Gaza, ignorada por todos nos últimos 20 anos, pagará com o sangue a crise de Netanyahu

“A retaliação ao ataque lançado pelo Hamas será paga com o sangue dos civis de Gaza”, alerta Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana, em artigo publicado por La Stampa.  A tradução é de Luisa Rabolini.

No IHU

Dois dias depois do ataque do Hamas, todas as perguntas olham para o futuro: o quão longa, violenta e sangrenta, será a retaliação pelas centenas de mortes, pelos reféns transferidos pelos milicianos do Hamas para a Faixa de Gaza, contra as equipes de incursão que cruzaram a fronteira, fazendo com que, pela primeira vez nos 75 anos desde a criação de Israel, as forças palestinas conseguissem assumir o controle de áreas dentro da Linha Verde. Até quando as operações militares permanecerão limitadas ou estão destinadas a envolver as potências vizinhas, o Líbano com o Hezbollah encabeçando a fila? Mas hoje é também dia de olhar para o passado e analisar as condições que levaram a um dia destinado a mudar para sempre as sortes de um conflito que nunca foi resolvido e, consequentemente, os equilíbrios regionais.

A resposta de Israel à Gaza está em curso, as forças armadas estão retomando a posse dos centros habitados onde os milicianos do Hamas ainda estão presentes e planejando uma aparentemente inevitável invasão terrestre na Faixa de Gaza. Na noite de sábado, uma onda de bombardeios massivos matou pelo menos 370 palestinos (entre os quais 20 crianças), outros 2.000 ficaram feridos e na operação que Israel apelidou de “Espada de Ferro” dezenas de edifícios militares e residenciais foram atingidos e foi derrubado e reduzido a escombros o arranha-céu de 14 andares que abriga as redações de jornais e TVs no centro de Gaza e que incluía pelo menos 100 apartamentos.

Entre os edifícios alvejados estavam a casa do líder do Hamas, Yahya al-Sinwar, a sede de instituições de caridade no sul de Gaza, o edifício al-Hashem no norte da Faixa, que hospedava uma ONG local e 15 apartamentos civis. Tudo isso numa área ainda marcada pelas guerras anteriores. E onde, de acordo com o Conselho norueguês para os refugiados, em fevereiro quase 2.000 casas ainda estavam em ruínas devido aos ataques israelenses na última década.

Médicos Sem Fronteiras relata que as forças israelenses atacaram no sábado uma clínica e uma ambulância em frente ao hospital Nasser, no sul de Gaza, matando uma enfermeira, um motorista de ambulância e danificando uma estação de oxigênio.

Os outros hospitais, superlotados e dependentes das ajudas internacionais, estão utilizando os últimos geradores elétricos que ainda funcionam para fazer frente ao grande número de feridos em chegada e, segundo dados divulgados pela UNRWA, a Agência das Nações Unidas para o socorro aos refugiados palestinos, 20 mil já deixaram as regiões de fronteira de Gaza em direção a zonas mais internas buscando refúgio nas escolas das Nações Unidas.

Gaza é uma prisão a céu aberto, um gigantesco campo de refugiados que vive uma crise humanitária crônica e em constante deterioração desde 2007, ano da vitória eleitoral do Hamas. Desde então Israel impõe um bloqueio aéreo, terrestre e marítimo à Faixa. É por isso que depois das palavras claras do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, no sábado, que declarou: “Israel está em guerra. Saiam de Gaza, reduziremos os esconderijos do Hamas a ruínas”, as organizações locais fazem apelo à comunidade internacional para abrir corredores humanitários e tentar evacuar a população.

Sabe-se que diante das palavras “Saiam de Gaza”, a reação de cada palestino na Faixa é “Não sabemos para onde ir”.

Já era assim antes, quando sobreviviam com três, quatro horas de eletricidade por dia, e é ainda mais hoje, sob os bombardeios israelenses e depois do Ministro da Energia de Telavive, Israel Katz, ter anunciado a interrupção total do fornecimento de energia ao território sitiado.

Decisão que se configura como um crime de guerra.

Gaza tem sido a grande esquecida dos últimos anos e o seu destino hoje é o maior ponto de interrogação da guerra: dois milhões de pessoas que não têm como sair e que estão destinadas a pagar o preço dos acontecimentos.

