A crise climática atinge o Amazonas e pode gerar grave crise sanitária – que já começa a ser atendida pelo governo. Professor da UFBA lista as urgências para a saúde da população, começando por água e alimentação, seguidas do fortalecimento da atenção básica
Adelmir de Souza Machado em entrevista a Gabriel Brito, em Outra Saúde
O Brasil observa imagens apocalípticas da poluição atmosférica em Manaus e dos menores níveis dos rios da maior bacia hidrográfica do mundo. A seca é uma conjunção de fatores climáticos, inclusive pela ação humana, e a falta de água começa a acumular problemas de diversos matizes. Diante do anúncio de férias coletivas na indústria da capital amazonense, que afeta ao menos 100 mil trabalhadores diretos, vemos provas de como o colapso climático pode paralisar a vida.
Para responder a isso, o ministério da Saúde anunciou envio de R$ 225 milhões, valor relevante para uma pasta que não pode responder sozinha aos desafios impostos. E já estamos diante de uma grave crise de saúde coletiva, como explicou Adelmir de Souza Machado, diretor e professor do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Bahia e membro da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI), em entrevista ao Outra Saúde.
“Temos consequências mais diretas, ou seja, infecções respiratórias, alergias, o indivíduo pode ter rinite, asma, crise de tosse, conjuntivite, além de vários outros fatores que o próprio clima muito quente pode trazer, como por exemplo desidratação, um pouco de hipertensão arterial, mal-estar, tonturas. Existe toda uma cadeia de consequências que podem se ver no plano macro ou micro de cada indivíduo e que vão se somando.”
Na entrevista, Machado explica quais os pontos essenciais de uma resposta do poder público para uma população que vive em relativo isolamento do resto do país e em boa parte não tem para onde escapar – sem deixar de apontar questões estruturais que precisam ser tocadas em algum momento.
“A primeira coisa é garantir água potável”, alerta ele. Em seguida, é necessário garantir a alimentação – que pode ser adquirida com os recursos enviados pelo ministério ou por meio de doações. “Há uma possibilidade muito clara de que apareçam casos de diarreia infecciosa por causa desses cuidados precários com a água, com a própria saúde, com a alimentação – e no saneamento é a mesma coisa. O principal é garantir que cidades ribeirinhas ou desprovidas de saneamento básico ou encanamento possam ter a coleta de dejetos feita de uma maneira minimamente adequada. Do ponto de vista de saúde pública é essencial”.
Adelmir Machado ainda alerta que tal contexto deve orientar decisões ainda mais firmes dos governos para conter a sanha desenvolvimentista, que, no desespero de buscar soluções econômicas para uma sociedade paralisada pela estiagem, pode aprofundar os problemas. Do ponto de vista do sistema de saúde, é essencial fortalecer a atenção primária, para responder rapidamente aos efeitos da seca na saúde coletiva e evitar uma sobrecarga nos hospitais semelhante à pandemia.
Ele lista, então, os passos seguintes: “Deve-se armar as unidades básicas de saúde, equipamentos de saúde da família, a depender do que existe em cada município, com visitação ativa dos agentes de saúde para descobrir se já há indivíduos com algum grau de adoecimento. Porque qualquer doença infecciosa, numa situação desse tipo, é mais fácil de se alastrar do que numa situação de normalidade. Não se tendo equipes de saúde da família, as unidades de atendimento básico devem ser reorganizadas e as que não estiverem organizadas devem ser minimamente equipadas para determinadas situações, como as próprias doenças respiratórias, infecciosas, como as pneumonias, gastroenterites e diarreias infecciosas. Portanto, o mínimo é colocar as equipes de atenção básica em prontidão e melhor organizadas para uma situação como essa e direcionar profissionais até a atenção básica, que mais vai sofrer nesse primeiro momento.”
No entanto, as respostas estruturais parecem longe de nossos horizontes. A considerar o arranjo político e social que determina o desenvolvimento produtivo e econômico do país, é de se questionar, como faz o médico, se estaremos vivos para presenciar uma repactuação geral. Enquanto isso, a realidade volta a ameaçar a própria reprodução da vida social. Pouco tempo após o trauma coletiva da pandemia, não é absurdo vislumbrar novas versões de isolamento social, dada a inviabilidade generalizada que uma catástrofe climática como a do Norte brasileiro impõe à sociedade.
