Caso Banco do Brasil: MPF abre consulta pública sobre propostas de reparação da escravidão

Durante 60 dias, população em geral, entidades e movimentos sociais poderão apresentar propostas sobre o tema

Procuradoria da República no Rio de Janeiro

Em mais uma atuação no âmbito do inquérito que apura a responsabilidade e participação do Banco do Brasil na escravidão, o Ministério Público Federal (MPF), por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro (PRDC/RJ), abriu consulta pública sobre o tema. Durante 60 dias, a população em geral, as entidades e os movimentos sociais terão a oportunidade de se manifestar sobre o inquérito que tem por objeto Tráfico de Pessoas Negras Escravizadas e o Banco do Brasil: Direito à Reparação, especialmente quanto à apresentação de propostas sobre as formas como deve ser feita essa reparação.

Os interessados em participar da consulta pública podem apresentar sugestões e propostas sobre formas de reparação, por meio de protocolo no MPF – fazendo referência ao inquérito (IC 1.30.001.004372/2023-13) – ou enviando e-mail à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Rio de Janeiro (PRDC/RJ), no endereço eletrônico [email protected].

Frentes de discussão sobre reparação – No despacho que determina a consulta pública, os procuradores regionais dos Direitos do Cidadão Jaime Mitropoulos, Julio Araujo e Aline Caixeta analisam os desdobramentos do inquérito até o momento e os avanços já obtidos. O MPF ressalta, por exemplo, a importância do pedido de desculpas apresentado pelo banco em audiência realizada em 18 de novembro. A medida é considerada histórica, pois o banco “quebrou o silêncio sobre a sua própria história, contribuindo para um amplo debate público acerca dos efeitos da escravidão e para a necessidade de olharmos o passado com vistas a enfrentar nossas mazelas no presente e no futuro”.

Contudo, os procuradores entendem que o pedido de perdão não é suficiente. “Se, por um lado, é inadmissível que convivamos com o apagamento e o silêncio ante essa tragédia histórica, mostra-se fundamental, por outro, que não nos limitemos a um mero pedido de desculpas, por melhores que sejam as intenções”, destaca o despacho da PRDC/RJ. Por essa razão, os membros do MPF defendem o aprofundamento da reflexão sobre a “tarefa imprescindível de reparar”. Além disso, os procuradores destacam que as iniciativas que o banco apresenta ainda não atendem ao propósito da reparação, pois são limitadas no tempo e não enfrentam problemas estruturais.

Para discutir reparação, os procuradores defendem três caminhos importantes. Em primeiro lugar, realçam a necessidade de aprofundar e detalhar medidas de memória e verdade, por meio de pesquisas. Como desdobramento desse trabalho, o MPF sugere a criação de uma plataforma de pesquisas sobre a temática, o adequado tratamento da história “oficial” do banco, o financiamento de iniciativas de história pública e de material didático para ampla divulgação. Ao mesmo tempo, os procuradores defendem a informação permanente à sociedade sobre a questão, por sítios eletrônicos, exposições e publicações.

Em segundo lugar, o MPF sustenta a necessidade de o banco adotar processos internos que sinalizem, na prática, enfrentamento do fato de que a escravidão é constitutiva de sua formação. “Já não se trata mais de avançar em programas específicos ou focais, e sim de repensar a própria forma como o banco encara os temas e acelera a sua transformação em prol de uma agenda de reparação de sua própria história”, destaca o documento. Como realizações, os procuradores mencionam a racialização plena das atividades do banco em recrutamento, treinamento, orientação profissional, posições de liderança etc.

Para os procuradores, o próprio pensamento institucional deve estar baseado em premissas relacionadas à dívida histórica, aptas a ensejar processos de reparação de curto, médio e longo prazos. “Não basta cultivar uma narrativa de diversidade quando a maioria do quadro de lideranças e funcionários é quase exclusivamente branca – ressalvado o fato emblemático e histórico de a atual presidente ser negra -, pois os pactos de branquitude acabam sendo baseados na autopreservação e no componente narcísico, o que demanda enfrentamento atual e urgente”, destacam.

Em terceiro lugar, o MPF defende a discussão sobre um plano de reparação com a sociedade brasileira. Algumas propostas feitas na audiência realizada na sede da Portela são destacadas e demandam melhor desenvolvimento. Por isso, os procuradores decidiram pela abertura da consulta pública.

Pedido de informações – Ao fim do despacho, o MPF solicita a manifestação do Banco do Brasil, no prazo de 20 dias, acerca de questões que ainda não foram esclarecidas, como a existência de pesquisas financiadas pelo banco que detalhem e aprofundem a discussão sobre a sua própria história. O despacho determinou também o agendamento de reunião com a direção executiva do banco.

InquéritoInstaurado em setembro deste ano pela PRDC/RJ, após manifestação apresentada por um grupo de 14 professores e universitários, o inquérito civil tem o objetivo de promover a reflexão sobre o tema para garantir que crimes contra a humanidade como esse jamais se repitam. A medida também busca garantir mecanismos de reparação com um olhar voltado para o presente e o futuro, em uma discussão sobre memória, verdade e justiça.

Os pesquisadores de diversas universidades brasileiras e estrangeiras apontaram a participação do banco do Brasil no tráfico transatlântico e a necessidade de apuração e debate sobre a responsabilidade de instituições do país envolvidas com a escravização de pessoas no século 19. No caso do Banco do Brasil, os historiadores apuraram que havia relação de “mão dupla” da instituição financeira com a economia escravista da época, que se revelava no quadro de sócios e na diretoria do banco, formados em boa parte, por pessoas ligadas ao comércio clandestino de africanos e à escravidão.

Linha do tempo – Após a abertura do inquérito, diversos passos para cumprir os propósitos da investigação já foram dados, como a realização de reuniões e de audiências públicas e a apresentação de pedido de desculpas do Banco do Brasil.

– 27 de outubro MPF realiza reunião com representantes do Banco do Brasil, pesquisadores e órgãos como os Ministérios da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e Cidadania para tratar do inquérito. Na ocasião, historiadores tiveram a oportunidade de apresentar estudos e percepções em relação ao banco ter se beneficiado, no passado, do contrabando de africanos. Já os representantes do banco destacaram que a análise deve considerar o contexto histórico, social, econômico, jurídico e cultural do período em que se desdobram os fatos.

– 6 de novembro MPF envia ao Banco do Brasil mais estudos sobre a participação da instituição financeira no tráfico de africanos no século 19. O material, assinado por 14 professores e pesquisadores de universidades brasileiras e estrangeiras, traz a indicação bibliográfica de teses e artigos.

– 18 de novembro – MPF realiza a audiência pública Consciência Negra e Reparação da Escravidão para discutir a reparação para a população negra pelo período da escravidão no Brasil. A atividade foi realizada na quadra da escola de samba Portela e teve como objetivo ampliar a escuta da sociedade civil e dos movimentos negros, além de aprofundar o debate sobre as formas de reparação.

– 18 de novembro – Banco do Brasil pede perdão ao provo negro. Em comunicado apresentado durante audiência pública para tratar do tema, o banco também divulgou um conjunto de medidas com o objetivo de promover a igualdade e a inclusão étnico-racial e combater o racismo estrutural no país.

Íntegra do despacho

Imagem ilustrativa: Secom/PGR – MPF

Comments (4)

  1. Eu concordo com o Documento do Quilombo Raça e Classe Nacional que o Banco do Brasil, Faça Reparações de tudo que usufruiu às custas do suor, das torturas, dos estupros e sangue do nosso povo Negro que foram sequestrados da África e feito peças, coisas e escravizados…
    Com esse tráfico negreiro o Banco do Brasil foi enriquecendo e se desenvolvendo cada vez mais…

  2. Campo Grande-MS, 09/02/2024.

    De: QUILOMBO RAÇA E CLASSE -MS

    Para: MPF MS – Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul

    Com Cópia: PRDC/RJ – Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Rio de Janeiro

    Assunto: Propostas para o inquérito (IC – 1.30.001.004.372/2023-13) “Tráfico de pessoas Negras Escravizadas e o Banco do Brasil: Direito à Reparação”

    Proposta apresentada pelo QRC – Quilombo Raça e Classe Nacional
    (Que assinamos estar de acordo)

    1. Apresentação

    O Movimento Nacional Quilombo Raça e Classe – QRC é uma organização do movimento negro brasileiro, filiado a CSP-CONLUTAS, que reivindica a necessária articulação de classe e raça para superar o racismo, a formação social capitalista e conquistar a emancipação humana. Priorizamos a organização e luta direta da classe trabalhadora negra no combate ao racismo e conquista da política de Reparação histórica.
    O QRC tem a convicção que o racismo é uma práxis orgânica do capitalismo. Por essa razão, estamos nas ruas, praças, ao lado de quilombolas, indígenas, estudantes e trabalhadores (as) no combate direto contra todas as formas de discriminação, no intuito de construir uma sociedade onde as desigualdades sociais e o racismo sejam apenas um conteúdo de História das escolas e universidades. Estamos presentes em vários estados do Brasil, organizando um movimento negro com independência de classe, internacionalista e que não dissocia a luta contra o racismo, da luta pela destruição do capitalismo.