É por isso que a imagem da escavadora que no sábado rompeu as barreiras de segurança israelenses tem um enorme poder simbólico e terá um longo eco para a causa palestina, no mundo árabe e não só, porque como dizem os habitantes de Gaza contatados pelo La Stampa ontem, representa “a primeira vitória e a resistência à ocupação”.

Para Samy A. (que não quis revelar seu sobrenome e falou ontem de manhã ao telefone da Faixa) “a violência da ação do Hamas era a única forma de pôr fim à situação em Gaza. Fizeram-no da pior maneira possível – diz – mas lembraram ao mundo que existimos e que não era mais aceitável considerar o cerco como uma situação que nunca mudaria”.

Muhammad, de trinta anos, também contatado por telefone, diz que fugiu de sua casa no sul da Faixa sem levar nada, exceto algumas roupas e cobertores para passar a noite com seus dois filhos pequenos. Para sua família, assim como para centenas de outras, esta guerra é um roteiro que se repete. Seus filhos não haviam nascido durante a guerra de 2014, mas aos 5 e 7 anos já sofriam as consequências do cerco: “Todos sabiam que teria acontecido mais cedo ou mais tarde. Não se pode ignorar dois milhões de vidas numa prisão e pensar que permaneceríamos passivos para sempre, que poderiam continuar a nos humilhar assim. Mas sabemos que a retaliação desta vez será diferente. Olho para o futuro e vejo mais mortos e mais mártires”.

Durante quase 20 anos, os líderes mundiais – os Estados Unidos na frente – contentaram-se em contribuir apenas para a resposta à crise humanitária, mesmo que de maneira inconstante e insuficiente.

Só de observar eventos e números dos últimos meses, ficava claro que a situação estava fadada a explodir.

Era desde a Segunda Intifada do início da década de 2000, que não se registavam tantas mortes palestinas e israelenses. A isso acrescenta-se a liberdade concedida pelo governo aos colonos na ampliação dos assentamentos ilegais na Cisjordânia e um aumento das invasões e das violências na simbólica mesquita de Al-Aqsa.

No fundo, o impasse em Gaza que ninguém foi capaz ou quis enfrentar.

Portanto, para todos, hoje é também o dia da busca das responsabilidades pelas falhas de segurança dos serviços israelenses, mas também das responsabilidades políticas. Depois de 15 anos quase ininterruptos de liderança de Benjamin Netanyahu, muitos absorveram a sua visão do conflito, ou seja, aquela de uma cristalização do isolamento de Gaza.

Ontem de manhã, o jornal israelense Haaretz publicou um duríssimo editorial com estas palavras: “Netanyahu é responsável por esta guerra entre Israel e Gaza”. Continua o texto: “O primeiro-ministro, que se orgulhava da sua vasta experiência política e da sua insubstituível sabedoria em matéria de segurança, não conseguiu identificar os perigos para os quais estava conscientemente conduzindo Israel quando instituiu um governo de anexação e expropriação, quando nomeou Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir para posições-chave, ao mesmo tempo que abraçava uma política externa que ignorava abertamente a existência e os direitos dos palestinos”. Tese também reforçada por Anshel Pfeffer, correspondente em Israel do The Economist, que ontem escreveu: “Netanyahu tentou ignorar Gaza durante os seus muitos anos no cargo. Nunca fez planos para o seu futuro e após cada rodada de combate se voltava a tratar de outras coisas. Agora ele será lembrado para sempre pelos israelenses por esse desastre. Esse é o seu legado.”

A retaliação ao ataque lançado pelo Hamas será paga com o sangue dos civis de Gaza, mas as consequências políticas do acontecido provavelmente serão duas. A primeira, a crise definitiva da era Netanyahu. A segunda, o fortalecimento do Hamas na Cisjordânia, onde a população está cada vez mais distante da política da Autoridade Palestina, considerada demasiado fraca e comprometida pela colaboração com Israel e pelo seu líder, Mahmoud Abbas, que já não desfruta há tempo de legitimidade entre os palestinos. O que o ataque do Hamas, portanto, corre o risco de gerar nas mentes dos palestinos frustrados e especialmente nas gerações mais jovens, é que o grupo armado pareça ser o único capaz de trazer de volta ao centro uma questão que tem sido ignorada por demasiado tempo.

Tudo isso está presente na imagem da brecha aberta pela escavadeira que demoliu a rede que mantinha Gaza no cerco. O sangue dos civis e o risco de novos extremismos.

Imagem: Museu Rodin, Paris. Foto: Tania Pacheco

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