MPF instaura inquérito para apurar responsabilidade do Banco do Brasil no tráfico de pessoas negras escravizadas

O órgão foi provocado por historiadores de universidades brasileiras e estrangeiras para promover uma discussão sobre o tema

Procuradoria da República no Rio de Janeiro

O Ministério Público Federal (MPF) instaurou um inquérito civil que pretende apurar as responsabilidades e a participação do Banco do Brasil na escravidão e no tráfico de pessoas negras no século 19. O objetivo da ação é promover a reflexão sobre o tema para garantir que crimes contra a humanidade como esse jamais se repitam, além de garantir mecanismos de reparação com um olhar voltado para o presente e o futuro, em uma discussão sobre memória, verdade e justiça.

O inquérito foi instaurado pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro (PRDC/RJ) após uma manifestação apresentada por um grupo de 15 professores e universitários, oriundos de diversas universidades brasileiras e estrangeiras, que realizaram uma pesquisa que aponta para a negação e o silêncio sobre a participação das instituições brasileiras na escravização de pessoas.

No caso do Banco do Brasil, os historiadores apuraram que havia uma relação de “mão dupla” da instituição financeira com a economia escravista da época, que se revelava no quadro de sócios e na diretoria do banco, formados em boa parte por pessoas ligadas ao comércio clandestino de africanos e à escravidão.

O despacho assinado pelos procuradores Jaime Mitropoulos, Julio José Araujo Junior e Aline Caixeta, dá um prazo de 20 dias para que o banco apresente suas considerações sobre a pesquisa que subsidiou a investigação; informe sua posição a respeito da sua relação com o tráfico de pessoas negras escravizadas; informe a existência de pesquisas financiadas pelo Banco do Brasil para avaliar a narrativa sobre a sua própria história; preste informações sobre a relação do banco com traficantes de pessoas e sobre financiamentos relacionados com a escravidão.

Por fim, o MPF pede que sejam informadas as iniciativas do banco com finalidades específicas de reparação em relação a esse período. Pede também o agendamento de reunião com presidência do Banco do Brasil no próximo dia 27 de outubro. Os Ministérios de Direitos Humanos e Cidadania e da Igualdade Racial foram informados da instauração do inquérito e poderão acompanhar as discussões, se assim tiverem interesse.

Mobilização internacional – Nos últimos anos, em países como Estados Unidos e Inglaterra, têm ganhado força um movimento por reparação histórica de grandes instituições que participaram da escravidão.

Nos Estados Unidos, pesquisas têm demonstrado que traficantes e donos de pessoas escravizadas foram os fundadores de faculdades, apontando o papel ativo dessas instituições na manutenção daquela dominação, ao lado da Igreja e do Estado. Como resposta, essas instituições estão sendo pressionadas a estabelecer formas de reparação.

No caso do Reino Unido, existe também uma forte pressão pelo estabelecimento de reparações. Nesse sentido, nações caribenhas organizaram comissões e estão preparando cartas formais que solicitam o pedido de desculpas e reparações por parte da família real britânica, do Lloyd’s of London (instituição que cuida do mercado de seguro) e da Igreja em razão do tráfico de pessoas negras escravizadas.

Um exemplo desse esforço foi o pedido de desculpas do jornal inglês The Guardian pelo papel de seus fundadores no tráfico transatlântico, seguido do anúncio de um programa de justiça restaurativa a ser executado durante uma década. O jornal estima investir mais de 10 milhões de libras nesse programa, que será especificamente voltado a comunidades que descendem de vítimas da atuação dos fundadores no tráfico.

Escravidão

O tráfico transatlântico de pessoas negras escravizadas foi uma das maiores atrocidades cometidas na história da humanidade, com impactos duradouros em nossa sociedade e na constituição das diversas manifestações do racismo estrutural e institucional nas relações sociais.

“Revisitar a escravidão implica desnaturalizar a forma como tratamos o papel das instituições e de pessoas que se constituíram e enriqueceram à custa dessa mancha em nossa história. Se, por um lado, devemos reconhecer o papel do negro na construção das riquezas materiais e na estrutura econômica do país para repensarmos a própria história da formação do Estado brasileiro, é necessário, por outro, enfatizar que a diáspora africana é resultado de um projeto de desumanização, violências e dores que contou com a complacência de pessoas, famílias e instituições, as quais se beneficiaram proativamente dessas atrocidades, sem qualquer tipo de manifestação de reconhecimento ou responsabilização”, pontua o inquérito do MPF.

Legislação – O Estado brasileiro se compromete em âmbito internacional a discutir e enfrentar as consequências da escravidão e do tráfico de pessoas negras escravizadas. É um tema que demanda uma atuação permanente no sentido de elucidar violações e também buscar formas de reparação.

A Constituição de 1988 adotou como princípio nas relações internacionais repúdio ao racismo (artigo 4º, VIII), tornando-o crime imprescritível e inafiançável. Além disso, a Constituição ressalta o caráter plural da sociedade brasileira e estabelece um programa para superar as desigualdades sociais e regionais.

Para o MPF, discutir a escravidão e formas de reparação também se insere na busca pela superação do racismo institucional e estrutural. Para essa empreitada, promover a reflexão sobre o tema jamais deve se limitar ao importante olhar para o passado trágico, mas também nos conduzir a uma reflexão sobre o nosso presente e futuro, em uma perspectiva de memória e verdade sobre a nossa história.

Segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, há cinco conjuntos de medidas importantes para viabilizar os processos de memória-verdade-justiça e nesse sentido enfrentar o racismo e o negacionismo dos efeitos da escravidão. São eles: a investigação e elucidação das situações de violência ocorridas; a responsabilização dos agentes que praticaram as violações; a reparação dos danos suportados pelas vítimas; a promoção da memória; e a adoção de medidas destinadas a prevenir a repetição das violações no futuro.

História

O primeiro Banco do Brasil, criado por alvará régio em 12 de outubro de 1808, teria surgido para enfrentar a escassez de crédito e de moeda no Império Português, porém sua atuação se reduzia ao financiamento público. Os historiadores indicam que o banco se valeu de recursos como a arrecadação de impostos sobre embarcações dedicadas ao tráfico de pessoas escravizadas e destacam que o capital para a formação do banco provinha da economia da época, que tinha na escravidão e no comércio negreiro um papel central. Assim, por exemplo, as subscrições para a integralização do capital do banco provinham dessas atividades, sendo que as maiores fortunas do Rio de Janeiro estavam claramente associadas ao comércio transatlântico de africanos.

A despeito de o banco ter se constituído em três momentos ao longo do século 19, a própria narrativa da instituição financeira sobre a sua história pressupõe uma linearidade histórica e sua presença bicentenária no Brasil. Apesar dos vínculos históricos do banco com o tráfico de pessoas escravizadas, grande parte da historiografia sobre sua formação reproduziu um apagamento sobre o tema.

Despacho – Inquérito Civil nº 1.30.001.004372/2023-13

Foto: Secom/PGR

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