    2. O QRC e o inquérito que apura a responsabilidade e participação do Banco do Brasil na escravidão

    O QRC entende que a conexão entre racismo e capitalismo capitaneado por empresários da indústria, comércio e agronegócio, além de grileiros, madeireiros e toda espécie de criminosos e concentradores de terra no Brasil, historicamente desenvolveu uma política genocida contra indígenas, trabalhadores do campo, quilombolas e classe trabalhadora negra.
    Entendemos que toda a violência e desigualdade racial e social que atinge a classe trabalhadora negra é resultado direto de um projeto de país que se alicerçou na base da escravidão, concentração de terra e renda e monocultura para exportação. Tanto a herança escravista, quanto a formação do capitalismo dependente brasileiro geraram e geram inúmeras formas de discriminação, violência e desigualdade. Neste processo histórico, inúmeras empresas, instituições financeiras e famílias abastadas no Brasil se beneficiaram dos espólios da escravização de milhões de africanos, como demonstra o estudo do conjunto de pesquisadores e historiadores no que se refere ao Banco do Brasil, que deu origem ao inquérito em questão.
    E, é necessário ressaltar que nesses mais de 200 anos do BB, essas famílias, empresas nacionais e multinacionais, seguem sendo continuamente financiadas em seus negócios, com subsídios, financiamentos, empréstimos e suporte em geral na manutenção e ampliação de suas riquezas, sem nenhuma ressalva ou questionamentos sequer.
    Nesse sentido, quando nos coube participar, acompanhamos e participamos ativamente das atividades organizadas pelo Ministério Público, desde o início. É tendo consciência dessa história, que o QRC se soma aos movimentos negros, social e políticos no apoio ao inquérito – (IC 1.30.001.004372/2023-13) – que tem por objeto o “Tráfico de pessoas Negras Escravizadas e o Banco do Brasil: Direito à Reparação”, apresentando nossas propostas de como deve ser feita essa Reparação à classe trabalhadora negra.

    3. O QRC e nossa posição quanto à Reparação Histórica

    É possível conquistar a “igualdade racial” no contexto capitalista, apenas com políticas compensatórias e assistencialistas ad infinitum? As políticas públicas afirmativas garantirão, por si só, a “igualdade racial” tão desejada pelos movimentos negros?
    O prioritário, para nós do QRC, não é mudar, exclusivamente, primeiro a legislação e a mentalidade racista, para depois transformar nossa realidade; mas, em ato contínuo, transformar radicalmente as relações sócio-raciais brasileiras que numa combinação de classe e raça alocam lugares subalternos e inferiores à classe trabalhadora negra.
    Para um setor expressivo do movimento negro, as políticas identitárias e da diversidade tem sido o corolário da emancipação negra, confundindo igualdade social com o estatuto puramente jurídico abstrato formal da igualdade de oportunidades, sem nenhuma ação estrutural e concreta para transformar a realidade da população negra empobrecida. O orçamento do Ministério da Igualdade Racial, por exemplo, é o menor de todos os ministérios. A política de segurança e titulação dos territórios quilombolas é um completo fracasso, basta ver as inúmeras notícias de assassinatos e invasão de territórios quilombolas. A Política de cotas, continua obliterada por um corte social, além de não ter uma política ampla e profunda de permanência dos alunos cotistas nas Universidades. O genocídio e o encarceramento da juventude negra continuam com números elevados Todos esses exemplos, nos mostram que as políticas de ações afirmativas são importantes, mas insuficientes em seu propósito de garantir “igualdade racial”, pois não significam ações profundas e transformadoras, como as Reparações reivindicadas historicamente por um setor do movimento negro. É dessa forma que se garante, por exemplo, a introdução da lei 10.639/2003 no plano jurídico, mas não se garante o financiamento, nem a estrutura suficiente para a formação e viabilização da lei.
    A classe trabalhadora negra, por ser duplamente explorada e oprimida, é atingida pelo capital com mais virulência. Sendo assim, a luta da classe trabalhadora negra deve revestir-se de um conjunto de demandas e articulações que envolvam um processo permanente da luta negra pela emancipação e eliminação do racismo. É praticamente unânime entre as entidades do movimento negro que a abolição do sistema escravista não representou de fato a emancipação da população negra, pois não tiveram indenização, garantia de direitos sociais e passaram a conviver com todas as configurações brutais de discriminação em suas formas de viver e fazer cultura. Destacamos o fato de ter havido uma abolição sem Reparação. Então, de um lado, tem a denúncia da farsa da abolição e, de outro, o escancaramento da realidade explorada e oprimida que a maior parte da população negra passou a enfrentar no território nacional. Por isso uma abolição sem Reparação representou a manutenção da ordem dominante. O país continuou com uma concentração de renda e terra das maiores do mundo, sustentada na agro exportação monocultora. Manteve-se o sistema de propriedade e de obtenção de lucro, no qual o Banco do Brasil foi um dos grandes beneficiados, como destaca o estudo dos historiadores.
    Na maior parte da legislação referente à política de “promoção da igualdade racial” é como se, ao garantir “igualdade de oportunidades”, a desigualdade social e/ou racial desapareceria. No entanto, é preciso ratificar que o que gera a desigualdade social não é a falta de oportunidades, mas o modus operanti da formação social capitalista. Em outras palavras, o capitalismo pressupõe a desigualdade real articulada com a igualdade formal, igualdade de oportunidades, isto é, igualdade jurídica. Desigualdade social e ausência de oportunidades se retroalimentam constantemente, do mesmo modo e, no mesmo movimento, a desigualdade social pode conviver facilmente com a cessão de “direitos de oportunidades” iguais.
    Não negamos a importância das conquistas parciais ou de caráter democrático, nem as conquistas políticas no âmbito do Estado, por meio de legislação e políticas públicas de toda a ordem. As exigências e conquistas devem estar, contudo, articuladas às lutas pela transformação estrutural das condições de vida e trabalho da classe trabalhadora. Em síntese, acreditamos que toda e qualquer legislação, toda e qualquer conquista, lei antirracista que se arranque do Estado e de sua classe dominante, é de suma importância e fundamental para a melhoria de vida da população negra e combate ao racismo, porém, ainda assim, terá seus limites no interior do Estado capitalista racista e de seus mecanismos de opressão e exploração.
    Sendo assim, esse movimento de luta deve ser contínuo e permanente, interligado e indissociável. A luta por oportunidades de direitos, enquanto cidadãos racialmente iguais aos cidadãos brancos, deve vir indissociada do projeto estratégico de conquista da emancipação humana, sem a existência de classes, raças, ou qualquer critério de hierarquização e desigualdade entre os seres humanos. A consciência da necessidade da emancipação humana e o seu entendimento mostram, em primeiro plano, os limites da emancipação política, com suas mediações genéricas e alienadoras. Coloca, também, como ponto fundamental, as limitações do Estado capitalista e da cidadania como horizontes da igualdade (qualquer uma, social ou racial), da liberdade e da própria democracia, no contexto do capital. Além disso, querer a emancipação humana, não apenas nos oferece uma crítica à formação social capitalista, mas aponta para quais objetivos estratégicos nós queremos de fato atingir. No que se refere à classe trabalhadora negra, as conquistas parciais, no interior das políticas de ações afirmativas e “igualdade racial” devem estar plenamente associadas às medidas de cunho mais radical de mudança estrutural das condições de vida, trabalho e moradia da classe trabalhadora negra, isso é Política de Reparação, para além das políticas compensatórias e assistencialistas.

    4. Os números da desigualdade e violência que subsidiam a necessidade de Reparação Histórica

    Em recorde histórico, os brasileiros que se declaram pardos e pretos passaram dos que se autodeclaram brancos, segundo os dados do Censo 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Somos um país absolutamente de maioria negra, representando 55,5% da população brasileira. Isso demonstra a relevância da autoafirmação identitária e da necessidade de políticas com recorte étnico-racial para dar conta de combater as extremas desigualdades raciais e sociais que atingem essa população.
    Se por um lado, somos demograficamente a maioria, em contrapartida, estamos alocadas na base da pirâmide social, nos piores lugares, vitimados por políticas de violência e desigualdades absolutas. O racismo e a desigualdade racial vêm sendo apresentados – pelas entidades do movimento negro – como um dos principais fatores, que fundamenta a desigualdade social no Brasil. Órgãos e institutos de pesquisa como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), além de intelectuais e entidades do movimento negro, têm divulgado pesquisas e relatórios que comprovam a hierarquia social existente entre o segmento branco da população brasileira e os não-brancos, em vários setores dos direitos fundamentais como trabalho, saúde, educação, moradia, entre outros. A pobreza tem cor e podemos dizer que a população negra se encontra numa posição de desigualdade social, vivendo as piores condições socioeconômicas.
    Em 2021, por exemplo, a taxa de informais entre os pretos era de 43% e entre os pardos, de 47%. A diferença de renda, também, era e é brutal, entre os pretos e pardos, pois cerca de 35%, viviam apenas com R$ 486,00 configurando o dobro da proporção de brancos dentro da linha da pobreza. Na extrema pobreza a mesma coisa, pretos e pardos representam o dobro da população branca. Em novembro de 2022, o IBGE lançou o documento “Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil” e chegou às seguintes conclusões:
    • “Pretos e pardos são sobrerepresentados entre desocupados e subutilizados, em relação à suas representações na força de trabalho”;