“Sem dúvida nenhuma, vai haver isolamento social. E pode haver até algum tipo de conflito, porque na hora em que a situação começar a apertar imagine vários grupos familiares que precisam sustentar seus filhos menores, indivíduos idosos e olham para um lado e para o outro e não conseguem se transportar daquele lugar, não só pela falta de navegabilidade de qualquer hidrovia, mas principalmente por falta de qualquer opção”.
Confira a entrevista completa.
Como você descreve a estiagem que vive o Amazonas? Como ela se reflete no dia a dia?
Essa grande estiagem que ocorre em boa parte do país, em particular no Norte, traz consequências não só para o ambiente, mas para o cotidiano das pessoas e sua vida, tanto do ponto de vista socioeconômico como médico. Além do desequilíbrio do próprio ambiente, os indivíduos vão ter maior dificuldade, principalmente os ribeirinhos, em angariar o seu trabalho no dia-a-dia. Assim, há um fator financeiro fluído, que gera estresse psíquico. Além disso, a própria estiagem reflete um impacto, talvez global, em termos de poluição ambiental e desequilíbrio em todas as partes do mundo em relação ao clima, tempestades e secas inesperadas ou fora da sua sazonalidade habitual.
Além do fator psíquico que pode afetar todo cidadão que vive do rio e da proficuidade dessa área, que é mais úmida, mais chuvosa na maior parte do ano, devemos ter consequências do ponto de vista de alimentação, já que vai haver uma grande mortandade de peixes e também da fauna associada. Vai se afetar fortemente o ser humano que vive dessa fauna e da própria pesca ou da alimentação de peixes. Por fim, a seca pode facilitar o aparecimento ou a perpetuação de queimadas e isso faz com que mais poluição ocorra na região, com potenciais consequências para a saúde.
Quais consequências à saúde coletiva devemos vislumbrar? Que doenças essa seca está fazendo aparecer?
Temos consequências mais diretas, ou seja, infecções respiratórias, alergias, o indivíduo pode ter rinite, asma, crise de tosse, conjuntivite, além de vários outros fatores que o próprio clima muito quente pode trazer, como por exemplo desidratação, um pouco de hipertensão arterial, mal-estar, tonturas. Existe toda uma cadeia de consequências que podem se ver no plano macro ou micro de cada indivíduo e que vão se somando.
O ministério da Saúde assinou portaria que libera R$ 225 milhões de reais para o estado. Já estamos diante de uma crise sanitária em Manaus e no estado?
Eu creio que sim, do ponto de vista de saúde coletiva já estamos em grave crise. Embora aparentemente seja inesperado, já temos recursos de previsibilidade para saber que o clima vai mudar, ou determinado tipo de estiagem vai perdurar mais tempo. Mas deixamos o prevenível se tornar emergência. A essa altura, sim, é um quadro já crítico, emergencial, do ponto de vista de saúde coletiva, porque além de todos os aspectos diretos na saúde humana, vai impactar no próprio saneamento básico de várias dessas cidades, que precisam de água para fazer toda a limpeza sanitária do seu microambiente local, das ruas, das cidades, dos prédios, ou seja, os impactos vão ser fortes.
Muitas dessas cidades, inclusive, não têm saneamento, não têm canalização, como boa parte do norte do país não tem, e isso vai gerar consequências terríveis. Acredito que tal recurso, embora emergencial, ainda vai ser insuficiente se a estiagem se estender no tempo. E o que se prevê é que vá até dezembro e talvez só em janeiro comece a ter alguma regularidade nas chuvas.
Como está o sistema de saúde do estado? Há risco de sobrecarga e colapso?
Habitualmente, o Norte do país e o Brasil inteiro têm uma capacidade limitada de receber novos casos de saúde. Observe que, semelhantemente à época da covid, houve rapidamente colapso da rede de saúde. Como esta onda vai ser mais lenta, muito menos aguda e incisiva do que no momento da covid, acredito que vai haver algum gargalo, alguma dificuldade. Mas essa dificuldade pode ser transposta, pode ser um obstáculo vencido se houver agilidade na área de saúde, para que também, eventualmente, unidades básicas ou unidades de hospitais de campanha sejam abertas para receber algumas dessas enfermidades que eventualmente aparecerão nas próximas semanas ou meses.
