das áreas derrubadas foi identificado o abate de espécies protegidas por lei”. Menos de cem metros adiante, um grande paliteiro com centenas de troncos apodrecidos sanciona a ironia da situação. Maria Otília afirma que, quando foi reassentada na área onde vive hoje, só encontrou capim. “Eu que plantei tudo que tem aqui: cupuaçu, goiaba, tangerina, graviola”.

Geysiane Costa e Silva, doutora em biodiversidade e conservação, acompanhou a reportagem na visita. Em seu mestrado e em seu doutorado, ela fez um levantamento etnobotânico das espécies importantes para o modo de vida tradicional dos ribeirinhos. Ela explica que a barragem trouxe grandes impactos para a flora e a fauna locais.

“Muitas espécies não existem mais e eles tiveram que deixar de consumir porque não têm condição de comprar. Na expulsão, os ribeirinhos encheram o barco de frutas, sementes, mudas das ilhas para poderem guardar e levar para a cidade. Com o retorno para o reassentamento, eles trouxeram essas mesmas mudas”, afirma.

A principal mudança para as famílias ribeirinhas foi a redução das espécies de peixes na região, base de sua alimentação e renda. Com o impacto trazido pela hidrelétrica, o cultivo de roças se tornou uma necessidade ainda maior.

Geysiane lembra que, no início do reassentamento, a Norte Energia e os órgãos ambientais tentaram impedir que os ribeirinhos plantassem espécies como limoeiro e bananeira, por serem consideradas exóticas. Ela fez parte de um grupo de pesquisadores que escreveu um parecer técnico questionando a decisão, comparando a “grande contradição” entre o impacto do plantio dessas espécies e o impacto ambiental da hidrelétrica.

A vigilância da Norte Energia rendeu multas a pelo menos outras quatro famílias ribeirinhas. Outras famílias visitadas pela reportagem alegam desconforto com o monitoramento constante. Francinete da Silva Aranha já presenciou drones a filmando enquanto ela estendia roupas no quintal, vestida apenas com roupas íntimas. “Você não pode ficar à vontade na própria casa, que, quando vê, tão lá filmando.” Antes da barragem, a família de Francinete vivia na ilha da Sumaúma. O alagamento da ilha matou diversas espécies da árvore, símbolo amazônico.

Na área onde vive o ribeirinho e indígena Juruna Leonardo Batista, conhecido como seu Aranô, a contradição atinge outros níveis. Ele mora há décadas no mesmo ponto do rio Xingu, de onde foi expulso pela Norte Energia em 2014 e para onde voltou, quatro anos depois, por conta própria. Embora seja proibido de cultivar roça, o gado da fazenda de 597 hectares de Laise Ribeiro de Melo Souza Campos, vizinha de Aranô, pasta solto nas margens da APP, conforme flagrou a reportagem. “Eu denunciei para a Norte Energia, mas ela não faz nada. A lei só funciona contra nós”, afirma Aranô.

As rondas patrimoniais da Norte Energia são as únicas com as quais os ribeirinhos têm contato. Eles denunciam que não existe segurança pública na região e que na última década, após a construção da hidrelétrica, os casos de roubo aumentaram muito. No final de semana anterior à visita da reportagem, tanto o motor da Ambulancha, serviço ambulatorial fluvial, quanto do barco escolar da região haviam sido roubados.

Entre as empresas que já prestaram ou prestam serviço para a Norte Energia estão a Invictus e a WGA Qualixx, de segurança privada e vigilância patrimonial do grupo Quality Max, que tem sede em Brasília e é propriedade dos empresários Airton Ernani e Giorgio Dalla Mutta. Em um vídeo promocional do grupo, eles listam a Norte Energia como um de seus clientes, além de seguradoras e convênios como Unimed, Caixa Seguradora, empresas de construção civil, como WorleyParsons, e as redações da Rede Globo, da Editora Abril e da Rede Bandeirantes.

Segundo Jackson Dias, engenheiro ambiental e integrante da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a chefia da segurança patrimonial da Norte Energia é composta, majoritariamente, por ex-militares do Exército ou da Polícia Militar. Para o militante do MAB, esse canal direto com a segurança pública prejudica denúncias contra a própria Norte Energia.

Desde a construção de Belo Monte, sindicatos denunciam humilhações de trabalhadores pela segurança patrimonial da Norte Energia. Wellington Lopes Freitas, também militante do MAB, trabalhou na patrimonial da Norte Energia durante a obra. “A gente tinha que cobrir muita coisa errada, acobertar acidentes dentro dos sítios, mortes por eletrocutamento por soterramento em trabalho realizado à noite, fora do horário. Era muito ruim”, denuncia.