    • “Pretos e pardos receberam menos em todos os níveis, sendo que no mais elevado o diferencial alcançou 41%.”;
    • “Em 2021 o rendimento médio domiciliar per capita mensal da população branca (R$1.866) foi quase duas vezes maior do que o da população preta (R$ 956) e parda (R$945)”;

    • “Pessoas pretas e pardas enfrentam maior informalidade da propriedade (pardas 20,8%, pretas 19,7%, brancas 10,1%);

    • “Em média, os domicílios próprios habitados por pessoas brancas valem quase o dobro dos habitados por pessoas pretas e pardas, em termos de aluguel mensal, segundo avaliação dos moradores. (Brancas R$998, Pretas R$571, Pardas R$550)”;

    • “Nos grandes estabelecimentos agropecuários (mais de 10 mil ha.) há amplo predomínio de produtores de cor ou raça branca (79,1%). Nos de menor porte, ocorre o oposto (apenas 25,6% de pessoas brancas nos estabelecimentos com menos de 1 ha. Há Maior proporção de pessoas pretas e pardas também em modalidades onde o produtor não é proprietário”;

    • “O percentual de estudantes pardos (13,5%) e pretos (15,2%) de 6 a 17 anos de idade sem aulas presenciais e sem oferta de atividades escolares foi mais de 2 vezes superior ao de brancos (6,8%)”;

    • “Maior incidência de violência física, psicológica ou sexual entre pessoas pretas (20,6%) e pardas (19,3%) com 18 anos ou mais de idade. Entre as pessoas”;

    • “A taxa de homicídios foi de 23,6 mortes/100 mil hab. Em 2020. Entre pessoas pardas (34,1 mortes/100 mil hab.) e pretas (21,9 mortes/100 mil hab.) foi superior à de pessoas brancas (11,5 mortes/ 100 mil hab.).

    A Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrou que no Brasil, o sistema carcerário é formado majoritariamente por pessoas negras. Entre 2005 e 2022, houve crescimento de 381,3% da população negra encarcerada.
    Na questão de Gênero, não se pode esquecer que a Violência, o Sexismo, o Racismo aprofunda o abismo social entre Mulheres Negras e não Negras no Brasil. Um terço da população brasileira (27,8%), é composta por mulheres negras que passados mais de 300 anos do fim do Tráfico Negreiro e 136 anos da Abolição da Escravatura, seguem na base da pirâmide social.
    65% das trabalhadoras domésticas do país são negras, uma das heranças escravocratas no Brasil onde a tarefa de cuidar, lavar, passar, sempre foi relegada às Mulheres, em particular, às Mulheres Negras. Hoje, no país, 11,8 milhões de lares são chefiados por mulheres com filhos e sem um parceiro. Destes, 62% dos lares têm no comando uma mulher negra sobrecarregada, estressada, adoecida, porque entre os vários estereótipos atribuídos à Mulher Negra, um dos mais usados é o da “Guerreira”, aquela que é sempre forte e aguenta tudo. Mais um reflexo do Racismo que trata a Mulher Negra como um “burro de carga”, aquela que tudo suporta. A política do “Empoderamento” não empoderou todas as Mulheres no Brasil. Segue sendo uma Política Individual, do Capitalismo. Mulheres Negras, ainda que tenham conseguido avanço no campo da Educação, ainda representam somente 0,4% dos altos cargos de liderança no país.
    Já no campo da Violência, a situação da Mulher Negra é grave. Mulheres negras representam 62% das vítimas de feminicídio no Brasil, apontou a Anistia Internacional, no ano passado. Quatro mulheres foram mortas por dia no Brasil no primeiro semestre de 2022. Foram 699 feminicídios só até a metade do ano. Um aumento de mais de 3% em relação ao mesmo período de 2021. E quase 11% a mais do que no primeiro semestre de 2019. O mesmo recorte aponta que 62% das mulheres vítimas de feminicídio no país são negras.
    No campo, o racismo ambiental e fundiário é evidente. Os negros são maioria no campo, mas têm menos terras do que a população branca. Quanto maior a concentração fundiária, menor é a participação da população negra enquanto proprietária. As grandes propriedades, com área equivalente a 10 mil campos de futebol, 79,1% dos donos são brancos, enquanto apenas 19% são pardos e pretos, aponta o Censo Agropecuário do IBGE. O mesmo Instituto mostra que as pequenas propriedades familiares pertencentes à população negra ocupam apenas 25% das áreas disponíveis para a agricultura, enquanto terras que equivalem a 500 campos de futebol, as grandes concentrações fundiárias, representam atualmente mais de 70%. Ou seja, o território brasileiro é todo cercado de arame farpado, violência e racismo.
    Por outro lado, temos uma enorme população quilombola que não tem suas terras tituladas e sofrem todo tipo de violência e falta de condições estruturais para se viver. Segundo o censo do IBGE 2022, o Brasil tem 1,3 milhão de quilombolas. A região Nordeste, não por acaso, uma das mais pobres do país, concentra quase 70% dos quilombolas, com destaque para os estados da Bahia e do Maranhão, que possuem 50% dos quilombolas do país. Entretanto, a maioria dessa população não vive em territórios titulados e demarcados. 90% dos quilombolas não moram nas 494 áreas oficialmente delimitadas para essa população. Nos territórios oficialmente demarcados, moram apenas 167 mil quilombolas.
    Todos esses dados demonstram, em primeiro lugar, a importância da população negra e quilombola no Brasil, pois é essa população que trabalha, produz, faz cultura, arte e que historicamente ocupou o vasto território brasileiro em busca de melhores condições de vida; em segundo lugar, foi e é vítima de políticas públicas raciais que a marginalizaram e criaram desigualdades sociais extremas. Essa classe trabalhadora negra, desde o tempo da escravidão tem sofrido toda forma de política estatal, empresarial, governamental marcada pela violência e destruição dos seus territórios, cultura, modos de vida e exploração do trabalho. Por outro lado, uma série de famílias, empresas e instituições financeiras – a exemplo do BB – se locupletaram historicamente com os lucros e dividendos da escravização de milhões de africanos e seus descendentes e, em mesmo sentido, da exploração desumana do trabalho negro. Como destaca, a historiadora Ynaê Lopes dos Santos, “[…] grande parte das fortunas que se constituíram no país a partir da década de 1830, incluindo aquelas vinculadas à criação do sistema financeiro brasileiro (e aqui outros bancos podem ser listados), estavam diretamente ligadas ao contrabando de homens e mulheres africanos na condição de escravizados”
    São por essas razões que o Movimento Nacional Quilombo Raça propõe, abaixo, uma série de medidas – que articulam políticas de ações afirmativas com política de Reparação histórica – visando o combate ao racismo e a melhoria das condições de vida e trabalho da classe trabalhadora negra.

    5. Reivindicações e propostas do Quilombo Raça e Classe para o inquérito que apura a responsabilidade e participação do Banco do Brasil na escravidão

    Sobre Titulação e Estruturação dos Territórios Quilombolas
    1. Que o Banco do Brasil financie as pesquisas e trabalhos de campo antropológicos para demarcação de todos os territórios quilombolas existentes no país;

    2. Que o Banco do Brasil financie todo o processo de titulação de todos os territórios quilombolas existentes no país;

    3. Que o Banco do Brasil financie a infraestrutura de saneamento, construção de moradias, construção de escolas, garantira de equipamentos de trabalho, construção de postos de saúde, formação de professores e professoras na educação escolar quilombola e garantia de financiamento para as atividades produtivas de todos os territórios quilombolas existentes no Brasil;

    Sobre Moradia, Saneamento/Infraestrutura e Transportes
    1. Que o Banco do Brasil apresente um plano específico de construção de moradias populares – a preço de custo – para a população negra no país;

    2. Que o Banco do Brasil apresente um plano de financiamento da estrutura de saneamento básico dos territórios negros no Brasil, no campo e na cidade;

    3. Que o Banco do Brasil apresente um plano de financiamento de implantação e melhorias do transporte público para trabalhadores negros e negras dos territórios negros, inclusive com “tarifa zero” a população negra;

    Sobre Educação, Pesquisa, Memória e Compensação Financeira
    1. Que o Banco do Brasil apresente um plano específico de financiamento de projetos de pesquisas para pesquisadores negros nas universidades brasileiras, inclusive sobre o processo de escravidão, seu financiamento e estruturação no Brasil;

    2. Que o Banco do Brasil garanta bolsas estudantis de permanência a todos os estudantes negros presentes em escolas da educação básica e universidades públicas brasileiras;

    3. Que o Banco do Brasil apresente um plano de reforma e ampliação das escolas de educação básica públicas do país;

    4. Que o Banco do Brasil NÃO financie empresas e empresários – de qualquer ramo – envolvidos, direto ou indiretamente, em crimes de racismo e trabalho escravo contemporâneo;

    5. Que o Banco do Brasil anistie as dívidas financeiras de todos os correntistas negros – funcionários públicos, trabalhadores de carteira assinada, pequenos produtores da agricultura familiar, trabalhadores informais e desempregados– pertencentes ao quadro de clientes, exceto os grandes empresários e empresas;

    6. Que o Banco do Brasil tenha uma política de valorização de carreira dos seus funcionários pretos e partos, garantindo acesso a cargos de gerência, igualdade, equidade e valorização salarial;

    7. Que o Banco do Brasil financie a confecção de livros, jogos, materiais audiovisuais e didáticos de combate ao racismo e distribua nas escolas e universidades públicas;

    8. Que o Banco do Brasil financie projetos, eventos acadêmicos e sociais cuja finalidade seja o conhecimento e combate ao racismo;

    9. Que o Banco do Brasil financie projetos de intercâmbio entre escolas e universidades brasileiras com universidades e escolas do continente africano;

    10. Que o Banco do Brasil financie um grande projeto de pesquisa e divulgação sobre a memória da escravidão e os beneficiários contemporâneos desse crime lesa humanidade;
    11. Que o Banco do Brasil financie um grande projeto de incentivo, proteção e valorização das religiões de matriz africana e cultura negra;

    12. Que o Banco do Brasil financie a construção de “Museu Nacional sobre a Escravidão no Brasil e de Combate ao Racismo”;

    13. Que o Banco do Brasil inverta sua política de financiamento da agricultura, favorecendo a agricultura familiar e não o agronegócio.