O que se pode fazer em termos de proteção das pessoas no atual no momento?
A primeira ação é garantir água potável para a maioria da população, para que não se faça uso de água estagnada, ou cisternas, ou até como nós presenciamos e vimos em algumas reportagens televisivas, onde apareciam pessoas cavando a lama e ali mesmo faziam uma filtração de água para poder subsistir. Portanto, a primeira coisa é garantir água potável. A outra coisa é garantir minimamente algum grau de alimentação aos indivíduos, seja por doação ou compra a partir desse próprio fomento que o governo deu, ou de uma linha especial para evitar a desnutrição.
Há uma possibilidade muito clara de que apareçam casos de diarreia infecciosa por causa desses cuidados precários com a água, com a própria saúde, com a alimentação, e no saneamento é a mesma coisa. O principal é garantir que cidades ribeirinhas ou desprovidas de saneamento básico ou encanamento possam ter a coleta de dejetos feita de uma maneira minimamente adequada. Do ponto de vista de saúde pública é essencial.
A seguir, deve-se armar as unidades básicas de saúde, equipamentos de saúde da família, a depender do que existe em cada município, com visitação ativa dos agentes de saúde para descobrir se já há indivíduos com algum grau de adoecimento, porque qualquer doença infecciosa, numa situação desse tipo, é mais fácil de se alastrar do que numa situação de normalidade. Não se tendo equipes de saúde da família, as unidades de atendimento básico devem ser reorganizadas e as que não estiverem organizadas devem ser minimamente equipadas para determinadas situações, como as próprias doenças respiratórias, infecciosas, como as pneumonias, gastroenterites e diarreias infecciosas.
Portanto, o mínimo é colocar as equipes de atenção básica em prontidão e melhor organizadas para uma situação como essa e direcionar profissionais até a atenção básica, que mais vai sofrer nesse primeiro momento.
A associação das indústrias do estado anuncia férias coletivas para seus trabalhadores, o que deve afetar até 100 mil pessoas diretamente empregadas no setor, fora as pessoas que trabalham de forma indireta para este polo industrial, além de diversas outras atividades econômicas prejudicadas. Depois de todo o trauma que o isolamento social causou na pandemia, podemos estar diante de novos episódios que nos levem a reviver momentos como aquele? Em outras palavras, episódios de colapso climático como o que se vive no Amazonas são prenúncio de um futuro onde novos acontecimentos deste tipo afetarão a reprodução da vida cotidiana em seus aspectos mais básicos?
Sem dúvida, é uma observação correta. Em algumas pequenas comunidades vai haver, certamente, um isolamento, porque é diferente estar no grande centro, na capital, e em cidades mais interioranas, distantes de um grande centro. Vai haver desemprego, porque se isto perdurar, muito provavelmente as indústrias não poderão ganhar tempo, como agora, de forma indefinida e talvez fiquem sem outra saída. Normalmente, a saída econômica para as grandes indústrias e empresários é reduzir o custo imediato. Assim, se isso perdurar teremos demissões.
Outro problema é que boa parte da nossa população não está apta a desenvolver uma segunda atividade. A informalidade pode ser bem maior. Vai haver isolamento, porque todo o trânsito de mercadorias nesta região do país se faz por hidrovias, que agora não estão navegáveis e prejudicam o comércio. Até para fugir de uma maior dificuldade, provavelmente aqueles que tiverem algum recurso vão se deslocar para outros centros, mas os indivíduos com menos recursos vão ficar jogados à própria sorte, aguardando uma resolução, pelo menos uma ajuda do governo, e ficarão torcendo para o clima virar rapidamente e assim retomar suas vidas. O impacto social é grande. O impacto financeiro, muito provavelmente, vai ser maior e isso vai ficar ainda mais sentido, mais fácil de ser percebido, não por aqueles que já estão lá e já estão sofrendo, mas por quem está assistindo de camarote, como todo o resto do Brasil, a partir do momento em que a seca perdurar.
Outro aspecto é que no Norte não há grande adaptabilidade dos indivíduos à mudança de clima, coisa que acontece, por exemplo, no sertão nordestino, onde indivíduos têm 10 ou 12 meses, às vezes dois anos de completa seca e quando chove 5, 10 milímetros, uma coisa muito pequena, toda a produção agrícola e pecuária de pequeno porte é desperdiçada ou perdida, até para o próprio sustento.
