A fome e a pobreza são uma obra da elite do atraso. Por Antonio Prado

Em Terapia Política

A Agenda 2030 contém 17 objetivos que são interdependentes e sinergéticos. Trata-se de uma ampla agenda de desenvolvimento com metas e com indicadores bastante claros para a maioria delas. No entanto, está bastante comprometida em sua realização com a desaceleração do crescimento da economia mundial e pelos efeitos prolongados da pandemia de Covid-19.

A Agenda foi lançada em 2015, logo após a segunda onda da crise financeira que atingiu a Europa e o resto do mundo mais fortemente. A América Latina e Caribe, que havia resistido bem aos desdobramentos da quebra do Lehman Brothers, começou a sofrer fortes abalos no pós-2014.

Por isso, os dois primeiros Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS: ODS-1 e ODS-2, que tratam da pobreza e da fome, não só não apresentaram evolução positiva, como havia ocorrido nos três quinquênios anteriores, como regrediram no pós-2014.

As taxas de pobreza e extrema pobreza pioraram significativamente nos últimos anos na região. A Cepal informa que a pobreza na América Latina e Caribe chegou a 201 milhões de pessoas, em uma taxa de 32,1%, em 2022. A extrema pobreza chegou a 82 milhões de pessoas, ou seja, 13,1% da população total.

Em 2014, a taxa de pobreza estava em 27,8%. Nestes oito anos, desde o lançamento da nova agenda de desenvolvimento da ONU, ocorreu um aumento de 4,3 pontos percentuais (pp). Isto significa que mais 39 milhões de latino-americanos voltaram à condição de pobreza. Pior ainda no caso da extrema pobreza, no qual o aumento foi de 5,3 pp., ou 37 milhões de pessoas cruzando de volta a linha da miséria.

O aumento da extrema pobreza representou 95% do aumento da pobreza total. Um fenômeno brutal, pois o que define a extrema pobreza é a incapacidade das pessoas de comprarem os alimentos necessários para uma vida saudável.

O que ocorreu neste período? Além do baixo crescimento e do aumento do desemprego, os preços dos alimentos subiram muito acima dos outros preços do consumo familiar.

No período 2014-2021, os preços dos alimentos na América Latina e Caribe (não incluem Argentina e Venezuela) subiram 30% e os preços de não alimentos, 22%. Logo, as pessoas da base da pirâmide de rendimentos sofreram com um crescimento dos preços dos alimentos 35% superior ao dos outros produtos e serviços.

O Brasil não ficou imune a esta regressão na situação da pobreza e da fome. Os avanços nos governos Lula e Dilma se perderam durante os governos de Temer e Bolsonaro. Em 2016, o governo Temer, que assumiu após o golpe do impeachment de Dilma, abandonou de fato os compromissos do país com a agenda de desenvolvimento da ONU, Agenda 2030, construída por iniciativa e esforço dos 193 países membros da Organização. Esta foi a mensagem dada pela Emenda Constitucional 95, conhecida como o teto de gastos. A Agenda 2030 implicaria um aumento dos gastos sociais por habitante, coisa que o teto de gastos não permitiria.

Já o governo Bolsonaro assumiu com a promessa de desconstruir as políticas sociais dos governos anteriores. Abandonou a política de valorização do salário mínimo, congelou o Bolsa Família até o ano eleitoral de 2022, esvaziou o CONSEA, descontinuou os Programas de Alimentação Escolar (PNAE) e de Aquisição de Alimentos (PAA), desorganizou e esvaziou os armazéns da Conab, desorganizou o MEC, o MMA, o MS, SUS, SUAS, Minha Casa Minha Vida, Programa de Cisternas, além de outras centenas de programas em vários ministérios. A política de redução da pobreza e da fome, composta por políticas e programas integrados e sinergéticos, deixou de existir com o formato anterior.

O resultado foi avassalador. Após termos vencido a fome e retirado o país do Mapa da Fome da FAO/ONU, regredimos à situação vexatória de sermos o quarto maior produtor de alimentos do mundo, segundo exportador de grãos e carnes e, ao mesmo tempo, termos milhões de pessoas em situação de extrema pobreza e fome. A fome e a extrema pobreza não apenas resultam da indiferença das elites do atraso, são seu projeto.

Segundo dados da Cepal, publicados em seu último Panorama Social, em 2014 tínhamos no Brasil, 3,5% da população na extrema pobreza e 17,4% na pobreza. Em 2021, a situação já era outra e muito mais grave. Estavam na extrema pobreza 8,3% da população e na pobreza, 24,3%. O importante é ressaltar que os primeiros três quinquênios dos anos 2000 foram de forte redução da pobreza e extrema pobreza e que esta trajetória foi revertida.