    Sobre Mulheres Negras e a Questão de Gênero
    1. Que o Banco do Brasil financie programas internos dentro de sua instituição que valorize as Mulheres Negras, incentivando inclusive que elas ocupem cargos de chefia e liderança;

    2. Que o Banco do Brasil financie programas voltados para a promoção e incentivo de Mulheres Negras no campo da Ciência;
    3. Que o Banco do Brasil promova e financie políticas de combate ao Machismo em relação às mulheres negras
    4. Que o Banco do Brasil promova e financie políticas de combate à LGBTfobia, TRANSFOBIA e outras formas de discriminação e violência à comunidade LGBTQIA+

    AQUILOMBAR PARA REPARAR!

  3. De: Júlio César Condaque Soares

    Para: MPF RJ – Ministério Público Federal do Rio de Janeiro

    Com Cópia: PRDC/RJ – Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Rio de Janeiro

    Assunto: Propostas para o inquérito (IC – 1.30.001.004.372/2023-13) “Tráfico de pessoas Negras Escravizadas e o Banco do Brasil: Direito à Reparação”

    Proposta apresentada pelo QRC – Quilombo Raça e Classe Nacional
    (Que assino estar de acordo)

    1. Apresentação

    O Movimento Nacional Quilombo Raça e Classe – QRC é uma organização do movimento negro brasileiro, filiado a CSP-CONLUTAS, que reivindica a necessária articulação de classe e raça para superar o racismo, a formação social capitalista e conquistar a emancipação humana. Priorizamos a organização e luta direta da classe trabalhadora negra no combate ao racismo e conquista da política de Reparação histórica.
    O QRC tem a convicção que o racismo é uma práxis orgânica do capitalismo. Por essa razão, estamos nas ruas, praças, ao lado de quilombolas, indígenas, estudantes e trabalhadores (as) no combate direto contra todas as formas de discriminação, no intuito de construir uma sociedade onde as desigualdades sociais e o racismo sejam apenas um conteúdo de História das escolas e universidades. Estamos presentes em vários estados do Brasil, organizando um movimento negro com independência de classe, internacionalista e que não dissocia a luta contra o racismo, da luta pela destruição do capitalismo.

    2. O QRC e o inquérito que apura a responsabilidade e participação do Banco do Brasil na escravidão

    O QRC entende que a conexão entre racismo e capitalismo capitaneado por empresários da indústria, comércio e agronegócio, além de grileiros, madeireiros e toda espécie de criminosos e concentradores de terra no Brasil, historicamente desenvolveu uma política genocida contra indígenas, trabalhadores do campo, quilombolas e classe trabalhadora negra.
    Entendemos que toda a violência e desigualdade racial e social que atinge a classe trabalhadora negra é resultado direto de um projeto de país que se alicerçou na base da escravidão, concentração de terra e renda e monocultura para exportação. Tanto a herança escravista, quanto a formação do capitalismo dependente brasileiro geraram e geram inúmeras formas de discriminação, violência e desigualdade. Neste processo histórico, inúmeras empresas, instituições financeiras e famílias abastadas no Brasil se beneficiaram dos espólios da escravização de milhões de africanos, como demonstra o estudo do conjunto de pesquisadores e historiadores no que se refere ao Banco do Brasil, que deu origem ao inquérito em questão.
    E, é necessário ressaltar que nesses mais de 200 anos do BB, essas famílias, empresas nacionais e multinacionais, seguem sendo continuamente financiadas em seus negócios, com subsídios, financiamentos, empréstimos e suporte em geral na manutenção e ampliação de suas riquezas, sem nenhuma ressalva ou questionamentos sequer.
    Nesse sentido, quando nos coube participar, acompanhamos e participamos ativamente das atividades organizadas pelo Ministério Público, desde o início. É tendo consciência dessa história, que o QRC se soma aos movimentos negros, social e políticos no apoio ao inquérito – (IC 1.30.001.004372/2023-13) – que tem por objeto o “Tráfico de pessoas Negras Escravizadas e o Banco do Brasil: Direito à Reparação”, apresentando nossas propostas de como deve ser feita essa Reparação à classe trabalhadora negra.

    3. O QRC e nossa posição quanto à Reparação Histórica

    É possível conquistar a “igualdade racial” no contexto capitalista, apenas com políticas compensatórias e assistencialistas ad infinitum? As políticas públicas afirmativas garantirão, por si só, a “igualdade racial” tão desejada pelos movimentos negros?
    O prioritário, para nós do QRC, não é mudar, exclusivamente, primeiro a legislação e a mentalidade racista, para depois transformar nossa realidade; mas, em ato contínuo, transformar radicalmente as relações sócio-raciais brasileiras que numa combinação de classe e raça alocam lugares subalternos e inferiores à classe trabalhadora negra.
    Para um setor expressivo do movimento negro, as políticas identitárias e da diversidade tem sido o corolário da emancipação negra, confundindo igualdade social com o estatuto puramente jurídico abstrato formal da igualdade de oportunidades, sem nenhuma ação estrutural e concreta para transformar a realidade da população negra empobrecida. O orçamento do Ministério da Igualdade Racial, por exemplo, é o menor de todos os ministérios. A política de segurança e titulação dos territórios quilombolas é um completo fracasso, basta ver as inúmeras notícias de assassinatos e invasão de territórios quilombolas. A Política de cotas, continua obliterada por um corte social, além de não ter uma política ampla e profunda de permanência dos alunos cotistas nas Universidades. O genocídio e o encarceramento da juventude negra continuam com números elevados Todos esses exemplos, nos mostram que as políticas de ações afirmativas são importantes, mas insuficientes em seu propósito de garantir “igualdade racial”, pois não significam ações profundas e transformadoras, como as Reparações reivindicadas historicamente por um setor do movimento negro. É dessa forma que se garante, por exemplo, a introdução da lei 10.639/2003 no plano jurídico, mas não se garante o financiamento, nem a estrutura suficiente para a formação e viabilização da lei.
    A classe trabalhadora negra, por ser duplamente explorada e oprimida, é atingida pelo capital com mais virulência. Sendo assim, a luta da classe trabalhadora negra deve revestir-se de um conjunto de demandas e articulações que envolvam um processo permanente da luta negra pela emancipação e eliminação do racismo. É praticamente unânime entre as entidades do movimento negro que a abolição do sistema escravista não representou de fato a emancipação da população negra, pois não tiveram indenização, garantia de direitos sociais e passaram a conviver com todas as configurações brutais de discriminação em suas formas de viver e fazer cultura. Destacamos o fato de ter havido uma abolição sem Reparação. Então, de um lado, tem a denúncia da farsa da abolição e, de outro, o escancaramento da realidade explorada e oprimida que a maior parte da população negra passou a enfrentar no território nacional. Por isso uma abolição sem Reparação representou a manutenção da ordem dominante. O país continuou com uma concentração de renda e terra das maiores do mundo, sustentada na agro exportação monocultora. Manteve-se o sistema de propriedade e de obtenção de lucro, no qual o Banco do Brasil foi um dos grandes beneficiados, como destaca o estudo dos historiadores.
    Na maior parte da legislação referente à política de “promoção da igualdade racial” é como se, ao garantir “igualdade de oportunidades”, a desigualdade social e/ou racial desapareceria. No entanto, é preciso ratificar que o que gera a desigualdade social não é a falta de oportunidades, mas o modus operanti da formação social capitalista. Em outras palavras, o capitalismo pressupõe a desigualdade real articulada com a igualdade formal, igualdade de oportunidades, isto é, igualdade jurídica. Desigualdade social e ausência de oportunidades se retroalimentam constantemente, do mesmo modo e, no mesmo movimento, a desigualdade social pode conviver facilmente com a cessão de “direitos de oportunidades” iguais.
    Não negamos a importância das conquistas parciais ou de caráter democrático, nem as conquistas políticas no âmbito do Estado, por meio de legislação e políticas públicas de toda a ordem. As exigências e conquistas devem estar, contudo, articuladas às lutas pela transformação estrutural das condições de vida e trabalho da classe trabalhadora. Em síntese, acreditamos que toda e qualquer legislação, toda e qualquer conquista, lei antirracista que se arranque do Estado e de sua classe dominante, é de suma importância e fundamental para a melhoria de vida da população negra e combate ao racismo, porém, ainda assim, terá seus limites no interior do Estado capitalista racista e de seus mecanismos de opressão e exploração.
    Sendo assim, esse movimento de luta deve ser contínuo e permanente, interligado e indissociável. A luta por oportunidades de direitos, enquanto cidadãos racialmente iguais aos cidadãos brancos, deve vir indissociada do projeto estratégico de conquista da emancipação humana, sem a existência de classes, raças, ou qualquer critério de hierarquização e desigualdade entre os seres humanos. A consciência da necessidade da emancipação humana e o seu entendimento mostram, em primeiro plano, os limites da emancipação política, com suas mediações genéricas e alienadoras. Coloca, também, como ponto fundamental, as limitações do Estado capitalista e da cidadania como horizontes da igualdade (qualquer uma, social ou racial), da liberdade e da própria democracia, no contexto do capital. Além disso, querer a emancipação humana, não apenas nos oferece uma crítica à formação social capitalista, mas aponta para quais objetivos estratégicos nós queremos de fato atingir. No que se refere à classe trabalhadora negra, as conquistas parciais, no interior das políticas de ações afirmativas e “igualdade racial” devem estar plenamente associadas às medidas de cunho mais radical de mudança estrutural das condições de vida, trabalho e moradia da classe trabalhadora negra, isso é Política de Reparação, para além das políticas compensatórias e assistencialistas.

