Relatório da CPI das ONGs favorece projeto de rodovia que corta ao meio a Serra do Divisor, no Acre

Asfaltamento da BR-364 até o Peru beneficia pecuaristas como o relator Márcio Bittar (União-AC); ele propôs lei para retirar proteção integral do parque nacional, símbolo de biodiversidade na Amazônia; senador quer retirar poderes do Ministério Público e licenciamento automático

Por Katarina Moraes, Carolina Bataier e Luís Indriunas, em De Olho nos Ruralistas

Mineração e pecuária em terra indígena, menos poder para o Ministério Público Federal (MPF) e afrouxamento do licenciamento ambiental. Essas foram as principais sugestões do documento final elaborado pelo senador Márcio Bittar (União-AC), relator da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as Organizações Não-Governamentais na Amazônia, a CPI da ONGs. O relatório, que deve ser votado nesta terça-feira (12) pela comissão, favorece diretamente os interesses políticos do pecuarista Bittar no Acre.

O principal deles é o asfaltamento de 110 quilômetros da rodovia BR-364, entre o município de Mâncio Lima (AC) e a fronteira com o Peru. Segundo a proposta do relator da CPI, o licenciamento ambiental para obras de infraestrutura poderá ser concedido automaticamente se os órgãos ambientais atrasarem seus pareceres. Bittar ataca o MPF, ao insinuar “práticas abusivas”, e propõe limitar sua atuação em empreendimentos de infraestrutura.

O relator da CPI das ONGs é um dos proponentes do Projeto de Lei (PL) nº 6024/2019, apresentado pela deputada federal Mara Rocha (PSDB-AC), que visa derrubar o status de proteção integral do Parque Nacional (Parna) da Serra do Divisor. O projeto propõe também redução de 8 mil hectares da área da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes. As duas unidades de conservação são administradas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio), cujo presidente Mauro Oliveira Pires está listado no relatório de Bittar como alvo de indiciamento por corrupção passiva.

Localizado no Vale do Juruá, o Parna Serra do Divisor é considerado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan) a maior reserva de biodiversidade da Amazônia. Foram encontradas na região 43 espécies de mamíferos, mais de 100 anfíbios, 30 répteis, 485 aves e 1.163 espécies de plantas catalogadas. O parque é uma das unidades de conservação mais preservadas do Brasil, com apenas 2% de sua área desmatada.

A principal intenção de Bittar é facilitar a pavimentação de 110 quilômetros da BR-364, abrindo uma “rota econômica e comercial” até o Peru. “A classificação da unidade de conservação como Parque Nacional, do grupo de proteção integral, impede qualquer tipo de exploração econômica das riquezas ali presentes”, justifica o texto do PL. “Entendemos que isso vai de encontro aos interesses e necessidades do povo acreano”.

Bittar sugere a extração de rochas da floresta para a construção civil, para “fomentar o desenvolvimento econômico do estado e baratear as obras públicas que o povo do estado tanto necessita”. O texto está parado na Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais da Câmara, sob a presidência da deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG).

Projeto do DNIT prevê que a BR-364 corte o Parque Nacional Serra do Divisor, passando ao lado da TI Poyanawa. (Cartografia: Eduardo Carlini/De Olho nos Ruralistas)

PROJETO DE RODOVIA BINACIONAL BENEFICIA PECUARISTAS NO ACRE

A proposta de ampliar a BR-364 até a fronteira com o Peru ganhou força durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), de quem Márcio Bittar foi líder no Senado. Em setembro de 2021, o diretor de Pesquisa, Avaliação e Monitoramento da Biodiversidade (Dibio) do ICMBio, o tenente-coronel Marcos Aurélio Venâncio, da Polícia Militar de São Paulo, assinou um ofício autorizando o início dos estudos de licenciamento da obra.

Cinco meses depois, em fevereiro de 2022, Bolsonaro aproveitou um encontro com o então presidente peruano Pedro Castillo, para discutir a criação da rodovia bioceânica. Apesar do empenho da diplomacia brasileira, não houve interesse do Peru em arcar com os elevados custos de construção do trecho, que ligaria o município de Pucallpa à fronteira com o Brasil. Segundo o edital de licitação do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), publicado em 2021, apenas a parte brasileira da estrada custaria R$ 500 milhões.