A taxa de pobreza subiu 40% e a de extrema pobreza, 140% num período de oito anos. Isto está associado não apenas ao crescimento do desemprego e à estagnação econômica, mas ao forte aumento dos preços dos alimentos e bebidas vis a vis aos de não alimentos. Este impacto é mais visível no período da pandemia de Covid-19. Segundo os dados do IBGE-IPCA, nos três primeiros anos da crise sanitária, 2020-2022, os preços dos não alimentos subiram 13,04%, enquanto os preços de alimentos e bebidas subiram 37,47%, quase três vezes mais rápido.

Neste contexto de destruição das políticas de combate à pobreza e à fome, não surpreende a regressão social em que nos encontramos. São 21,1 milhões de pessoas passando fome em 2022, segundo a FAO-ONU. No período 2014-2016, o Brasil ainda tinha 1,9% da população em situação de severa insegurança alimentar, mas com um número menor do que o considerado para estar no Mapa da Fome, que é de 2,5%. No período 2020-2022, o salto é para 9,9% ou 17,1 milhões de pessoas a mais.

Em 2022, após fortes pressões do Congresso Nacional, o governo de extrema direita decidiu aumentar o auxílio emergencial para R$ 600,00 até o final do ano, sem previsão de continuidade para 2023 (no orçamento do governo Bolsonaro para 2023 estava previsto R$ 400,00). Foi uma jogada eleitoreira, entre tantas outras adotadas de forma nada séria. Este alívio monetário não foi suficiente para mudar a situação. A razão está no fato de que as transferências de renda de programas como Bolsa Família e Auxílio Brasil tem um efeito menor como medida isolada. O sucesso do Bolsa Família na redução da extrema pobreza e da fome no Brasil, durante os governos de Lula e Dilma deu-se porque a transferência de renda fez parte de uma política social sistêmica, já prevista desde as formulações do programa Fome Zero, em 2002.

Neste momento, a atenção do governo Lula está concentrada na reconstrução das instituições e instrumentos de políticas orientadas para a redução da pobreza e da fome. Uma pré-condição importante é o crescimento econômico sustentável. Nenhuma política social tem alta eficácia em um ambiente continuado de estagnação econômica. Em dezembro de 2022, as estimativas das instituições financeiras brasileiras, do Banco Mundial, FMI, OCDE eram de um crescimento do PIB abaixo de 1%, em 2023. A equipe de transição no novo governo Lula conseguiu negociar o orçamento de 2023 antes mesmo de assumir, o que já permitiu a aprovação de recursos para programas sociais e para investimentos públicos. O resultado é que 2023 terminará com um aumento do PIB estimado em 3,0% e um PIB per capita 2,5% superior.

A manutenção do crescimento do PIB é um importante desafio, já que a geração de empregos e a queda da taxa de desemprego contribuem para o aumento da renda real dos ocupados e com a redução da pobreza. Há um importante obstáculo no caminho, que é a política monetária do Banco Central, que insiste em manter as taxas de juros em valores reais insustentáveis, acima de 8% ao ano, mesmo com a inflação em trajetória de queda. O mesmo pode ser dito sobre a política fiscal, que ainda não revela claramente a possibilidade de ampliar gastos suficientes em investimentos, necessários para sustentar a trajetória ascendente do PIB. Uma compensação está numa ação mais forte dos bancos públicos, principalmente o BNDES.

Quanto às políticas mais específicas, o governo retomou a política de valorização do salário-mínimo, que havia subido 77% em termos reais no período Lula e Dilma (2003 a 2015). Isto permitiu não só um crescimento nas remunerações no mercado de trabalho, como também no piso das aposentadorias e nas prestações da LOAS. Agora poderá ser mais um fator para a melhora das condições de vida da população, abandonada pelas políticas ultraliberais do governo anterior.

A reativação do CONSEA, da CAISAN – Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e das políticas de aquisição de alimentos (PAA), alimentação escolar (PNAE), crédito à agricultura familiar, programa de cisternas, Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, fazem parte de uma difícil, mas necessária reconstrução das políticas sociais brasileiras e da retomada do desenvolvimento sustentável.

A fome e a pobreza são as expressões mais dramáticas do abandono do desenvolvimento econômico e social de um país. E como já alertava Josué de Castro, a fome é um fenômeno social, com determinantes estruturais, políticos e econômicos. Não é um mal natural.

Nota:
Agradeço aos dados enviados por Giaccomo Baccarin e Daniel Perroti, que foram muito importantes para elaborar este artigo.

Ilustração: Mihai Cauli

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