    4. Os números da desigualdade e violência que subsidiam a necessidade de Reparação Histórica

    Em recorde histórico, os brasileiros que se declaram pardos e pretos passaram dos que se autodeclaram brancos, segundo os dados do Censo 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Somos um país absolutamente de maioria negra, representando 55,5% da população brasileira. Isso demonstra a relevância da autoafirmação identitária e da necessidade de políticas com recorte étnico-racial para dar conta de combater as extremas desigualdades raciais e sociais que atingem essa população.
    Se por um lado, somos demograficamente a maioria, em contrapartida, estamos alocadas na base da pirâmide social, nos piores lugares, vitimados por políticas de violência e desigualdades absolutas. O racismo e a desigualdade racial vêm sendo apresentados – pelas entidades do movimento negro – como um dos principais fatores, que fundamenta a desigualdade social no Brasil. Órgãos e institutos de pesquisa como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), além de intelectuais e entidades do movimento negro, têm divulgado pesquisas e relatórios que comprovam a hierarquia social existente entre o segmento branco da população brasileira e os não-brancos, em vários setores dos direitos fundamentais como trabalho, saúde, educação, moradia, entre outros. A pobreza tem cor e podemos dizer que a população negra se encontra numa posição de desigualdade social, vivendo as piores condições socioeconômicas.
    Em 2021, por exemplo, a taxa de informais entre os pretos era de 43% e entre os pardos, de 47%. A diferença de renda, também, era e é brutal, entre os pretos e pardos, pois cerca de 35%, viviam apenas com R$ 486,00 configurando o dobro da proporção de brancos dentro da linha da pobreza. Na extrema pobreza a mesma coisa, pretos e pardos representam o dobro da população branca. Em novembro de 2022, o IBGE lançou o documento “Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil” e chegou às seguintes conclusões:
    • “Pretos e pardos são sobrerepresentados entre desocupados e subutilizados, em relação à suas representações na força de trabalho”;

    • “Pretos e pardos receberam menos em todos os níveis, sendo que no mais elevado o diferencial alcançou 41%.”;
    • “Em 2021 o rendimento médio domiciliar per capita mensal da população branca (R$1.866) foi quase duas vezes maior do que o da população preta (R$ 956) e parda (R$945)”;

    • “Pessoas pretas e pardas enfrentam maior informalidade da propriedade (pardas 20,8%, pretas 19,7%, brancas 10,1%);

    • “Em média, os domicílios próprios habitados por pessoas brancas valem quase o dobro dos habitados por pessoas pretas e pardas, em termos de aluguel mensal, segundo avaliação dos moradores. (Brancas R$998, Pretas R$571, Pardas R$550)”;

    • “Nos grandes estabelecimentos agropecuários (mais de 10 mil ha.) há amplo predomínio de produtores de cor ou raça branca (79,1%). Nos de menor porte, ocorre o oposto (apenas 25,6% de pessoas brancas nos estabelecimentos com menos de 1 ha. Há Maior proporção de pessoas pretas e pardas também em modalidades onde o produtor não é proprietário”;

    • “O percentual de estudantes pardos (13,5%) e pretos (15,2%) de 6 a 17 anos de idade sem aulas presenciais e sem oferta de atividades escolares foi mais de 2 vezes superior ao de brancos (6,8%)”;

    • “Maior incidência de violência física, psicológica ou sexual entre pessoas pretas (20,6%) e pardas (19,3%) com 18 anos ou mais de idade. Entre as pessoas”;

    • “A taxa de homicídios foi de 23,6 mortes/100 mil hab. Em 2020. Entre pessoas pardas (34,1 mortes/100 mil hab.) e pretas (21,9 mortes/100 mil hab.) foi superior à de pessoas brancas (11,5 mortes/ 100 mil hab.).

    A Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrou que no Brasil, o sistema carcerário é formado majoritariamente por pessoas negras. Entre 2005 e 2022, houve crescimento de 381,3% da população negra encarcerada.
    Na questão de Gênero, não se pode esquecer que a Violência, o Sexismo, o Racismo aprofunda o abismo social entre Mulheres Negras e não Negras no Brasil. Um terço da população brasileira (27,8%), é composta por mulheres negras que passados mais de 300 anos do fim do Tráfico Negreiro e 136 anos da Abolição da Escravatura, seguem na base da pirâmide social.
    65% das trabalhadoras domésticas do país são negras, uma das heranças escravocratas no Brasil onde a tarefa de cuidar, lavar, passar, sempre foi relegada às Mulheres, em particular, às Mulheres Negras. Hoje, no país, 11,8 milhões de lares são chefiados por mulheres com filhos e sem um parceiro. Destes, 62% dos lares têm no comando uma mulher negra sobrecarregada, estressada, adoecida, porque entre os vários estereótipos atribuídos à Mulher Negra, um dos mais usados é o da “Guerreira”, aquela que é sempre forte e aguenta tudo. Mais um reflexo do Racismo que trata a Mulher Negra como um “burro de carga”, aquela que tudo suporta. A política do “Empoderamento” não empoderou todas as Mulheres no Brasil. Segue sendo uma Política Individual, do Capitalismo. Mulheres Negras, ainda que tenham conseguido avanço no campo da Educação, ainda representam somente 0,4% dos altos cargos de liderança no país.
    Já no campo da Violência, a situação da Mulher Negra é grave. Mulheres negras representam 62% das vítimas de feminicídio no Brasil, apontou a Anistia Internacional, no ano passado. Quatro mulheres foram mortas por dia no Brasil no primeiro semestre de 2022. Foram 699 feminicídios só até a metade do ano. Um aumento de mais de 3% em relação ao mesmo período de 2021. E quase 11% a mais do que no primeiro semestre de 2019. O mesmo recorte aponta que 62% das mulheres vítimas de feminicídio no país são negras.
    No campo, o racismo ambiental e fundiário é evidente. Os negros são maioria no campo, mas têm menos terras do que a população branca. Quanto maior a concentração fundiária, menor é a participação da população negra enquanto proprietária. As grandes propriedades, com área equivalente a 10 mil campos de futebol, 79,1% dos donos são brancos, enquanto apenas 19% são pardos e pretos, aponta o Censo Agropecuário do IBGE. O mesmo Instituto mostra que as pequenas propriedades familiares pertencentes à população negra ocupam apenas 25% das áreas disponíveis para a agricultura, enquanto terras que equivalem a 500 campos de futebol, as grandes concentrações fundiárias, representam atualmente mais de 70%. Ou seja, o território brasileiro é todo cercado de arame farpado, violência e racismo.
    Por outro lado, temos uma enorme população quilombola que não tem suas terras tituladas e sofrem todo tipo de violência e falta de condições estruturais para se viver. Segundo o censo do IBGE 2022, o Brasil tem 1,3 milhão de quilombolas. A região Nordeste, não por acaso, uma das mais pobres do país, concentra quase 70% dos quilombolas, com destaque para os estados da Bahia e do Maranhão, que possuem 50% dos quilombolas do país. Entretanto, a maioria dessa população não vive em territórios titulados e demarcados. 90% dos quilombolas não moram nas 494 áreas oficialmente delimitadas para essa população. Nos territórios oficialmente demarcados, moram apenas 167 mil quilombolas.
    Todos esses dados demonstram, em primeiro lugar, a importância da população negra e quilombola no Brasil, pois é essa população que trabalha, produz, faz cultura, arte e que historicamente ocupou o vasto território brasileiro em busca de melhores condições de vida; em segundo lugar, foi e é vítima de políticas públicas raciais que a marginalizaram e criaram desigualdades sociais extremas. Essa classe trabalhadora negra, desde o tempo da escravidão tem sofrido toda forma de política estatal, empresarial, governamental marcada pela violência e destruição dos seus territórios, cultura, modos de vida e exploração do trabalho. Por outro lado, uma série de famílias, empresas e instituições financeiras – a exemplo do BB – se locupletaram historicamente com os lucros e dividendos da escravização de milhões de africanos e seus descendentes e, em mesmo sentido, da exploração desumana do trabalho negro. Como destaca, a historiadora Ynaê Lopes dos Santos, “[…] grande parte das fortunas que se constituíram no país a partir da década de 1830, incluindo aquelas vinculadas à criação do sistema financeiro brasileiro (e aqui outros bancos podem ser listados), estavam diretamente ligadas ao contrabando de homens e mulheres africanos na condição de escravizados”
    São por essas razões que o Movimento Nacional Quilombo Raça propõe, abaixo, uma série de medidas – que articulam políticas de ações afirmativas com política de Reparação histórica – visando o combate ao racismo e a melhoria das condições de vida e trabalho da classe trabalhadora negra.