Os dois países já possuem uma conexão terrestre a partir da Rodovia Interoceânica, que passa por Assis Brasil (AC), na tríplice fronteira com a Bolívia. No Brasil, a BR-317 percorre o sul do Acre e se conecta à capital Rio Branco. Dali, a rodovia se integra à BR-364, chegando até o estado de São Paulo. Do lado peruano, a rota se bifurca em Inambari, no distrito de Madre de Dios, conectando-se aos portos de San Juan Marcona, Matarani e Ilo.

Apesar do corredor binacional já existir, pecuaristas e outros fazendeiros acreanos desejam a extensão da BR-364 porque ela oferece um caminho mais curto para o porto de El Callao, em Lima — o maior terminal portuário do Pacífico sul-americano.

Durante as eleições de 2022, o projeto foi incluído entre as principais promessas de campanha do governador Gladson Cameli (PP) para a região do Vale do Juruá, apesar do elevado prejuízo social — calculado em R$ 960 milhões em estudo da ONG Conservation Strategy Fund. Reeleito no primeiro turno, Cameli conseguiu, em março, do ministro dos Transportes Renan Filho a liberação de R$ 600 milhões para a reforma do trecho que vai de Sena Madureira até Cruzeiro do Sul, ampliando a pressão para que o governo federal aprove o segmento que corta a Serra do Divisor.

RELATOR TEM FAZENDA EXATAMENTE EM SENA MADUREIRA

Se concluída, essa nova rota bioceânica beneficiará a principal zona de expansão da fronteira agropecuária no Acre. Lar do segundo maior rebanho bovino do estado, atrás da capital Rio Branco, Sena Madureira possui 365 mil cabeças de gado — quase oito vezes o tamanho da população. Foi ali que Márcio Bittar iniciou seus negócios na pecuária.

Junto dos irmãos, o relator da CPI das ONGs foi dono de pelo menos três imóveis rurais no município. Seu pai, Mamédio Bittar, adquiriu a partir da década de 70 a Fazenda Córrego do Ouro, de 6.216,67 hectares e vizinha da Floresta Estadual do Antimary, e a Fazenda Liberdade, de 4.035 hectares, desmembrada do antigo Seringal Forquilha. Segundo o processo do espólio de Mamédio, os dois imóveis foram vendidos em 2014.

Ambos chegaram a ser declarados alternadamente por Márcio à Justiça eleitoral, entre 1997 e 2006. Nas últimas duas eleições que disputou, o político não declarou bens rurais: em 2018, quando se elegeu senador, e 2022, quando perdeu a disputa para o governo estadual.

Os registros do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), porém, mostram outro imóvel de Márcio Bittar em Sena Madureira: a Fazenda Olho D’Água, de 1 mil hectares. Em fevereiro de 2023, o distrito de mesmo nome foi beneficiado com obras de requalificação de estradas rurais por meio de emendas parlamentares do senador acreano.

Bittar declarou R$ 3,3 milhões em bens ao Tribunal Superior Eleitoral no ano passado. Sem a fazenda. Quatro anos antes, em 2018, seu patrimônio estava bem mais parrudo: R$ 6,5 milhões. Quatro vezes mais que o R$ 1,6 milhão declarado em 2014. A Fazenda Liberdade aparece somente na declaração de 2006, pelo valor de R$ 60.585,00. (Em 2010, Bittar dizia ter bovinos, mas não imóveis rurais.)

Em um vídeo publicado em maio de 2018, Bittar mostra uma visita à fazenda:

— Isso aqui foi uma das paixões da vida do meu pai. Eu trabalhei aqui anos, passei anos da minha vida nessa área. Hoje estou visitando, junto com meu filho João Paulo, que infelizmente não conheceu meu pai. Aqui, logo atrás tinha uma pista de avião, pequenininha. Ali era a sede da fazenda. Muitos anos da minha vida. A vida inteira, para mim, essa era a área do meu pai, seu Mamédio Bittar. Andando por aqui, nessa região, ao lado dele, que eu aprendi o que tenho de melhor.

