Frente Parlamentar da Agropecuária deu 81% dos votos para aprovação do Marco Temporal no Senado

Ruralistas foram responsáveis por 35 dos 43 votos favoráveis ao PL 2.903/2023, levado a plenário apenas uma semana após o STF julgar a tese inconstitucional; dono de fazenda sobreposta a terra indígena em Rondônia, senador Jaime Bagattoli comemora aprovação

Por Bruno Stankevicius Bassi e Nanci Pittelkow, em De Olho nos Ruralistas

O plenário do Senado aprovou ontem (27/9) o Projeto de Lei nº 2.903/2023, que estabelece o Marco Temporal como critério para a demarcação de terras indígenas no Brasil. Dos 43 votos favoráveis à tese, 35 vieram de senadores da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) — a face institucional da bancada ruralista. Isto é, 81% dos votos pela aprovação do Marco Temporal partiram de parlamentares ligados ao agronegócio, repetindo o fenômeno observado quatro meses atrás, durante a apreciação do tema na Câmara: “Frente Parlamentar da Agropecuária reuniu 76% dos votos a favor do Marco Temporal“.

A votação ocorreu apenas cinco horas depois do PL 2.903/2023 ter sido aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado (CCJ), em resposta direta aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que, seis dias atrás, em 21 de setembro, rejeitaram a tese do Marco Temporal, marcando uma vitória histórica para os povos indígenas. O relatório do senador Marcos Rogério (PL-RO) recebeu 16 votos a favor e 10 contra na CCJ. Todos os votos favoráveis partiram de membros da FPA.

Criada durante o julgamento da demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, a tese do Marco Temporal considera válidas apenas as áreas ocupadas por indígenas de forma ininterrupta desde 05 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. O dispositivo, no entanto, ignora o histórico de invasões, expulsões e violências perpetrados pelo agronegócio e pela ditadura militar contra os povos originários nos últimos 35 anos, conforme mostrou o relatório “Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas”, publicado em abril por este observatório.

Além de firmar o Marco Temporal como parâmetro para a demarcação de TIs, o PL 2.903/2023 traz novos retrocessos para a política indigenista, entre eles, a autorização de plantio de sementes transgênicas dentro dos territórios, a flexibilização do processo de consulta para empreendimentos que afetem áreas ocupadas por indígenas e o enfraquecimento da política de não-contato com povos isolados.

A ofensiva ruralista foi anunciada um dia antes, em nota conjunta assinada por 22 frentes parlamentares. Na coletiva de imprensa, realizada na manhã de ontem, líderes do Partido Liberal (PL), do Novo e os presidentes das frentes ameaçaram obstruir pautas governistas no Congresso enquanto não seja firmado um novo marco contra o que chamam de “usurpação de competência” pelo STF. A coletiva também trouxe ameaças explícitas aos povos indígenas: “Coordenadora jurídica da FPA promete “banho de sangue” se Marco Temporal não se tornar lei“.

Com a aprovação no Senado, o PL 2.903/2023 depende agora de sanção presidencial. Segundo senadores da base governista, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vetará o projeto.

DONO DE FAZENDA SOBREPOSTA A TERRA INDÍGENA, BAGATTOLI COMEMORA

Enquanto os diretores da FPA articulavam a formação de um novo bloco conservador para reverter decisões do STF, senadores ruralistas se movimentavam junto ao presidente da casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) para colocar o PL 2.903/2023 em votação imediata.

Logo após o texto do relator Marcos Rogério (PL-RO) ser aprovado na CCJ, o presidente da comissão, Davi Alcolumbre (União-AP), colocou em pauta um requerimento de urgência, aprovado às pressas pelos senadores presentes, com apenas dois votos contrários. Todas as emendas ao texto foram derrubadas.

Além de Rogério, se destacaram nos bastidores a vice-presidente da FPA e ex-ministra da Agricultura de Jair Bolsonaro, Tereza Cristina (PP-MS) — responsável por arregimentar apoio junto a ministros do governo Lula — e o senador Jaime Bagattoli (PL-RO).

Dono de um dos principais conglomerados empresariais de Rondônia, que reúne transportadoras, redes de postos de combustíveis e diversas fazendas voltadas para o plantio de soja e criação de gado, Bagattoli é um dos beneficiários diretos do PL 2.903/2023.

De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a Transportadora Giomila, parte do grupo empresarial fundado por Jaime e seu irmão Orlando Bagattoli, é titular da Fazenda São José, um imóvel de 1.118,25 hectares dedicado à pecuária bovina. A área foi adquirida pelos irmãos em 2011, por meio da penhora de uma dívida contraída pelos antigos proprietários, com 0,26 hectares — isto é, 2.600 metros quadrados — sobrepostos à TI Rio Omerê, um território de indígenas de recente contato, homologado desde 2006.

A empresa é dona de outro registro maior, detectado no Sistema Nacional de Certificação de Imóveis (SCNI), que invade 2.591,76 hectares da terra indígena. Trata-se da mesma fazenda.

Os dados integram o dossiê “Os Invasores: parlamentares e seus financiadores possuem fazendas sobrepostas a terras indígenas“, lançado em 14 de junho, que identificou 42 políticos donos de imóveis que violam territórios já demarcados ou em processo de demarcação.

Duas semanas depois da publicação, durante sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Organizações Não-Governamentais (ONGs), o senador prestou o primeiro esclarecimento público sobre a sobreposição irregular na TI Rio Omerê. Em seu discurso, Bagattoli reconheceu o registro irregular. “Inclusive na propriedade, são dois lotes, que dão 3.716 hectares, e eu tive que desmembrar 1.118 hectares, só a parte aberta, e a parte toda da reserva foi homologada junto, mais 2 mil e poucos hectares, toda a mata foi homologada como reserva indígena”, afirmou.

Ao mesmo tempo em que tentava explicar a invasão, Bagattoli articulava a votação emergencial do PL 2.903/2023 antes do recesso parlamentar. Entre os argumentos, o catarinense radicado em Rondônia repetiu o argumento ruralista de que a rejeição do Marco Temporal causaria uma “guerra no campo”.

— Esse marco temporal precisa ser votado. Nós sabemos que nós temos que respeitar os nossos indígenas, mas também nós precisamos entender que nós não podemos causar um problema, causar uma guerra no campo sobre as propriedades que estão lá há mais de cem anos, com títulos e que foram escrituradas. Esses produtores têm direito também a suas propriedades.

Três meses depois, com a aprovação da tese no Senado, Bagattoli adotou um tom mais pacífico. “Nós apenas votamos pelo direito de famílias inteiras continuarem a produzir e gerar renda a partir do campo”, destacou. “Ao aprovar o Marco, nós trazemos segurança jurídica e a oportunidade de chegar a um consenso entre o meio ambiente, os povos indígenas e o setor produtivo”.

Imagem em destaque (Joedson Alves/Agência Brasil): indígenas protestam contra o Marco Temporal em Brasília.

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