Governo sabe de conflito, mas acampados seguem nas mãos de monitoramento privado

O conflito na região da Volta Grande do Xingu já é de conhecimento do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar. De acordo com a diretora de mediação e conciliação de conflitos agrários, Cláudia Dadico, a questão foi apresentada pela ONG Xingu Sempre Vivo e pela Amazon Watch desde o início do ano e é tratada como conflito socioambiental pelo governo. No entanto, o local nunca foi visitado pelas equipes da diretoria.

Segundo Cláudia, no governo Bolsonaro foi editada uma instrução normativa que possibilitou ao Incra fazer arrendamento de áreas dentro de projetos de assentamento para projetos de infraestrutura, inclusive minerária, e há um contrato celebrado entre o órgão e a mineradora em questão, já sendo questionado pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

“Entramos em contato com as defensorias, tanto a DPE Pará quanto a DP da União, e percebemos que toda essa situação está intensamente judicializada. Existem várias ações civis públicas tanto questionando o licenciamento ambiental do empreendimento, da Belo Sun, quanto a questão da consulta prévia às comunidades atingidas”, afirma, acrescentando que, após estudo no caso, foi recomendada à presidência do Incra a nulidade do acordo.

Cláudia diz ainda que a reintegração de posse solicitada pela Belo Sun em Senador José Porfírio (PA) está sendo acompanhada por uma comissão do Tribunal de Justiça do Pará. E que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deve ir até o município para promover audiências de conciliação.

Sobre a segurança patrimonial da Norte Energia, a diretora de mediação de conflitos diz não ter recebido denúncias, mas avaliou situações e imagens obtidas pela Pública. “A legislação de segurança patrimonial só autoriza que vigilantes utilizem armas longas no transporte de valores. Então isso já é ilegal. Não pode. A outra questão é que são empresas de segurança patrimonial. Eles têm um escopo muito limitado para proteção de patrimônio. Não poderiam, a partir dessa proteção, agir da forma como essas comunidades estão relatando. Abordagens violentas, pessoas sendo jogadas no chão, relatos de seguranças colocando o pé no pescoço. Abordagens violentas que nem a polícia pode fazer”, avalia. No entanto, afirma que não cabe ao Ministério do Desenvolvimento Agrário esse tipo de fiscalização.

“Tudo isso nós temos reportado nos nossos relatórios de visita, tanto para as autoridades estaduais, encarregadas de investigar crimes de abuso de autoridade ou de violência nesse contexto, quanto também temos acionado o Ministério da Justiça, porque a competência para fiscalização dessas empresas é da Polícia Federal. Mas, realmente, vemos que tem se reproduzido em vários contextos.”

Outro lado

Consultada sobre as denúncias sobre a Invictus, a Belo Sun Mining Corp respondeu que “convive pacífica e harmoniosamente com todas as comunidades da região, fazendo-se sempre presente no dia a dia dessas populações e mantendo diálogo permanente com as comunidades ribeirinhas, indígenas e rurais da Volta Grande do Xingu”. A empresa afirmou também que o Acampamento Nova Aliança “não passa de uma invasão ilegal de terra”.

Já a Norte Energia informou que a fiscalização das APPs onde foram reassentados ribeirinhos é exigência estabelecida pelo Ibama dentro do processo de licenciamento de operação da usina e que os agentes de fiscalização ambiental da segurança corporativa não dependem de autorização prévia dos reassentados para desembarcar nas APPs. Segundo a empresa, as equipes de segurança informam os ribeirinhos dos motivos de sua chegada e da utilização de drones. O equipamento, de acordo com a Norte Energia, só é utilizado no caso de denúncias feitas por outros ribeirinhos sobre a prática de ilícitos ambientais. “Nenhum equipamento sobrevoa os assentamentos de forma inesperada e sem prévio conhecimento do reassentado,”

A empresa respondeu também que os ribeirinhos, ao serem reassentados, assinam um Termo de Uso de Ocupação em que são informados da necessidade de fiscalização das APPs. Segundo a Norte Energia, após serem notificados por infrações, os infratores têm até 30 dias para apresentar defesa.

A empresa afirmou também que já produziu seis relatórios e informou o Ibama sobre crimes ambientais supostamente causados por fazendeiros ao longo de 2022. Por fim, a Norte Energia diz que sua fiscalização fluvial é composta por 12 agentes e dez pilotos de embarcação, sendo, no total, seis ex-militares, “selecionados por sua experiência em práticas fluviais”.

Pública fez contato com as empresas Invictus e Quality Max, mas não obteve resposta. No entanto, a Norte Energia destacou em comunicado que a WGA Qualixx, do grupo Quality-Max, não atuaria no estado do Pará. A reportagem entrou em contato também com a Secretaria de Meio Ambiente do município de Vitória do Xingu, buscando esclarecimentos sobre a infração da ribeirinha Maria Otília, mas também não teve retorno.

Confira aqui, na íntegra, as respostas das empresas que se pronunciaram.

“Chupadeira” maquinário utilizado na atividade garimpeira, em frente à casa na Vila da Ressaca (Julia Dolce/Agência Pública)

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