    5. Reivindicações e propostas do Quilombo Raça e Classe para o inquérito que apura a responsabilidade e participação do Banco do Brasil na escravidão

    Sobre Titulação e Estruturação dos Territórios Quilombolas
    1. Que o Banco do Brasil financie as pesquisas e trabalhos de campo antropológicos para demarcação de todos os territórios quilombolas existentes no país;

    2. Que o Banco do Brasil financie todo o processo de titulação de todos os territórios quilombolas existentes no país;

    3. Que o Banco do Brasil financie a infraestrutura de saneamento, construção de moradias, construção de escolas, garantira de equipamentos de trabalho, construção de postos de saúde, formação de professores e professoras na educação escolar quilombola e garantia de financiamento para as atividades produtivas de todos os territórios quilombolas existentes no Brasil;

    Sobre Moradia, Saneamento/Infraestrutura e Transportes
    1. Que o Banco do Brasil apresente um plano específico de construção de moradias populares – a preço de custo – para a população negra no país;

    2. Que o Banco do Brasil apresente um plano de financiamento da estrutura de saneamento básico dos territórios negros no Brasil, no campo e na cidade;

    3. Que o Banco do Brasil apresente um plano de financiamento de implantação e melhorias do transporte público para trabalhadores negros e negras dos territórios negros, inclusive com “tarifa zero” a população negra;

    Sobre Educação, Pesquisa, Memória e Compensação Financeira
    1. Que o Banco do Brasil apresente um plano específico de financiamento de projetos de pesquisas para pesquisadores negros nas universidades brasileiras, inclusive sobre o processo de escravidão, seu financiamento e estruturação no Brasil;

    2. Que o Banco do Brasil garanta bolsas estudantis de permanência a todos os estudantes negros presentes em escolas da educação básica e universidades públicas brasileiras;

    3. Que o Banco do Brasil apresente um plano de reforma e ampliação das escolas de educação básica públicas do país;

    4. Que o Banco do Brasil NÃO financie empresas e empresários – de qualquer ramo – envolvidos, direto ou indiretamente, em crimes de racismo e trabalho escravo contemporâneo;

    5. Que o Banco do Brasil anistie as dívidas financeiras de todos os correntistas negros – funcionários públicos, trabalhadores de carteira assinada, pequenos produtores da agricultura familiar, trabalhadores informais e desempregados– pertencentes ao quadro de clientes, exceto os grandes empresários e empresas;

    6. Que o Banco do Brasil tenha uma política de valorização de carreira dos seus funcionários pretos e partos, garantindo acesso a cargos de gerência, igualdade, equidade e valorização salarial;

    7. Que o Banco do Brasil financie a confecção de livros, jogos, materiais audiovisuais e didáticos de combate ao racismo e distribua nas escolas e universidades públicas;

    8. Que o Banco do Brasil financie projetos, eventos acadêmicos e sociais cuja finalidade seja o conhecimento e combate ao racismo;

    9. Que o Banco do Brasil financie projetos de intercâmbio entre escolas e universidades brasileiras com universidades e escolas do continente africano;

    10. Que o Banco do Brasil financie um grande projeto de pesquisa e divulgação sobre a memória da escravidão e os beneficiários contemporâneos desse crime lesa humanidade;
    11. Que o Banco do Brasil financie um grande projeto de incentivo, proteção e valorização das religiões de matriz africana e cultura negra;

    12. Que o Banco do Brasil financie a construção de “Museu Nacional sobre a Escravidão no Brasil e de Combate ao Racismo”;

    13. Que o Banco do Brasil inverta sua política de financiamento da agricultura, favorecendo a agricultura familiar e não o agronegócio.

    Sobre Mulheres Negras e a Questão de Gênero
    1. Que o Banco do Brasil financie programas internos dentro de sua instituição que valorize as Mulheres Negras, incentivando inclusive que elas ocupem cargos de chefia e liderança;

    2. Que o Banco do Brasil financie programas voltados para a promoção e incentivo de Mulheres Negras no campo da Ciência;
    3. Que o Banco do Brasil promova e financie políticas de combate ao Machismo em relação às mulheres negras
    4. Que o Banco do Brasil promova e financie políticas de combate à LGBTfobia, TRANSFOBIA e outras formas de discriminação e violência à comunidade LGBTQIA+

    AQUILOMBAR PARA REPARAR!

  4. Ofício: QRC/NAC. – Nº 001 – 09/02/2024

    De: QRC – Quilombo Raça e Classe Nacional

    Para: MPF RJ – Ministério Público Federal do Rio de Janeiro

    Com Cópia: PRDC/RJ – Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Rio de Janeiro

    Assunto: Propostas para o inquérito (IC – 1.30.001.004.372/2023-13) “Tráfico de pessoas Negras Escravizadas e o Banco do Brasil: Direito à Reparação”

    1. Apresentação

    O Movimento Nacional Quilombo Raça e Classe – QRC é uma organização do movimento negro brasileiro, filiado a CSP-CONLUTAS, que reivindica a necessária articulação de classe e raça para superar o racismo, a formação social capitalista e conquistar a emancipação humana. Priorizamos a organização e luta direta da classe trabalhadora negra no combate ao racismo e conquista da política de Reparação histórica.
    O QRC tem a convicção que o racismo é uma práxis orgânica do capitalismo. Por essa razão, estamos nas ruas, praças, ao lado de quilombolas, indígenas, estudantes e trabalhadores (as) no combate direto contra todas as formas de discriminação, no intuito de construir uma sociedade onde as desigualdades sociais e o racismo sejam apenas um conteúdo de História das escolas e universidades. Estamos presentes em vários estados do Brasil, organizando um movimento negro com independência de classe, internacionalista e que não dissocia a luta contra o racismo, da luta pela destruição do capitalismo.

    2. O QRC e o inquérito que apura a responsabilidade e participação do Banco do Brasil na escravidão

    O QRC entende que a conexão entre racismo e capitalismo capitaneado por empresários da indústria, comércio e agronegócio, além de grileiros, madeireiros e toda espécie de criminosos e concentradores de terra no Brasil, historicamente desenvolveu uma política genocida contra indígenas, trabalhadores do campo, quilombolas e classe trabalhadora negra.
    Entendemos que toda a violência e desigualdade racial e social que atinge a classe trabalhadora negra é resultado direto de um projeto de país que se alicerçou na base da escravidão, concentração de terra e renda e monocultura para exportação. Tanto a herança escravista, quanto a formação do capitalismo dependente brasileiro geraram e geram inúmeras formas de discriminação, violência e desigualdade. Neste processo histórico, inúmeras empresas, instituições financeiras e famílias abastadas no Brasil se beneficiaram dos espólios da escravização de milhões de africanos, como demonstra o estudo do conjunto de pesquisadores e historiadores no que se refere ao Banco do Brasil, que deu origem ao inquérito em questão.
    E, é necessário ressaltar que nesses mais de 200 anos do BB, essas famílias, empresas nacionais e multinacionais, seguem sendo continuamente financiadas em seus negócios, com subsídios, financiamentos, empréstimos e suporte em geral na manutenção e ampliação de suas riquezas, sem nenhuma ressalva ou questionamentos sequer.
    Nesse sentido, quando nos coube participar, acompanhamos e participamos ativamente das atividades organizadas pelo Ministério Público, desde o início. É tendo consciência dessa história, que o QRC se soma aos movimentos negros, social e políticos no apoio ao inquérito – (IC 1.30.001.004372/2023-13) – que tem por objeto o “Tráfico de pessoas Negras Escravizadas e o Banco do Brasil: Direito à Reparação”, apresentando nossas propostas de como deve ser feita essa Reparação à classe trabalhadora negra.