RELATÓRIO CONFIRMA VIÉS ANTI-INDÍGENA DE CPI

Em 14 junho de 2023, a Justiça Federal proibiu o DNIT de dar sequência ao projeto executivo do asfaltamento da rodovia, denunciando a “violação dos direitos socioambientais” e o “risco de extermínio” de povos indígenas isolados. O projeto da BR-364 margeia a Terra Indígena (TI) Poyanawa, onde há relatos de grupos vivendo em isolamento voluntário.

ação civil pública foi ajuizada pela SOS Amazônia, a Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opirj), a Comissão Pró-Índio do Acre, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), juntamente com o Ministério Público Federal (MPF), alvo do relatório final de Bittar na CPI das ONGs.

A sugestão de exploração econômica das terras indígenas, presente no documento, vai ao encontro das bandeiras e interesses de outro membro da CPI, o vice-presidente Jaime Bagattoli (PL-RO). De acordo com o Incra, a Transportadora Giomila, parte do grupo empresarial fundado por Jaime e seu irmão Orlando Bagattoli, é titular da Fazenda São José, um imóvel de 1.118,25 hectares dedicado à pecuária bovina. A área foi adquirida pelos irmãos em 2011, por meio da penhora de uma dívida contraída pelos antigos proprietários, com 0,26 hectares — isto é, 2.600 metros quadrados — sobrepostos à TI Rio Omerê, um território de indígenas de recente contato, homologado desde 2006.

A empresa é dona de outro registro maior, detectado no Sistema Nacional de Certificação de Imóveis (SCNI), que invade 2.591,76 hectares da terra indígena, conforme apontou o dossiê “Os Invasores: parlamentares e seus financiadores possuem fazendas sobrepostas a terras indígenas“, lançado em junho por este observatório.

Dos 14 titulares da CPI das ONGs, doze são de estados da Amazônia Legal. Alguns deles possuem conflitos de interesses ao atacar as ONGs que trabalham pela preservação do bioma. Em 2006, os senadores Chico Rodrigues (PSD-RR) e Mecias de Jesus (Republicanos-RR) foram multados em R$ 547.700,00 por infrações ambientais cometidas em Roraima. As autuações, que nunca foram pagas, representam R$ 1,5 milhão em valores atuais.

O próprio presidente da CPI, Plínio Valério, aliado de Bittar, possui uma casa de veraneio construída irregularmente na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Tupé, em Manaus (AM).

BITTAR PROPÔS TRATAR MOVIMENTOS SOCIAIS COMO TERRORISTAS

Natural de Franca, interior de São Paulo, o pecuarista Márcio Bittar chegou no Acre depois de passar pelo Mato Grosso do Sul. Filho do fazendeiro Mamedio Bittar — morto em 1988, aos 56 anos — e de Manife Miguel Bittar, o senador possui uma trajetória política curiosa.

Nos anos 80, Márcio foi presidente da União Campo-grandense dos Estudantes (UCE). Na época, ele militava para o Partido Comunista Brasileiro (PCB), tendo viajado para Moscou, então sob o regime soviético. Sua primeira filiação partidária foi no antigo PMDB, quando se elegeu deputado estadual em 1995, já pelo Acre. Em 2021, veio a guinada bolsonarista, quando se filiou ao PSL e depois ao União Brasil.

Antes mesmo de se tornar aliado de Jair Bolsonaro, Bittar apoiava as mesmas causas. Em seu primeiro ano no Senado, ele propôs o PL nº 650/2019, que tipifica “atividades terroristas de movimentos pseudossociais, que são aqueles que se utilizam de uma aparente defesa de causa social para praticar crimes”.

No projeto, o senador aponta como terrorismo a invasão de propriedade privada, de prédios públicos e bloqueio de vias públicas. Durante aquele ano, Bittar fez questão de mostrar nas redes e nos discursos seu ódio aos movimentos sociais. Contudo, diante dos atos terroristas cometidos por militantes bolsonaristas no dia 8 de janeiro, o senador deixou essa bandeira de lado.

Foto principal (Agência Senado): relator da CPI das ONGs, Márcio Bittar, entregou no dia 5 documento final para o presidente da comissão, Plínio Valério

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