Plano contra as cheias ameaça indígenas em Santa Catarina

Fechamento de comportas de barragem há 10 anos sem manutenção na Terra Indígena Ibirama La Klanõ alaga aldeias e isola moradores.

Nádia Pontes, Deutsche Welle

A cerca de 300 metros da barragem Norte, em José Boiteux, Santa Catarina, a família de Talita Caxias Popó teve que sair de casa num plano de evacuação improvisado. A decisão de remover os oito moradores foi dos caciques da Terra Indígena Ibirama La Klanõ, às margens do rio Hercílio, na bacia do Itajaí-açu, para onde escorrem as chuvas volumosas que caem na região há dias.

“A casa deles está perto de uma área de cheia. O medo é que de repente a água cubra tudo e não dê tempo de eles saírem. Os caciques retiraram minha família, o governo abandonou o povo”, afirma Jucelino Senei Filho, estudante de jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em conversa com a DW.

O medo da velocidade da inundação é por causa do fechamento das comportas da barragem. Planejada pelo governo da ditadura militar e inaugurada em 1992, a estrutura é a maior contenção de cheias da bacia hidrográfica do Itajaí. Pensada para proteger das enchentes as cidades localizadas rio abaixo (jusante), como Blumenau, a barreira provoca alagamento rio acima (montante) — justamente onde moram os indígenas.

“Com o fechamento das comportas, aldeias serão inundadas. O governo, em sua fala racista, diz que é para ‘defesa dos catarinenses’. A pergunta é: defesa para quais catarinenses? A gente vai perder nosso território, vamos ficar alagados”, diz Lucimara Patte, indígena xogleng e uma das lideranças da TI, em crítica ao governador de Santa Catarina, Jorginho Mello.

Até segunda-feira (09/10), duas mortes no estado foram confirmadas em consequência das chuvas fortes. Até o momento, 67 municípios declararam situação de emergência, segundo informações da Defesa Civil.

Histórico de conflitos

Autodenominados laklanõ, que significa “gente do sol”, os habitantes da TI foram chamados de xogleng por um etnólogo não indígena. Eles quase foram exterminados no início do século passado durante o processo de ocupação do Sul do país, com a chegada das colônias povoadas por europeus.

A situação se agravou a partir da década de 1970, durante o início da construção da barragem Norte, que duraria 20 anos e entraria em operação sem nunca ter sido concluída por completo.

“Os indígenas jamais foram indenizados ou consultados. Nunca foram informados sobre o alagamento que a barragem provocaria no território deles. A estrutura foi feita para preservar as cidades de migração europeia, rio abaixo. Os laklanõ, rio acima, sofrem”, explica Juliana Salles Machado, professora do Departamento de História Indigena, da UFSC, em entrevista à DW.

A cada cheia, os moradores eram obrigados a mover suas casas para mais longe do rio — e mais perto dos morros. Perderam a área de plantio e sua maior aldeia, que foi subdivida por conta da falta de espaço. Atualmente, dez aldeias — nove de laklanõ e uma do povo guarani — dividem a área, com cerca de três mil habitantes.

Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) condenou o estado de Santa Catarina e a União a compensar os indígenas pelos danos e inúmeros descumprimentos dos acordos firmados ao longo dos anos.

“Nunca cumpriram o acordo. O estado é condenado por várias coisas que a barragem danificou nas aldeias. Mas este governo superou todos os outros. Agiram de má fé, numa tentativa de homicídio”, afirma Voia de Lima, cacique da aldeia sede.

No último domingo, enquanto representantes do governo negociavam com os indígenas formas de garantir uma retirada segura da área, acesso a água potável e alimentação, uma operação autorizada pela Justiça usou a força policial para fechar as comportas da barragem.

Fontes ouvidas pela DW disseram que houve violência e que vários indígenas ficaram feridos. “Foi tiro de borracha e bala de verdade. A Defesa Civil abandonou a gente. Não tem cesta básica ou água potável. Equipes de saúde não conseguem chegar”, afirma o cacique Voia.

Questionado pela DW, o governo de Santa Catarina não se pronunciou até o fechamento desta reportagem.

Risco alto de inundação continua

O risco de inundação na região continua. O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) prevê como muito alta a possibilidade de enchentes no Vale do Itajaí devido aos altos acumulados de chuva na bacia hidrográfica.

“Os excessos de chuva no Sul do Brasil são típicos em ano de El Niño. Ele é um aquecimento anômalo das águas superficiais do oceano Pacífico Equatorial. Isso modifica a circulação dos ventos na atmosfera de forma que favorece a ocorrência de chuvas no Sul. Por outro lado, inibe a chuva no Norte e Nordeste do Brasil”, destaca Giovanni Dolif, meteorologista e pesquisador do Cemaden.

“Até agora, nas regiões Sul e Sudeste, já choveu em torno de 300% acima do normal para este período do início de outubro. E há mais chuva prevista para os próximos dias para o Rio Grande do Sul e Santa Catarina”, alerta Augusto José Pereira Filho, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG/USP).

Um trabalho recente publicado por Pedro Luiz Chaffe, professor do Laboratório de Hidrologia da UFSC, concluiu que as cheias no estado de Santa Catarina ficaram mais frequentes nos últimos 40 anos.

“Analisando os dados em todo o estado, a frequência e magnitude das cheias estão aumentando. Já tem que se pensar sobre as possíveis implicações, como a gente pode operar as estruturas que foram projetadas no passado e não consideram as mudanças que estamos vendo”, diz Chaffe à DW.

Falta de confiança na barragem

Com capacidade para armazenar 358 milhões de metros cúbicos, segundo informações divulgadas pelo governo de Santa Catarina, a barragem Norte é considerada de alto risco devido às suas características técnicas, estado de conservação e inconformidade com o exigido na legislação vigente, lei no 12.334 de 2010.

“Toda estrutura teria que ser fiscalizada por órgãos competentes, ser revisada periodicamente e ter um plano de ação emergencial”, cita Chaffe pontos para garantia da segurança de barragens previstos na lei.

Fontes ouvidas pela DW afirmam que há dez anos a barragem não recebe manutenção. “Os indígenas tentaram conversar sobre esse ponto da falta de manutenção. Ninguém sabe o quanto ela é segura e o que pode acontecer com as comportas fechadas”, comenta Machado.

Em 2014, os moradores ocuparam a estrutura para cobrar indenização e segurança da barragem. Segundo o acordo feito à época com as autoridades, ela não poderia ser operada até o impasse ser resolvido. Um plano de contingência com a Defesa Civil para o acionamento emergencial da estrutura estava em curso, mas não foi concluído.

Uma simulação de ruptura da barragem Norte publicada em 2018 estimou que, em caso de colapso, a cidade de José Boiteux sofreria com um aumento de cota de até 25 metros. Em Ibirama, a elevação do rio seria de aproximadamente 13 metros.

Imagem: Vista aérea da Terra Indígena Ibirama La Klanõ em março de 2023 – Foto: Anderson Coelho/AFP

Comments (1)

  1. O genocídio aos povos indigenas catarinenses deve ser alardeado para todos os cantos do país e do mundo, quiça submetido a cortes internacionais devido a sua permanência planejada e persistente. Saudações !

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