    3. O QRC e nossa posição quanto à Reparação Histórica

    É possível conquistar a “igualdade racial” no contexto capitalista, apenas com políticas compensatórias e assistencialistas ad infinitum? As políticas públicas afirmativas garantirão, por si só, a “igualdade racial” tão desejada pelos movimentos negros?
    O prioritário, para nós do QRC, não é mudar, exclusivamente, primeiro a legislação e a mentalidade racista, para depois transformar nossa realidade; mas, em ato contínuo, transformar radicalmente as relações sócio-raciais brasileiras que numa combinação de classe e raça alocam lugares subalternos e inferiores à classe trabalhadora negra.
    Para um setor expressivo do movimento negro, as políticas identitárias e da diversidade tem sido o corolário da emancipação negra, confundindo igualdade social com o estatuto puramente jurídico abstrato formal da igualdade de oportunidades, sem nenhuma ação estrutural e concreta para transformar a realidade da população negra empobrecida. O orçamento do Ministério da Igualdade Racial, por exemplo, é o menor de todos os ministérios. A política de segurança e titulação dos territórios quilombolas é um completo fracasso, basta ver as inúmeras notícias de assassinatos e invasão de territórios quilombolas. A Política de cotas, continua obliterada por um corte social, além de não ter uma política ampla e profunda de permanência dos alunos cotistas nas Universidades. O genocídio e o encarceramento da juventude negra continuam com números elevados Todos esses exemplos, nos mostram que as políticas de ações afirmativas são importantes, mas insuficientes em seu propósito de garantir “igualdade racial”, pois não significam ações profundas e transformadoras, como as Reparações reivindicadas historicamente por um setor do movimento negro. É dessa forma que se garante, por exemplo, a introdução da lei 10.639/2003 no plano jurídico, mas não se garante o financiamento, nem a estrutura suficiente para a formação e viabilização da lei.
    A classe trabalhadora negra, por ser duplamente explorada e oprimida, é atingida pelo capital com mais virulência. Sendo assim, a luta da classe trabalhadora negra deve revestir-se de um conjunto de demandas e articulações que envolvam um processo permanente da luta negra pela emancipação e eliminação do racismo. É praticamente unânime entre as entidades do movimento negro que a abolição do sistema escravista não representou de fato a emancipação da população negra, pois não tiveram indenização, garantia de direitos sociais e passaram a conviver com todas as configurações brutais de discriminação em suas formas de viver e fazer cultura. Destacamos o fato de ter havido uma abolição sem Reparação. Então, de um lado, tem a denúncia da farsa da abolição e, de outro, o escancaramento da realidade explorada e oprimida que a maior parte da população negra passou a enfrentar no território nacional. Por isso uma abolição sem Reparação representou a manutenção da ordem dominante. O país continuou com uma concentração de renda e terra das maiores do mundo, sustentada na agro exportação monocultora. Manteve-se o sistema de propriedade e de obtenção de lucro, no qual o Banco do Brasil foi um dos grandes beneficiados, como destaca o estudo dos historiadores.
    Na maior parte da legislação referente à política de “promoção da igualdade racial” é como se, ao garantir “igualdade de oportunidades”, a desigualdade social e/ou racial desapareceria. No entanto, é preciso ratificar que o que gera a desigualdade social não é a falta de oportunidades, mas o modus operanti da formação social capitalista. Em outras palavras, o capitalismo pressupõe a desigualdade real articulada com a igualdade formal, igualdade de oportunidades, isto é, igualdade jurídica. Desigualdade social e ausência de oportunidades se retroalimentam constantemente, do mesmo modo e, no mesmo movimento, a desigualdade social pode conviver facilmente com a cessão de “direitos de oportunidades” iguais.
    Não negamos a importância das conquistas parciais ou de caráter democrático, nem as conquistas políticas no âmbito do Estado, por meio de legislação e políticas públicas de toda a ordem. As exigências e conquistas devem estar, contudo, articuladas às lutas pela transformação estrutural das condições de vida e trabalho da classe trabalhadora. Em síntese, acreditamos que toda e qualquer legislação, toda e qualquer conquista, lei antirracista que se arranque do Estado e de sua classe dominante, é de suma importância e fundamental para a melhoria de vida da população negra e combate ao racismo, porém, ainda assim, terá seus limites no interior do Estado capitalista racista e de seus mecanismos de opressão e exploração.
    Sendo assim, esse movimento de luta deve ser contínuo e permanente, interligado e indissociável. A luta por oportunidades de direitos, enquanto cidadãos racialmente iguais aos cidadãos brancos, deve vir indissociada do projeto estratégico de conquista da emancipação humana, sem a existência de classes, raças, ou qualquer critério de hierarquização e desigualdade entre os seres humanos. A consciência da necessidade da emancipação humana e o seu entendimento mostram, em primeiro plano, os limites da emancipação política, com suas mediações genéricas e alienadoras. Coloca, também, como ponto fundamental, as limitações do Estado capitalista e da cidadania como horizontes da igualdade (qualquer uma, social ou racial), da liberdade e da própria democracia, no contexto do capital. Além disso, querer a emancipação humana, não apenas nos oferece uma crítica à formação social capitalista, mas aponta para quais objetivos estratégicos nós queremos de fato atingir. No que se refere à classe trabalhadora negra, as conquistas parciais, no interior das políticas de ações afirmativas e “igualdade racial” devem estar plenamente associadas às medidas de cunho mais radical de mudança estrutural das condições de vida, trabalho e moradia da classe trabalhadora negra, isso é Política de Reparação, para além das políticas compensatórias e assistencialistas.

    4. Os números da desigualdade e violência que subsidiam a necessidade de Reparação Histórica

    Em recorde histórico, os brasileiros que se declaram pardos e pretos passaram dos que se autodeclaram brancos, segundo os dados do Censo 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Somos um país absolutamente de maioria negra, representando 55,5% da população brasileira. Isso demonstra a relevância da autoafirmação identitária e da necessidade de políticas com recorte étnico-racial para dar conta de combater as extremas desigualdades raciais e sociais que atingem essa população.
    Se por um lado, somos demograficamente a maioria, em contrapartida, estamos alocadas na base da pirâmide social, nos piores lugares, vitimados por políticas de violência e desigualdades absolutas. O racismo e a desigualdade racial vêm sendo apresentados – pelas entidades do movimento negro – como um dos principais fatores, que fundamenta a desigualdade social no Brasil. Órgãos e institutos de pesquisa como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), além de intelectuais e entidades do movimento negro, têm divulgado pesquisas e relatórios que comprovam a hierarquia social existente entre o segmento branco da população brasileira e os não-brancos, em vários setores dos direitos fundamentais como trabalho, saúde, educação, moradia, entre outros. A pobreza tem cor e podemos dizer que a população negra se encontra numa posição de desigualdade social, vivendo as piores condições socioeconômicas.
    Em 2021, por exemplo, a taxa de informais entre os pretos era de 43% e entre os pardos, de 47%. A diferença de renda, também, era e é brutal, entre os pretos e pardos, pois cerca de 35%, viviam apenas com R$ 486,00 configurando o dobro da proporção de brancos dentro da linha da pobreza. Na extrema pobreza a mesma coisa, pretos e pardos representam o dobro da população branca. Em novembro de 2022, o IBGE lançou o documento “Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil” e chegou às seguintes conclusões:
    • “Pretos e pardos são sobrerepresentados entre desocupados e subutilizados, em relação à suas representações na força de trabalho”;

    • “Pretos e pardos receberam menos em todos os níveis, sendo que no mais elevado o diferencial alcançou 41%.”;
    • “Em 2021 o rendimento médio domiciliar per capita mensal da população branca (R$1.866) foi quase duas vezes maior do que o da população preta (R$ 956) e parda (R$945)”;

    • “Pessoas pretas e pardas enfrentam maior informalidade da propriedade (pardas 20,8%, pretas 19,7%, brancas 10,1%);

    • “Em média, os domicílios próprios habitados por pessoas brancas valem quase o dobro dos habitados por pessoas pretas e pardas, em termos de aluguel mensal, segundo avaliação dos moradores. (Brancas R$998, Pretas R$571, Pardas R$550)”;

    • “Nos grandes estabelecimentos agropecuários (mais de 10 mil ha.) há amplo predomínio de produtores de cor ou raça branca (79,1%). Nos de menor porte, ocorre o oposto (apenas 25,6% de pessoas brancas nos estabelecimentos com menos de 1 ha. Há Maior proporção de pessoas pretas e pardas também em modalidades onde o produtor não é proprietário”;

    • “O percentual de estudantes pardos (13,5%) e pretos (15,2%) de 6 a 17 anos de idade sem aulas presenciais e sem oferta de atividades escolares foi mais de 2 vezes superior ao de brancos (6,8%)”;

    • “Maior incidência de violência física, psicológica ou sexual entre pessoas pretas (20,6%) e pardas (19,3%) com 18 anos ou mais de idade. Entre as pessoas”;

    • “A taxa de homicídios foi de 23,6 mortes/100 mil hab. Em 2020. Entre pessoas pardas (34,1 mortes/100 mil hab.) e pretas (21,9 mortes/100 mil hab.) foi superior à de pessoas brancas (11,5 mortes/ 100 mil hab.).