Portanto, sem dúvida nenhuma, vai haver isolamento. E pode haver até algum tipo de conflito, porque na hora em que a situação começar a apertar imagine vários grupos familiares que precisam sustentar seus filhos menores, indivíduos idosos e olham para um lado e para o outro e não conseguem se transportar daquele lugar, não só pela falta de navegabilidade de qualquer hidrovia, mas principalmente por falta de qualquer opção.
É uma situação bem delicada e que, curiosamente, poderia ter sido prevista, pois já temos condições técnicas para nos antecipar. O próprio Rio Amazonas teve uma queda de volume muito acentuada, que eu particularmente nunca tinha visto isso desde o meu tempo de muito jovem. Isso realmente é preocupante para o modo de vida, principalmente dos ribeirinhos e dos indivíduos distantes dos grandes centros.
Quais seriam as soluções de curto e longo prazo em sua visão? O que deveríamos aprender disso?
Precisamos de educação climática, se eu posso dizer assim, educação social, uma educação sobre o nosso próprio ecossistema, porque nós somos os nossos próprios predadores. Nós estamos poluindo muito rapidamente os nossos rios, nós estamos poluindo muito rapidamente a atmosfera, com uma pletora de veículos para baixo e para cima, com desperdício muito grande de alimentos, de insumos, com muito lixo produzido, principalmente lixo que não é degradado rapidamente. Jogamos fora a maior parte do que consumimos, como plástico, e vamos esperar de 90 a 100 anos para ser degradado, quer dizer, não vai dar tempo.
Nós estamos sofrendo com a doença do progresso e com uma deseducação ambiental muito grande, pois não é a cultura habitual do Brasil. A médio e curto prazo, eu acho que deve haver, sim, alguma intervenção governamental no ponto de vista de educação, desde as escolas primárias, o ensino fundamental, até indivíduos já formados, donos de empresa, cidadãos comuns. Infelizmente, vejo que nós só aprendemos com a própria punição. Portanto, se houvesse algum tipo de multa ou contrapartida incisiva para poluidores deveríamos aplicar.
As leis ambientais ainda são muito frágeis no Brasil, são muito permissivas com a poluição, tanto individual como de escala. Mas tamanho esforço, no final das contas, depende de muitos outros países, pois uma nação que quer se desenvolver e está no meio do caminho entre os desenvolvidos e os não desenvolvidos não se incomoda muito em poluir.
As grandes potências, a meu ver, exigem bastante, fazem uma pressão bastante grande sobre aqueles países que estão em desenvolvimento industrial. No entanto, boa parte da Europa ainda usa termoelétrica e nuclear. Boa parte da Europa disse que vai usar o carro elétrico, entretanto, como vai produzir a bateria do carro elétrico se não têm hidroelétrica, por exemplo? Boa parte dos Estados Unidos, embora também coordene vários outros grupos globais, ainda está na era dos combustíveis fósseis e estimula isso de maneira relevante. Precisamos de um alinhamento global a longo prazo, mas talvez não esteja aqui para ver.
Em nível nacional, precisamos investir bastante em educação ambiental e endurecer a legislação. A curto, médio e longo prazo, educação e, talvez, leis mais rígidas, como existe uma lei um pouco mais adequada no trânsito para o indivíduo que ingere bebida alcoólica. No passado, nada disso era sequer cogitado, agora existem leis que pelo menos estabelecem alguns parâmetros. Isso pode ser feito mais rapidamente.
Mais amplamente, temos um sistema meteorológico que pode prever, com alguns meses de antecedência, qualquer tipo de mudança climática. Assim, precisamos olhar para regiões que não são bem abastadas ou não têm recursos para respostas muito rápidas e fazer algum tipo de ação preventiva. Não é o habitual no nosso país, mas vejo dessa forma. Na qualidade de médico, eu preferiria que todas as ações fossem de prevenção e não curativas ou emergenciais, porque tudo que é emergencial é algo que não foi pensado ou, se foi pensado, deixado para correr à revelia.
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Moradores caminham de uma margem a outra do rio Amazonas para encontrar lagos para pescar, em Tefé, Amazonas. Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace