Norte-americanos idosos que pagaram planos de saúde a vida inteira ficam sem assistência. Lá, como aqui, empresas entram em crise e cresce debate sobre um sistema público. Mais sinais da inviabilidade do setor?
por Guilherme Arruda, Outra Saúde
Contratar um seguro de saúde privado da modalidade long-term care (em inglês, cuidado a longo-prazo), pagá-lo sem falta por mais de quarenta anos e, quando finalmente precisar de seus serviços, não ter acesso a praticamente nada útil para seu bem-estar. O cenário é desesperador – mas, para muitos estadunidenses, real. Uma reportagem do The New York Times lançada na última quarta-feira (22/11) conta a história de alguns deles e seus parentes, enganados pelas seguradoras e contraindo novas dívidas para garantir uma velhice digna para si ou seus entes queridos.
Em alguns detalhes, a história lembra o quadro atual da saúde suplementar no contexto brasileiro. No país, como vem acompanhando Outra Saúde, os casos de negação de cobertura no setor privado têm se multiplicado, gerando enorme insatisfação entre seus usuários. No âmbito da contabilidade, assim como nos EUA, registra-se um movimento duplo, aparentemente contraditório: por um lado, aumentos nos preços dos planos e redução dos serviços ofertados, por outro, uma constante queda em seus lucros. No primeiro trimestre de 2023, aliás, houve prejuízo operacional no setor, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) – as operações no mercado financeiro é que “salvaram” as contas das empresas.
Outra das principais similaridades entre os cenários do Brasil e dos Estados Unidos está no crescimento da judicialização, que, como notou o pesquisador José Sestelo em entrevista a este boletim, tende a se originar precisamente na negação de cobertura. Essa identidade de problemas sugere um quadro geral de crise da saúde privada no mundo – que, acrescentou Sestelo à época, pode estar se tornando insustentável.
A reportagem norte-americana, ao reunir relatos de vidas vulnerabilizadas pelo processo de falência do modelo mercadológico de cuidado, abre a discussão: que papel o setor privado ainda pode cumprir na garantia da saúde? “Muitos especialistas já dizem que é necessário um programa público”, sugere o jornal nova-iorquino, que também conta como o estado de Washington iniciou neste ano uma experiência nesse sentido.
O cenário norte-americano…
A partir dos anos 1970, tornaram-se populares nos Estados Unidos os seguros de saúde do tipo long-term care: planos que prometiam garantir os cuidados necessários para quando os que os contratassem estivessem com idade avançada, doenças crônicas ou deficiências. Uma aposta de que, no futuro, o seguro cobriria tudo e a terceira idade poderia ser um momento de paz.
Hoje, já idosos e necessitando do serviço que contrataram, essas pessoas estão descobrindo que as seguradoras não têm condição de entregar o que ofertaram, denuncia a reportagem. Os preços praticados, relativamente baixos e por isso atrativos, não cobrem os custos dos serviços médicos – e o cuidado está sendo sumariamente negado a centenas de milhares de pessoas. “Estamos sendo punidos pela falta de capacidade de previsão deles”, diz um americano ao jornal.
Para apertar os cintos, além de negar cobertura aos clientes antigos, as empresas pressionam o bolso dos que ainda não chegaram à idade de precisar dos cuidados contratados. Em uma década, o preço dos planos subiu, em média, 35% – mas há relatos de mensalidades que dobraram de valor. Possíveis novos segurados estão sendo rejeitados em massa. Números de 2021 reunidos pela reportagem ilustram: uma a cada cinco pessoas entre 50 e 59 anos teve seu pedido de adesão a um plano de long-term care negado. Na faixa etária de 60 e 64 anos, foram 30%. Entre 70 e 74, a cifra chega a 47%.
Até agora, nenhuma dessas medidas impediu o setor de cair no vermelho. De acordo com a Fitch Ratings, a saúde privada dos EUA teve perdas de US$2,3 bilhões em 2019. Em 2020 e 2021, a pandemia trouxe de volta magros lucros – muitos segurados morreram, enquanto outros se isolaram e não recorreram aos serviços. No ano seguinte, o dinheiro voltou a minguar: o prejuízo foi de US$304 milhões.
As seguradoras alegam que o envelhecimento da população estadunidense é um dos motivos para a conta de seu negócio não estar mais fechando. De 1950 a 2000, a longevidade média dos norte-americanos subiu de 68 anos para 77 anos – e, salvo oscilações ligadas à pandemia da covid-19 e à epidemia de opioides, está estável desde então. Mas é difícil dizer que isso não poderia ser previsto ou pelo menos administrado ao longo das décadas.
Na falta de uma alternativa que ofereça o cuidado exigido por essa crescente massa de idosos negligenciada pela saúde privada, os norte-americanos se dividem entre diferentes saídas – em geral, não muito vantajosas. Uma delas, não acessível a todos, é recorrer ao Medicaid, programa que oferece subsídios parciais aos custos de saúde mas cuja participação está restrita aos muito pobres. Outro caminho é o de contratar um segundo seguro privado, que cubra o que o primeiro se recusa a cobrir. Evidentemente, uma solução cara. Desesperados, alguns recorrem até ao crowdfunding.
A solução do problema pode estar em fazer o que nunca foi feito na maior potência capitalista do globo: um sistema de saúde pública. Como o próprio jornal estadunidense aponta, “muitos especialistas já dizem que é necessário um programa público” de saúde que ofereça o long-term care. O cenário político, hegemonizado pelo lobby dos grandes interesses econômicos, é adverso. Tentativas de criar um programa público de cuidado voltado para idosos já foram derrotadas no Congresso estadunidense em 2013 e 2021.
Há pouco mais de seis meses, o estado de Washington criou o WA Cares Fund, que pretende preencher essa lacuna – mas em tão pouco tempo não é possível falar de êxito ou fracasso. Até lá, centenas de milhares de idosos naquele país seguirão acossados pelo desmando de planos que não entregam o que vendem e roubados de seu direito à saúde.
… e o quadro brasileiro
No Brasil, apesar de compartilhar diversas características do imbróglio estadunidense relatados pelo NYT, diversos fatores mitigam o impacto da crise da saúde suplementar. O primeiro e mais importante, claro, é a existência do Sistema Único de Saúde (SUS), público, universal e gratuito. Outro é a existência de lideranças políticas que defendem o SUS da precarização e que enfrentam os abusos dos planos de saúde – é difícil encontrar exemplos similares no bipartidarismo de pensamento único dos EUA.
Mas nada disso, porém, significa que os impasses no setor privado são irrelevantes. 25% da população contrata a saúde suplementar e espera a cobertura de seus serviços, mas vê seus planos serem arbitrariamente cancelados e recorre cada vez mais à judicialização para ser atendida.
Fenômenos como o reajuste abusivo dos preços e não-cumprimento de contratos estão se tornando mais comuns em meio a um cenário de envelhecimento dos clientes e empobrecimento da população, assim como se vê na América do Norte. Isso tudo em meio a resultados financeiros cada vez mais minguados para os grandes grupos econômicos da saúde – o que sugere que simplesmente pressioná-los a cumprir o que prometem pode não resolver a questão, apesar de ser um caminho justo.
Pode a saúde suplementar estar se tornando cronicamente inviável? É um debate que atrai a reflexão de cada vez mais sanitaristas, empresários, professores universitários e formuladores de políticas públicas.
A opção pelo fortalecimento da saúde pública (inclusive reduzindo a sangria de recursos públicos para os bolsos privados), seja no Brasil ou nos Estados Unidos, parece estar se tornando mais atrativa. E a saúde suplementar, como afirmou a presidente da Abrasco Rosana Onocko-Campos a Outra Saúde, pode estar sendo movida para uma posição em “que ela seja, de fato, suplementar”.
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Imagem: Em manifestação, estadunidense segura cartaz com uma frase de duplo sentido. Quer dizer tanto “norte-americanos estão morrendo, vítimas do sistema de saúde” quanto “norte-americanos clamam por um sistema de saúde”. Foto: Time