    A Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrou que no Brasil, o sistema carcerário é formado majoritariamente por pessoas negras. Entre 2005 e 2022, houve crescimento de 381,3% da população negra encarcerada.
    Na questão de Gênero, não se pode esquecer que a Violência, o Sexismo, o Racismo aprofunda o abismo social entre Mulheres Negras e não Negras no Brasil. Um terço da população brasileira (27,8%), é composta por mulheres negras que passados mais de 300 anos do fim do Tráfico Negreiro e 136 anos da Abolição da Escravatura, seguem na base da pirâmide social.
    65% das trabalhadoras domésticas do país são negras, uma das heranças escravocratas no Brasil onde a tarefa de cuidar, lavar, passar, sempre foi relegada às Mulheres, em particular, às Mulheres Negras. Hoje, no país, 11,8 milhões de lares são chefiados por mulheres com filhos e sem um parceiro. Destes, 62% dos lares têm no comando uma mulher negra sobrecarregada, estressada, adoecida, porque entre os vários estereótipos atribuídos à Mulher Negra, um dos mais usados é o da “Guerreira”, aquela que é sempre forte e aguenta tudo. Mais um reflexo do Racismo que trata a Mulher Negra como um “burro de carga”, aquela que tudo suporta. A política do “Empoderamento” não empoderou todas as Mulheres no Brasil. Segue sendo uma Política Individual, do Capitalismo. Mulheres Negras, ainda que tenham conseguido avanço no campo da Educação, ainda representam somente 0,4% dos altos cargos de liderança no país.
    Já no campo da Violência, a situação da Mulher Negra é grave. Mulheres negras representam 62% das vítimas de feminicídio no Brasil, apontou a Anistia Internacional, no ano passado. Quatro mulheres foram mortas por dia no Brasil no primeiro semestre de 2022. Foram 699 feminicídios só até a metade do ano. Um aumento de mais de 3% em relação ao mesmo período de 2021. E quase 11% a mais do que no primeiro semestre de 2019. O mesmo recorte aponta que 62% das mulheres vítimas de feminicídio no país são negras.
    No campo, o racismo ambiental e fundiário é evidente. Os negros são maioria no campo, mas têm menos terras do que a população branca. Quanto maior a concentração fundiária, menor é a participação da população negra enquanto proprietária. As grandes propriedades, com área equivalente a 10 mil campos de futebol, 79,1% dos donos são brancos, enquanto apenas 19% são pardos e pretos, aponta o Censo Agropecuário do IBGE. O mesmo Instituto mostra que as pequenas propriedades familiares pertencentes à população negra ocupam apenas 25% das áreas disponíveis para a agricultura, enquanto terras que equivalem a 500 campos de futebol, as grandes concentrações fundiárias, representam atualmente mais de 70%. Ou seja, o território brasileiro é todo cercado de arame farpado, violência e racismo.
    Por outro lado, temos uma enorme população quilombola que não tem suas terras tituladas e sofrem todo tipo de violência e falta de condições estruturais para se viver. Segundo o censo do IBGE 2022, o Brasil tem 1,3 milhão de quilombolas. A região Nordeste, não por acaso, uma das mais pobres do país, concentra quase 70% dos quilombolas, com destaque para os estados da Bahia e do Maranhão, que possuem 50% dos quilombolas do país. Entretanto, a maioria dessa população não vive em territórios titulados e demarcados. 90% dos quilombolas não moram nas 494 áreas oficialmente delimitadas para essa população. Nos territórios oficialmente demarcados, moram apenas 167 mil quilombolas.
    Todos esses dados demonstram, em primeiro lugar, a importância da população negra e quilombola no Brasil, pois é essa população que trabalha, produz, faz cultura, arte e que historicamente ocupou o vasto território brasileiro em busca de melhores condições de vida; em segundo lugar, foi e é vítima de políticas públicas raciais que a marginalizaram e criaram desigualdades sociais extremas. Essa classe trabalhadora negra, desde o tempo da escravidão tem sofrido toda forma de política estatal, empresarial, governamental marcada pela violência e destruição dos seus territórios, cultura, modos de vida e exploração do trabalho. Por outro lado, uma série de famílias, empresas e instituições financeiras – a exemplo do BB – se locupletaram historicamente com os lucros e dividendos da escravização de milhões de africanos e seus descendentes e, em mesmo sentido, da exploração desumana do trabalho negro. Como destaca, a historiadora Ynaê Lopes dos Santos, “[…] grande parte das fortunas que se constituíram no país a partir da década de 1830, incluindo aquelas vinculadas à criação do sistema financeiro brasileiro (e aqui outros bancos podem ser listados), estavam diretamente ligadas ao contrabando de homens e mulheres africanos na condição de escravizados”
    São por essas razões que o Movimento Nacional Quilombo Raça propõe, abaixo, uma série de medidas – que articulam políticas de ações afirmativas com política de Reparação histórica – visando o combate ao racismo e a melhoria das condições de vida e trabalho da classe trabalhadora negra.

    5. Reivindicações e propostas do Quilombo Raça e Classe para o inquérito que apura a responsabilidade e participação do Banco do Brasil na escravidão

    Sobre Titulação e Estruturação dos Territórios Quilombolas
    1. Que o Banco do Brasil financie as pesquisas e trabalhos de campo antropológicos para demarcação de todos os territórios quilombolas existentes no país;

    2. Que o Banco do Brasil financie todo o processo de titulação de todos os territórios quilombolas existentes no país;

    3. Que o Banco do Brasil financie a infraestrutura de saneamento, construção de moradias, construção de escolas, garantira de equipamentos de trabalho, construção de postos de saúde, formação de professores e professoras na educação escolar quilombola e garantia de financiamento para as atividades produtivas de todos os territórios quilombolas existentes no Brasil;

    Sobre Moradia, Saneamento/Infraestrutura e Transportes
    1. Que o Banco do Brasil apresente um plano específico de construção de moradias populares – a preço de custo – para a população negra no país;

    2. Que o Banco do Brasil apresente um plano de financiamento da estrutura de saneamento básico dos territórios negros no Brasil, no campo e na cidade;

    3. Que o Banco do Brasil apresente um plano de financiamento de implantação e melhorias do transporte público para trabalhadores negros e negras dos territórios negros, inclusive com “tarifa zero” a população negra;

    Sobre Educação, Pesquisa, Memória e Compensação Financeira
    1. Que o Banco do Brasil apresente um plano específico de financiamento de projetos de pesquisas para pesquisadores negros nas universidades brasileiras, inclusive sobre o processo de escravidão, seu financiamento e estruturação no Brasil;

    2. Que o Banco do Brasil garanta bolsas estudantis de permanência a todos os estudantes negros presentes em escolas da educação básica e universidades públicas brasileiras;

    3. Que o Banco do Brasil apresente um plano de reforma e ampliação das escolas de educação básica públicas do país;

    4. Que o Banco do Brasil NÃO financie empresas e empresários – de qualquer ramo – envolvidos, direto ou indiretamente, em crimes de racismo e trabalho escravo contemporâneo;

    5. Que o Banco do Brasil anistie as dívidas financeiras de todos os correntistas negros – funcionários públicos, trabalhadores de carteira assinada, pequenos produtores da agricultura familiar, trabalhadores informais e desempregados– pertencentes ao quadro de clientes, exceto os grandes empresários e empresas;

    6. Que o Banco do Brasil tenha uma política de valorização de carreira dos seus funcionários pretos e partos, garantindo acesso a cargos de gerência, igualdade, equidade e valorização salarial;

    7. Que o Banco do Brasil financie a confecção de livros, jogos, materiais audiovisuais e didáticos de combate ao racismo e distribua nas escolas e universidades públicas;

    8. Que o Banco do Brasil financie projetos, eventos acadêmicos e sociais cuja finalidade seja o conhecimento e combate ao racismo;

    9. Que o Banco do Brasil financie projetos de intercâmbio entre escolas e universidades brasileiras com universidades e escolas do continente africano;

    10. Que o Banco do Brasil financie um grande projeto de pesquisa e divulgação sobre a memória da escravidão e os beneficiários contemporâneos desse crime lesa humanidade;
    11. Que o Banco do Brasil financie um grande projeto de incentivo, proteção e valorização das religiões de matriz africana e cultura negra;

    12. Que o Banco do Brasil financie a construção de “Museu Nacional sobre a Escravidão no Brasil e de Combate ao Racismo”;

    13. Que o Banco do Brasil inverta sua política de financiamento da agricultura, favorecendo a agricultura familiar e não o agronegócio.

    Sobre Mulheres Negras e a Questão de Gênero
    1. Que o Banco do Brasil financie programas internos dentro de sua instituição que valorize as Mulheres Negras, incentivando inclusive que elas ocupem cargos de chefia e liderança;

    2. Que o Banco do Brasil financie programas voltados para a promoção e incentivo de Mulheres Negras no campo da Ciência;
    3. Que o Banco do Brasil promova e financie políticas de combate ao Machismo em relação às mulheres negras
    4. Que o Banco do Brasil promova e financie políticas de combate à LGBTfobia, TRANSFOBIA e outras formas de discriminação e violência à comunidade LGBTQIA+

    AQUILOMBAR PARA REPARAR!

    Maristela Farias
    Dir. Exec. Nac. da Secretaria Geral QRC – Quilombo Raça e Classe
    (21)992913624 – [email protected]

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